Nesta carta, analiso as últimas semanas nas quais os Estados Unidos, sob o governo de Donald Trump, decidiram taxar e sancionar o Brasil à luz de motivações políticas e econômicas, trazendo, depois de algum tempo, o tema do imperialismo das páginas amareladas dos livros para o centro da conjuntura política. É disso que eu trato na Carta n.º 4: Conjuntura e Imperialismo (com uma necessária contextualização histórica).
Imperialismo?
Demétrio Magnoli, o reacionário comentarista da Globo News, militou no movimento estudantil na mítica Liberdade e Luta (Libelu). Não é surpreendente, portanto, que, ao romper com o seu passado de esquerda, uma das primeiras atitudes adotadas por Magnoli foi opor-se à categoria histórica do imperialismo. Para ele,
[…] o conceito de imperialismo – uma formulação de origem liberal, assimilada pelo marxismo no curso de sua subordinação ao pensamento nacionalista – completou a sua evolução singular, transformando-se em lugar comum ideológico destituído de qualquer interesse analítico (Magnoli, 1995, p. 426).E assim ocorreu com muitos “ex-esquerdistas”, convertidos ao credo liberal e a outros valores e crenças que a burguesia desenvolveu ao longo de seu domínio. Só que um dos traços da época imperialista é a existência continuada de nações opressoras e nações oprimidas, e a névoa teórica que oculta esse fato é a que, em regra, vem dando origem a numerosos equívocos.
De modo particularmente incisivo, a agressiva política imperialista de Trump, o caubói fora da lei, em lugares tão distantes e distintos entre si, a exemplo do chamado Oriente Médio e do Brasil, é apenas um mero exemplo de que o esquematismo antimarxista de negar o imperialismo se desmancha no ar.
Imperialismo e questão nacional na tradição marxista
A chamada questão nacional marcou fortemente os debates entre os marxistas. Rosa Luxemburgo e Karl Radek defendiam que esse era um problema que se encerrara no século XIX no contexto das revoluções burguesas. Lênin, ao contrário, sustentava que esse tema mantinha toda a sua gravíssima atualidade na época imperialista, e, desse modo, não era uma questão resolvida. Assim, nos primeiros congressos da III Internacional, Lênin e Trotsky deram grande relevância a esse tema, que, desenvolvido nas “teses sobre as questões nacional e colonial” e nas célebres “teses sobre o oriente”, se tornou uma questão de primeira ordem para os comunistas/socialistas ao longo do século XX, alcançando o XXI.
No Programa de Transição, Trotsky esgrimiu a tese de que as principais tarefas nos países coloniais e semicoloniais, no plano imediato, passava pela defesa da independência nacional e da transformação radical da estrutura agrária. No plano prático, chegou a afirmar que, em uma disputa entre o Brasil de Vargas e o imperialismo “democrático” britânico, os revolucionários deveriam ficar ao lado do Brasil como nação oprimida.
Esse problema retomou a praticidade mais de 40 anos depois, durante a Guerra das Malvinas, quando o marxista argentino Nahuel Moreno, ainda em meio à ditadura militar, defendeu que era necessário apoiar a Argentina contra a Inglaterra, incondicionalmente.
Note-se que, nas mais diferentes circunstâncias, mesmo entre os marxistas, essa questão não foi tratada como um ponto pacífico. Independentemente disso, contudo, o que se evidencia é que, dessa complexa situação, deve ser extraído que a questão nacional não se concluiu no século XIX, como acreditavam Luxemburgo e Radek, mas ela permaneceu (e permanece) como uma das questões mais candentes da atual época histórica, tal como se depreende dos pressupostos de Lênin e dos primeiros congressos da III Internacional.
Assim, a defesa incondicional dos povos oprimidos mantém-se como ponto programático de qualquer organização que, à luz da experiência histórica, apoia as suas posições no arsenal marxista, que as consolidou levando em consideração um sem-número de discussões e controvérsias, o que demonstra o caráter proativo do marxismo.
Um breve exemplo histórico no Brasil
A última vez que o Brasil esteve sob o ataque do imperialismo ianque, com esse grau de brutalidade, foi às vésperas do golpe de 1964. À época, a defesa de uma nação oprimida entrou na ordem do dia. Quantas pessoas decididamente de esquerda, no entanto, não se recusaram a se posicionar ao lado de João Goulart diante das investidas do imperialismo estadunidense? Alegavam que o programa liberal do ministro da fazenda, Santiago Dantas – o Plano Trienal, marcado por um rigoroso corte de gastos –, era uma demonstração não só do caráter “liberal”, mas também “pró-imperialista” do governo nacionalista-burguês. Desse modo, ele estaria inabilitado politicamente a mudar o seu rumo e de defender o país.
Goulart, no entanto, fez aprovar no Congresso Nacional a sua proposta de controle da remessa de lucros e, depois, lançou o seu programa de reformas de base. Em seguida, foi derrubado por um golpe de Estado amparado pelo imperialismo estadunidense.
A história é permeada de exemplos assim, em que determinado agrupamento político ou determinada personagem avança para além de seus piedosos desejos. Atualmente, na academia, intelectuais profissionais costumam ressaltar que a história não ensina nada. Em parte, é verdade, principalmente para quem não quer aprender.
Brasil: colonialismo e semicolonismo no contexto do imperialismo
A condição da base econômica e da realidade financeira brasileira me leva a concluir que o Brasil é um país semicolonial, periférico ou subordinado no plano das relações internacionais. Desse modo, a defesa apenas condicional da soberania brasileira, nas condições atuais, de domínio do capital financeiro e de sua manifestação na forma do imperialismo contemporâneo, é um erro gritante.
O colonialismo imperialista é uma das razões históricas da situação de dependência de economias como a brasileira. Em vista disso, a contraposição do governo Lula da Silva às sanções do déspota Donald Trump assume objetivamente um caráter anticolonialista, malgrado os seus evidentes limites. Aqui é preciso observar ser impossível compreender a história do imperialismo sem levar em conta a sua natureza colonialista. Decorre desse fato que a luta contra o colonialismo assume um caráter de incondicionalidade.
Isso expresso, o mundo vive, neste momento, uma situação política potencialmente explosiva, que pode conduzir tanto a um golpe contra o colonialismo de natureza imperialista quanto a um desenvolvimento piorado da condição colonial, a exemplo do que acontece com o povo palestino.
Tal como se apresenta o problema, a situação enfrentada pelo Brasil não era completamente imprevista, ainda que fosse naturalmente improvável delinear como e quando ela iria se manifestar. Ela se manifestou, e agora?
O ataque imperialista ao Brasil
Este é um dado, de fato, incontroverso: o Brasil está sob um ataque do imperialismo ianque. Há guerras e guerras. Os marxistas aprenderam com Clausewitz que a guerra é a política por outros meios. Mas o que é a guerra comercial ou econômica se não um modo particular de manifestação da política por outros meios?
O ataque de Trump abriu um atalho para revelação da natureza rapace do imperialismo para amplas parcelas das massas populares. Por forças das circunstâncias, o governo Lula foi além do que poderia supor a vã filosofia do esquerdismo vulgar.
Lula irá mais longe? É uma hipótese pouco provável; lembro, contudo, que a história está cheia de hipóteses poucos prováveis que, objetivamente, se consumaram. Tudo isso dependerá da evolução dos fatos da luta de classes, não apenas no terreno nacional, mas também em escala internacional.
Em todo caso, é necessário substituir a sociologia abstrata pela política concreta. Assim sendo, é indispensável se solidarizar com as medidas adotadas no âmbito político e institucional e defender, no rastro dessas medidas, um programa anti-imperialista, que levante a defesa da unidade dos povos da América Latina e do Caribe frente à política de rapinagem de Trump. O Brasil não tem como se defender sozinho.
As medidas programáticas defendidas por um marxista, seguramente, vão além do que o governo calcula ser essencial e inevitável. A única forma desses dois movimentos convergirem é a luta de classes se acelerar e escalar novos patamares. Está longe disso acontecer, todavia, a situação atual não estava nos cálculos mais otimistas. Como escreveu Goethe, a teoria é cinza; verde é a árvore da vida.
Até que ponto as coisas podem avançar não depende apenas de vontade política, mas ela é um componente básico do complexo encadeamento que constitui uma dada conjuntura. Agora, trata-se de testar a política. O que não é possível é assistir aos acontecimentos como meros comentaristas da luta de classes. Ação e palavra devem corresponder rigorosamente. Os expectadores costumam ajudar a história a vir de lá para cá; a tarefa de um marxista é de conduzi-la daqui para lá.
Dito isso, é preciso estar ao lado da autodeterminação do povo brasileiro e da soberania nacional que lhe é inerente; isso de forma incondicional. O que não impede que cada organização, no campo da esquerda, siga a luta por um programa que reflita as reais necessidades da classe trabalhadora, e não as da Faria Lima. Mesmo isso, hoje por hoje, começa pela defesa incondicional do Brasil diante do imperialismo estadunidense.
Pos é, alguém disse imperialismo?
Como quer que seja, se alguém disse imperialismo, falou certo, sem tirar, nem pôr. Não acidentalmente foram proferidas as palavras de Luís Inácio Lula da Silva: “Não é um gringo que vai dar ordens a este presidente”. Nessa perspectiva, é necessária uma política estreitamente ligada a essa situação, e não a uma anterior ou a do futuro. Essa é uma face do problema frequentemente negligenciada. Por isso, a indagação “E se o governo trair e capitular” não pode ser a base inicial de uma política concreta.
Para uma avaliação correta e necessariamente crítica do governo de Lula, é forçoso partir de seus acertos no embate contra Trump. Do contrário, o mais talentoso dos revolucionários conversará somente com os seus pares, desprezando o diálogo com milhões de pessoas que foram despertadas para o tema da luta anti-imperialista.
Essas pessoas, aliás, não chegaram até aqui depois de ler as teses sobre as questões nacional e colonial da III Internacional. A pedra de toque foi a atitude correta que o governo adotou perante o tarifaço e o intervencionismo imperialista nos negócios internos do Brasil. Qualquer que seja o juízo crítico que se queira formular acerca do governo do país – o que é inteiramente justo e legítimo –, deve partir dessa constatação primária.
Lula, na prática, reafirmou um velho princípio do nacionalismo neste país: Brasil com “z” jamais. É daqui que tomo impulso para afirmar que a luta anti-imperialista escalou no Brasil. O mundo inteiro olha pra cá, inclusive da Europa (que capitulou vergonhosamente ao Trump) e mesmo dos Estados Unidos.
Essa oportunidade não pode ser perdida, até do ponto de vista da educação política de milhões de pessoas. Mas é também uma oportunidade para exigir do governo a compensação recíproca pelos estragos na economia nacional (e não apenas proteger o grande capital). A incidência operatória dessa medida depende menos dos socialistas e comunistas do que do governo, aliás enredado pelo caráter limitante da frente ampla.
As credenciais democráticas do governo Lula são nítidas. A questão de até que ponto ele será consequente na luta democrática e anti-imperialista é um problema que só será resolvido no terreno das forças em disputa. Não obstante aos limites do governo, o fato é que, por um caminho original, em parte, o tema do imperialismo voltou à torna, e para retomar o fio do anti-imperialismo, não se pode menosprezar essa situação.
Conclusões provisórias
É possível que tenha que voltar ao tema do imperialismo em outro momento. Faltou aqui, por exemplo, examinar o papel da extrema-direita bolsonarista como braço do imperialismo ianque no Brasil. Faltou também examinar os temas do Superior Tribunal Federal (STF) e da mídia. Creio que não faltará chance para abordar esses assuntos.
De tudo que escrevi, parto para algumas conclusões que julgo essenciais. A primeira delas é que o trumpismo é um projeto político autocrático, antipopular, racista, xenofóbico e colonialista, para ficar apenas em um pequeno número das suas facetas. É ele que está à frente do ataque às economias do mundo, e, em particular, da brasileira. De feito, Trump golpeia um país importante dos BRICS, reforça a balança comercial norte-americana e ainda atende aos interesses de seu grupo-satélite no Brasil: o bolsonarismo
A segunda conclusão, decorrente da primeira, é que a defesa do Brasil e o enfrentamento a Trump são semelhantes no que toca ao futuro do país, que, na hipótese do triunfo do trumpismo, passaria de uma semicolônia privilegiada a um degrau abaixo dessa condição. No limite, isso implicaria não só um reforço nos alicerces da dependência, mas um enfraquecimento do Estado brasileiro no concerto das nações.
Por fim, só o futuro poderá mostrar até onde o governo será capaz de ir em sua defesa da independência nacional. Daqui a um tempo será justo indagar: “O que foi que conseguimos?”. Atualmente, contudo, a questão é: “O que podemos fazer para enfrentar as sanções estadunidenses e escudar a nossa autodeterminação como povo e nação?”. Essa questão, desde um ponto de vista leninista, não pode ser objeto de condicionalidade. Em suma, a luta contra a sujeição imperialista não é só necessária, é incondicional.
Referência
MAGNOLI, Demétrio. As origens da guerra fria. In: COGGIOLA, Osvaldo. (org.). Segunda Guerra mundial: um balanço histórico. São Paulo: Xamã/FFLCH-USP, 1995.