
Por Leonardo Massud e Marco Aurélio de Carvalho*
A Justiça peruana de primeiro grau condenou o ex-presidente Ollanta Humala e sua esposa, Nadine Heredia, a 15 anos de prisão, ordenando execução imediata. Humala foi imediatamente detido. Sua esposa pediu asilo diplomático à embaixada brasileira. A Presidente peruana, Dina Boluarte, emitiu salvo-conduto para que ela pudesse sair da embaixada onde se abrigou e vir ao Brasil.
Tanto lá quanto aqui, passou-se a questionar a concessão do asilo. Não se sabe se por má-fé ou por ignorância , muitos continuam a noticiar que houve condenação por corrupção, equiparando o caso Humala aos dos demais ex-Presidentes peruanos. Tudo para dizer que, em se tratando de crime comum, não seria cabível a concessão do asilo. Outra confusão conveniente aos detratores da acolhida. A Convenção sobre Asilo (1954) estabelece que a medida se destina a “pessoas perseguidas por motivos ou crimes políticos”.
O acordo, de fato, exclui crimes comuns. Entretanto, diz ser possível quando “os fatos que deram origem ao pedido de asilo, seja qual for o caso, forem manifestamente de natureza política”. Nesse sentido, vale lembrar que não há definição legal de crimes políticos, tampouco critérios objetivos para que sejam assim classificados. Mesmo porque seria inútil. Sempre houve, mundo afora, acusações de crimes comuns para encobrir perseguições políticas. O que confere natureza política a um crime não é sua tipificação legal, mas os fatos e contextos em que estão inseridos. E quais são os fatos?
A imputação é a de que Humala e sua esposa receberam, com o Partido Nacionalista Peruano, contribuições não oficiais para as campanhas eleitorais de 2006 e 2011, respectivamente, do Governo Chávez, da Venezuela, e da empresa Odebrecht.
Eles sempre negaram ter recebido tais aportes. É importante destacar que, nessa época, contribuição irregular de campanha era apenas um ilícito administrativo no Peru. Só passou a ser considerada como crime em 2019. Como não poderia imputar como criminosos fatos que a legislação assim não considerava, o MP peruano passou a, artificiosamente, imputar o crime de lavagem de dinheiro.
A maquiagem acusatória está evidenciada pelo fato de que, em nenhum momento, se procurou demonstrar que a origem das supostas doações de campanha era criminosa e, muito menos, provar que os acusados conhecessem a origem de tais recursos, elementos essenciais ao crime de lavagem.
O fato de que tais recursos, ainda que tivessem sido dados, terem vindo de maneira escondida, não torna automaticamente sua origem criminosa. Doações silenciosas sempre foram frequentes para despistar interesses geopolíticos, econômicos, financeiros e eleitorais, inclusive para não desagradar os adversários dos beneficiários, que também poderiam vencer os pleitos que estavam disputando.
A origem do caso, portanto, é a criminalização da política tal como se fez aqui. Mas, mais do que isso, a Lava Jato peruana, que nasceu da “costela brasileira”, também tinha alvo certo. Aqui no Brasil já se sabia, o que se comprovou após a operação spoofing, que o objetivo da Força-Tarefa de Curitiba era derrubar o Partido dos Trabalhadores e prender Lula.
Claro que a coisa foi ganhando dimensão maior e atingiu, colateralmente, outros partidos e políticos. No Peru, também foi assim. A homônima força-tarefa peruana tinha como alvo o Presidente Humala. A Lava Jato lá começou em 2015, durante o seu governo.
É bom lembrar que os promotores brasileiros e peruanos tiveram inúmeras tratativas com órgãos de governos estrangeiros, muitas de forma clandestina, ao mesmo tempo que a América do Sul assombrava o Norte colonizador com aspirações de autonomia e independência econômica e política.

Basta observar que nos vários anos que antecederam a operação, precisamente em 2015, a esquerda se encontrava no poder não apenas no Brasil e no Peru, mas também na Argentina, Uruguai, Equador, Bolívia e na Venezuela. Especificamente no Peru, Humala iniciou vários projetos de inclusão social, distribuição de renda e de melhoria da infraestrutura, alguns dos quais certamente desagradaram empresas e países, como é o caso do Gasoduto peruano.
Este projeto, inicialmente concebido pelo governo Alan García para somente uma pequena parte do país, de construção menos problemática e mais rentável para a empresa vencedora, foi modificado por Humala para que a infraestrutura alcançasse uma área muito maior e mais complexa (montanhas, selvas) e pudesse atingir a população tradicionalmente excluída, além de conferir mais autonomia energética aos peruanos.
É, portanto, dentro desse panorama, que se encontra a brutal condenação, cujo desdobramento imediato foi a decretação da prisão de quem sempre compareceu aos chamados da justiça, sem chance de discutir o desacerto da decisão em liberdade.
A prisão, assim, assume uma das suas facetas mais perversas. Ela materializa no imaginário das pessoas a “verdade” e a culpa. Se a pessoa está presa é porque fez alguma coisa. E toda insurgência contra a decisão que prende é vista como uma afronta e uma ode à impunidade.
Neste caso, nada poderia ser mais absurdo, pois a condenação foi baseada em “provas” reconhecidamente nulas aqui no Brasil. Nulas não por filigranas, mas porque vieram dos chamados sistemas drousys e mywebday, que foram acessados irregularmente, atingindo a cadeia de custódia da prova, ou, em outras palavras, não permitindo que se pudesse confiar nas informações por eles geradas, as quais poderiam e podem realmente ter sido irregularmente inseridas, apagadas ou modificadas.
Dessa ilegalidade também se anularam as provas derivadas, tais como testemunhos. Embora não tivesse obrigação de concluir no mesmo sentido, a justiça peruana preferiu ignorar esse comprometimento fatal da prova. Confiou apenas na palavra de delatores, que muito se beneficiaram dos acordos que fizeram, o que permitiu, a alguns, a preservar e levar embora do Peru vasto patrimônio.
Embora com a obrigação de trazer elementos de corroboração válidos, apresentaram não só “provas” vindas dos sistemas corrompidos, mas fizeram pior do que os delatores brasileiros. Ao invés de trazer arquivos eletrônicos com rastreabilidade, juntaram folhas de papel apócrifas, que podem ter sido impressas na casa de qualquer pessoa, com qualquer conteúdo.
Dentro desse contexto, além das questões de saúde e razões humanitárias, o governo brasileiro agiu bem em conceder o asilo. Esperamos agora que as Cortes Superiores peruanas possam avaliar o caso de acordo com os vetores doutrinários corretos a respeito da prova e da tipificação da lavagem para que , ainda que tardiamente, e mesmo após a destruição do seu capital político, possam reconhecer suas inocências.
*Leonardo Massud é advogado e professor de Direito Penal da PUC-SP. Marco Aurélio de Carvalho é advogado e sócio-fundador da Associação brasileira de juristas pela Democracia (ABJD) e coordenador do grupo Prerrogativas
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