Carta Brasil 2000 (IV)

por Izaías Almada

         Após transcrever trechos dos escritos de Orlando Villas Boas e José Pereira de Queiroz Neto, feitos para a Carta Brasil 2000 (documento crítico sobre a “comemoração” dos 500 anos da chegada de Cabral ao litoral baiano), faço agora uma pequena seleção de meu próprio texto, honrado que fui com o convite para participar do evento.

         CARTA AO PRÍNCIPE foi o título por mim escolhido para a tarefa. Vamos a ela:

         “SENHOR, posto que outros homens de bem, decorrida essa longa e atribulada viagem pela História, resolveram escrever a Vossa Alteza dando conta daquilo que até aqui se passou com a nossa secular expedição, da mesma forma tomarei para mim uma pequena parte de tão honrosa tarefa. Não por inveja, orgulho ou convencimento, pois, sem dúvida, não escreverei tão bem quanto eles, mas por dever de ofício, já que outra coisa não tenho feito nos últimos anos. Nesse mister, procurarei fazer o meu melhor”.

         “Divido-me neste momento entre o meu passado de colonizador e o meu presente de colonizado, não sabendo ao certo de qual destes estados d’alma ou de qual destas identidades me envaideço ou me entristeço. Sou um euro-brasileiro, mestiço, disposto a deitar olhos sobre o que aqui fizeram meus antepessados brancos. Do que vai nestas páginas escritas, no entanto, poderá Vossa Alteza bem concluir a seu gosto e juízo, sem levar em conta a minha condição e os meus sentimentos”.

         “A presente viagem começou no dia 21 de abril de 1500, há exatamente 500 anos, quando cá chegaram nossos antepassados e descobridores. Como eles, lanço meu olhar sobre a nova terra, em calendário e em tempos tão distintos e distantes, mas ainda assim um olhar o mais semelhante possível ao que foi o deles em seu virginal e primeiro encantamento. É possível manter sobre tão formosa natureza a surpresa inicial, mas pouco mais do que isso. O homem que aqui plantamos vem dando cabo de tudo que aqui se encontrou. E de que maneira!…”  

         “É provável que tudo tenha começado quando outros povos, europeus como nós, mas não ibéricos contudo, tentaram avançar sobre este vasto território ainda virgem de possibilidades e riquezas. Expulsamo-los em boa hora. Com dificuldades, mas com a ajuda de muitos nativos das regiões atacadas, conseguimos fazer valer nossos acordos com os vizinhos espanhóis e, com apenas três pequena exceções ao norte da mata amazônica, mantivemos esse novo tão ibérico quanto nos foi possível, até o momento em que outras nações, com o passar dos anos, mais preparadas e astutas, nos tomassem boa parte das riquezas materiais e até mesmo culturais, despindo-nos de pendores patrióticos e de alguma desejada consciência nacional”.

         “E desta síndrome, muitos de nós não conseguimos nos libertar: seremos ainda brancos colonizadores e predadores de uma terra em que insistimos em não ter por pátria, ou mestiços colonizados e aculturados, mesmo depois de nossas aventuras e escaramuças com os índios aqui encontrados e com os negros para cá trazidos?”

         “Ensinamos aos índios nativos que as terras em que viviam não pertenciam só a eles, mas também a Deus Nosso Senhor e a Vossa Alteza, seu representante na terra. Depois, importamos negros de terras africanas, de tribos e línguas diferentes para que apenas nos ajudassem a plantar a cana e a extrair o ouro, despojando-os de sua condição humana”.

         “Aqui, é tamanho o preconceito e a obsessão dos que sentem vergonha da sua condição de mestiços que muitos só pensam em elevar o país à condição de um país mais civilizado e branco (o que é natural nessas circunstâncias) ou – como eles mesmos costumam dizer, os preconceituosos – um país de primeiro mundo, de tal maneira que já pensam em substituir a língua de Camões pela língua do Capitão Marvel”…

         “Beijo as mãos de Vossa Alteza, que desejo limpas e asseadas… Desta Ilha de Vera Cruz, também chamada Brasil, hoje, sábado, 22 de abril do ano 2000”.

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

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Last Update: 07/07/2025