Obcecado por fechar um rápido acordo de empréstimo com o Fundo Monetário Internacional, o presidente argentino, J­avier Milei, cada vez mais parece um protótipo de ditador. A Casa Rosada recusa-se a seguir as leis e submeter ao Congresso os termos do financiamento, enquanto o Ministério da Segurança Nacional nem sequer se dispõe a apurar o comportamento do suboficial que quebrou o crânio de um fotógrafo durante a repressão ao protesto dos aposentados na capital. Milei está animado: quer garantir os 20 bilhões de dólares do FMI, esticar a sobrevida de seu projeto econômico e vencer as eleições legislativas de outubro. Para tanto, esgarça os limites da democracia. Sem acordo com o Senado, o “libertário” nomeou por decreto dois integrantes do Supremo Tribunal do país.

A condução das negociações com o fundo mostram o estilo autoritário. Uma lei de 2021 exige que qualquer acordo sobre dívida externa passe pelo Congresso. Milei decidiu, porém, atropelar a legalidade. Emitiu um decreto de necessidade e urgência, para evitar o debate no Parlamento. O DNU é uma invenção da última Constituição, de 1994, que se tornou diabólica. Em geral, os decretos têm sido usados sem necessidade ou urgência que os justifiquem. Pelas regras, basta uma das casas parlamentares, Câmara ou Senado, aprovar uma proposta do Executivo. Milei tem obtido o apoio necessário por meio da negociação com representantes de estados enfraquecidos pelo corte dos repasses federais. No caso das tratativas com o FMI, o governo forçou e levou ao paroxismo o mecanismo DNU. Milei publicou uma norma que autoriza o Executivo a negociar sem revelar com antecedência os itens do acordo. “É um cheque em branco”, protesta a oposição peronista. “Não posso revelar o conteúdo porque é confidencial”, justifica Luis Caputo, ministro da Economia.

Caputo não é um desconhecido dos argentinos. Milei, que na campanha eleitoral prometia combater a “casta política”, integrou o ministro à equipe após tê-lo criticado duramente. Em 2018, o próprio Caputo, então na equipe de ­Mauricio ­Macri, foi um dos arquitetos do maior empréstimo da história do FMI: 56 bilhões de dólares, dos quais a Argentina usou 45 bilhões. Foi uma tentativa do board do fundo, dominado pelos Estados Unidos, de alavancar a reeleição de Macri. Sem sucesso. Em 2019, o peronista Alberto Fernández, na chapa ao lado de Cristina Kirchner, venceu a disputa presidencial e herdou o compromisso financeiro. Fernández recusou-se a usar os 21 bilhões ainda disponíveis, mas ­Milei quer meter a mão nessa quantia para manter a frágil paridade entre o dólar e o peso argentino. O atual presidente celebra a queda da inflação para uma taxa de 2% a 3% ao mês, escandalosa em qualquer outra parte do planeta, e pretende usá-la a seu favor na próxima disputa eleitoral. Uma desvalorização abrupta da moeda argentina poria um fim às ilusões.

Milei e Caputo não se importam com o fato de um terno custar quatro vezes em Buenos Aires do que em Milão ou de um café sair pelo equivalente a 3 dólares. Também não se incomodam com o êxodo dos argentinos, e de dólares, que não só invadiram o Brasil neste verão. A classe média anda animada com a perspectiva de curtir o próximo feriado em Miami. Uma minoria, de 2 a 4 milhões dos 47 milhões de cidadãos, que serve para alimentar os sonhos da grande massa, na linha “se eles conseguem, é possível, e eu também posso. Serei capaz em algum momento”.

O governo quer manter o câmbio apreciado, ao menos até as eleições de outubro, custe o que custar

A Argentina havia se desconectado do FMI, juntamente com o Brasil, em 2005. Os dois países, com Néstor ­Kirchner e Lula nas respectivas presidências, pagaram suas dívidas e se livraram da dependência externa. Roberto Lavagna, respeitado economista e ministro da Economia de dois presidentes, Eduardo Duhalde e Kirchner, explicou dessa forma os danos da relação com o fundo: “Não é apenas um problema financeiro, mas um fator de histeria política”. ­Lavagna dizia que a pressão permanente converte-se na agenda principal do debate econômico e financeiro e os países acabam por se prender a falsas prioridades.

O exercício do poder por meio de ­decretos de necessidade e urgência e os cheques em branco é combinado com um desprezo pelas relações diplomáticas tradicionais. Milei só conheceu outros presidentes da América do Sul em fóruns multilaterais. Não se propôs a visitar o Brasil, que, ao lado da China, é o principal parceiro comercial da Argentina. Igualmente, evita viajar ao Chile, Uruguai, Bolívia ou Colômbia. Defende um acordo de livre-comércio com os Estados Unidos, o que levaria ao fim do Mercosul. Foi mais longe. No último discurso perante o Congresso, deixou escapar que sair do Mercosul é uma opção possível para a Argentina. E repete: seu alinhamento é com os EUA e Israel. E costuma criticar duramente o primeiro-ministro Pedro ­Sánchez, embora a Espanha seja um dos cinco maiores investidores externos no país.

Em consonância com o abuso de ­decretos, o governo endurece cada vez mais a política interna. A estratégia é simbolizada por um personagem: ­Pablo Grillo, fotógrafo de 35 anos em estado grave após uma lesão no crânio, com perda de massa cerebral, após um suboficial de uma força de segurança ter atirado uma granada de gás lacrimogêneo em sua cabeça. Segundo as normas internacionais, o gás lacrimogêneo só pode ser lançado em um ângulo de 45 graus, para não se tornar um míssil. Grillo acompanhava a manifestação dos aposentados por um reajuste dos proventos. O corte das pensões integra o draconiano ajuste fiscal, o “maior da história mundial”, jacta-se Milei. “É pouco criativo controlar o déficit com a redução de 30% dos rendimentos reais dos aposentados”, afirma Hernán Letcher, do Centro de Estudos de Economia Política.

Ministra da Segurança Nacional, ­Patricia Bullrich, 68 anos, ex-guerrilheira montonera exilada no Brasil que, com o passar dos anos, se converteu em uma extremista de direita, tem se recusado a punir o agente responsável pela agressão a Grillo. A deputada Lilia Lemoine, antiga cosplayer da Mulher-Maravilha e hoje a porta-voz de fato do presidente, comentou de forma jocosa: “Se você quiser fazer uma omelete, é preciso quebrar os ovos”. O fotógrafo continua internado, em coma. •

Publicado na edição n° 1354 de CartaCapital, em 26 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cassetete na democracia ‘

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Last Update: 20/03/2025