Carta Brasil 2000 (III)

por Izaías Almada

         Vamos agora ao terceiro dos textos da Carta Brasil, esse escrito pelo agrônomo e professor José Pereira de Queiroz Neto (*) e que tem o curioso título “Muito a Comemorar, Pouco a Festejar”.

         “Alteza: cá entre nós cidadãos brasileiros, em franqueza patriótica, digamos: que enquanto em 1500 o Pero Vaz era encarregado de descrever para El-Rei D. Manuel I, dito o Venturoso, suas primeiras impressões sobre o Brasil, cabe a nós, 500 anos depois, levar a Vossa Mercê um comentário sobre o que ocorreu desd’então, inclusive para saber se, de alguma forma, esta terra tem jeito”.

         “O escriba oficial da Armada comandada por Pedr’Alvares contou na sua missiva a El-Rei as singularidades e belezas dessa terra e das gentes pardas que encontrou, todos nus, mostrando suas vergonhas sem vergonha”.

         “Pedro Vaz, ingênua e inconscientemente, aponta duas qualidades que iriam marcar para sempre a história do país. Dizia o missivista que essa terra é de tal forma graciosa que, mesmo não sabendo se haveria ouro ou prata, querendo-a aproveitar dar-se-á tudo nela, pelas águas belas que tem. Será que foi, é ou será um dia aproveitado como deve? Só o futuro responderá, porém desd’então o futuro nunca chegou para o país, foi e sempre é deixado para amanhã: essa foi a primeira qualidade apontada. A outra qualidade vem no final, quando Pero Vaz roga a Sua Alteza não esquecer o mui bem que a serviu, pedindo-lhe fazer a graça especial, um favorzinho que lhe faria bem à alminha, de arranjar uma sinecura para o seu genro, de nome Jorge Osório, que sofre as agruras da vida na Ilha de São Tomé. E olhe como as sinecuras vêm sendo arranjadas desd’então!”

         “Com perdão de Vossa Alteza, chamo a atenção para outros fatos desagradáveis que se acumulam. Por exemplo, enquanto a capitania hereditária do Maranhão mostra uma situação lamentável de pobreza, São Paulo mostra uma situação menos pior, mas apenas menos pior, pois as crianças esmoleres pululam pelas ruas. Será que São Paulo é melhor que o Maranhão (talvez por ser santo)? Então existirá um país de primeira classe e outro de segunda classe, no mesmo país? E Alteza, ainda há mais: os braços têm rendimentos mensais médios duas vezes maiores que os dos negros, estudam mais que os negros, têm menos analfabetos que os negros. Será que os brancos são melhores que os negros, porque são brancos e descendentes de europeus?Então haveria também cidadãos de primeira classe e cidadãos de segunda classe?”.

         “Paira no ar uma perplexidade sem resposta: o que fizemos para chegar aqui? Haveria razão para desvanecimentos? Somos herdeiros dos “achadores”, mas herdeiros de quê? E, com o perdão de Vossa Alteza pela ousadia, festejar o quê?”

         “Será preciso juntar os cacos das culturas feitas em pedaços e de todos esses estragos, a fim de construir uma civilização e uma nacionalidade que amalgamem todas as origens e influências e que não maldigam e nem reneguem o passado”.

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(*) – José Pereira de Queiroz Neto, nascido em 15/10/1929) e falecido em 26/05/2024),  graduou-se em Agronomia pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ – USP), em 1952, e em Chimie Agricole pela Université de Rennes I (França), em 1956. Concluiu especializações em Géologie e Pédologie, Physiologie Végétale, Pedologie Tropicale e Étude des Milieux Naturels des Amériques Latines, todas na França. Ingressou como docente no curso de Geografia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) em 1965. Tornou-se doutor em Ciências do Solo em 1969, com a tese intitulada “Interpretação dos solos da serra de Santana para fins de classificação”. Cumpriu pós-doutorado no Centre National de La Recherche Scientifique (França), em 1970. Obteve o título de livre-docente em 1975, com a tese “Pedogênese no Planalto Atlântico: contribuição à interpretação paleogeográfica dos solos da Mantiqueira Norte Ocidental”. Foi professor visitante da Universidade de Caen, França, e do Instituto de Edafologia de Madrid, CSIC-Espanha.

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

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Last Update: 01/07/2025