Os deputados federais Arthur Lira, relator do Projeto de Lei 1.087/2025, enviado pelo governo para isentar de pagamento de Imposto de Renda os salários até 5 mil reais, e Rubens Júnior, presidente da comissão especial instalada para analisar o tema, receberam esta semana uma petição assinada por mais de cem organizações da sociedade civil. O documento pede que os parlamentares não descaracterizem o projeto original com adendos – os famosos “jabutis” – que ofuscam seu objetivo inicial de promover a justiça fiscal, evitam temas como a taxação de grandes lucros e fortunas e ameaçam as classes menos favorecidas com medidas como a limitação das deduções com saúde e educação.
Enquanto o governo enfrenta a má vontade do Congresso em acatar medidas como o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e recorre a uma Medida Provisória para emplacar alguns pontos do pacote fiscal apresentado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, as entidades se organizam para pressionar os parlamentares. Em entrevista a CartaCapital, a diretora-executiva da Oxfam Brasil, Viviana Santiago, fala sobre a petição entregue na Câmara e os desafios colocados no debate sobre reforma fiscal no País. “É preciso repensar isenções e medidas que privilegiam os super-ricos”, sugere.
CartaCapital: A questão fiscal no Brasil está sendo debatida em termos corretos?
Viviana Santiago: Vivemos em uma sociedade muito desigual e temos assistido a uma recusa consistente em avançar rumo a uma justiça fiscal, em que os cidadãos que têm mais contribuam com mais, e aqueles que têm menos contribuam com menos. Na prática, trata-se da manutenção de privilégios em uma sociedade na qual a maioria tem pouco ou nada, enquanto uma minoria acumula. O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, e a classe média continua pagando a conta.
“A elite brasileira está viciada em desigualdade”, diz Viviana Santiago
CC: Nesse embate, o Congresso atua como um “sindicato dos ricos”?
VS: Quando bombardeia a proposta de aumento do IOF e apresenta alternativas que atingem a classe média, o Congresso faz uma defesa escancarada dos mais ricos. É preciso pressão da sociedade sobre os parlamentares, mas o fato é que o debate fiscal vem ocorrendo no Brasil a partir da lógica de que é um tema muito complexo, que nem todo mundo consegue entender, porque nossa política fiscal é uma das mais complicadas do mundo. Pouco ou nada se fez para popularizar esse debate. Estamos discutindo conteúdos que atravessam a vida de todos os brasileiros e podem piorar ainda mais a desigualdade. A perspectiva de colocar limites de dedução de gastos com saúde e educação fará com que a classe média, que já vive no sufoco, pague a conta dessa reforma. Mas, de maneira geral, a sociedade quase não se dá conta de que esse debate é sobre ela.
CC: O que esperar da pressão sobre os parlamentares?
VS: A sociedade civil organizada e os movimentos sociais têm feito uma pressão muito grande sobre os parlamentares. Temos uma oportunidade histórica de fazer alguma coisa para combater a alta regressividade do sistema tributário no Brasil e entender como, a partir das políticas fiscais, é possível reduzir a desigualdade.
CC: A desoneração da base de contribuintes e a tributação dos mais ricos são fundamentais para a diminuição da desigualdade?
VS: Com a desoneração total de pessoas que ganham até 5 mil reais e a desoneração parcial de quem ganha até 7 mil, estamos seguindo um princípio de que quem tem menos paga menos. Mas essa renúncia fiscal por si só não é suficiente para reduzir a desigualdade, porque temos um déficit. Ela se tornará eficiente se acrescentar um tributo sobre aquelas pessoas que ganham a partir de 50 mil reais e estabelecer como prioridade a taxação de lucros e dividendos. Essa é a chave quando falamos em tributação da super-riqueza e em combate efetivo dos processos de evasão e elisão fiscal.

Cenário. “O Congresso faz uma defesa escancarada dos mais ricos”, avalia Santiago, ao comentar a resistência de parlamentares às propostas de Haddad – Imagem: Washington Costa/Ministério da Fazenda
CC: Esse debate parece interditado no País…
VS: Hoje, quem tem salário paga mais imposto do que quem aufere lucro. No caso dos super-ricos, o que estamos demandando é uma tributação sobre esse patrimônio. Aí haverá justiça fiscal. Quando falamos na isenção para quem ganha até 5 mil reais, estamos falando em mitigar a pobreza. Agora, quando falamos de tributação de lucros e dividendos, de tributação adicional sobre salários a partir de 50 mil reais, aí estamos falando em reduzir a desigualdade, porque quem tem mais vai contribuir com mais.
CC: Qual seria a tributação ideal sobre os mais ricos para corrigir essa injustiça fiscal?
VS: O maior custo decorre não apenas da ampliação da faixa de isenção para quem ganha entre 5 mil e 7 mil reais – o que representa um impacto adicional de 15,6 bilhões de reais em relação ao desconto médio de 40% proposto pelo PL 1.087 –, mas também da necessidade de introduzir um desconto parcial para a faixa de 7 mil a 9 mil reais, com custo estimado em 10,4 bilhões. Por outro lado, projeções indicam que esse impacto poderia ser compensado com o ajuste da alíquota mínima para um patamar entre 15% e 20%. Para nos aproximarmos de uma justiça fiscal, seria essencial eliminar a isenção de Imposto de Renda para pessoas físicas na distribuição de lucros e dividendos.
CC: A participação da sociedade é dificultada nas discussões sobre o PL?
VS: Ela não tem sido garantida. Quando pensamos que esse é um debate que envolve a sociedade inteira, é impossível acreditar que possa ser feito sem a participação da academia, dos movimentos sociais, dos sindicatos, dos movimentos estudantis etc. É preciso que se tenha um cronograma de audiências públicas que sejam agendadas com antecedência, com informação disponibilizada de forma acessível e transparente, e que congregue, de fato, os mais diversos segmentos que ocupam esse debate. Não ter uma reforma tributária com ampla participação social, neste momento, é resultado da presença de uma direita hermética, que acha ser possível construir algo sem envolver o povo.
“É prioritário taxar lucros e dividendos se o objetivo é a justiça fiscal”
CC: Quais seriam as “medidas estruturantes” para a questão fiscal no Brasil?
VS: Para estruturar de forma permanente a questão fiscal, é preciso reduzir a regressividade do sistema tributário. A desigualdade persistirá enquanto tributarmos mais os trabalhadores do que as empresas e deixarmos de taxar adequadamente o topo da pirâmide, onde lucros, dividendos e a transmissão de heranças seguem isentos ou subtributados. Esse modelo concentra a riqueza em um grupo restrito e torna praticamente impossível a mobilidade social, pois impede que os setores pauperizados consigam acumular riqueza. É necessário repensar as isenções e rever o pacote de medidas que privilegia os super-ricos e alimenta uma reprodução da pobreza em velocidade inédita.
CC: Os setores que mais atacam o PL 1.087 e a tentativa de mudar o IOF são os mesmos que gozam de subsídios e outras vantagens fiscais. Do ponto de vista fiscal, a elite brasileira pode ser considerada particularmente mesquinha?
VS: O que temos acompanhado na discussão da reforma tributária reflete a atuação de uma elite perversa no Brasil. A sociedade brasileira é profundamente desigual e marcada por uma classe dominante que, como define o professor Mário Theodoro, está viciada em desigualdade. Por isso, reage com hostilidade a qualquer iniciativa que busque corrigir distorções históricas. Basta lembrar dos inúmeros subsídios que recebeu ao longo do tempo e da forma como se apropriou da riqueza gerada pelo conjunto dos trabalhadores. É essa elite que hoje resiste com todas as forças à reforma em debate, para manter tudo como está. Para preservar seus privilégios, ela precisa bloquear qualquer avanço rumo a uma sociedade mais justa. •
Publicado na edição n° 1367 de CartaCapital, em 25 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os intocáveis’