Carnaval: entre os moralismos identitário e da extrema direita
por Francisco Fernandes Ladeira
Nenhuma outra festa popular levanta tantos debates quanto o carnaval. Todo mês de fevereiro (ocasionalmente, em março, como o caso deste ano), além das multidões nas ruas Brasil afora, o espaço público (seja online ou offline) é invadido por discursos contrários ao reinado de momo. Geralmente, são posicionamentos moralistas, com destaque para dois setores, aparentemente antagônicos sob o aspecto ideológico: a extrema direita e os chamados identitários.
Para a extrema direita – com seu pseudomoralismo habitual – carnaval é sinônimo de promiscuidade, bebedeira, alienação e sujeira. Aqueles que posam de “socialmente engajados” consideram que as autoridades deveriam deixar de gastar recursos com as festividades carnavalescas para investir em saúde e educação.
Como sabemos, a atual extrema direita tem como slogan ser “conservador nos costumes, liberal na economia”. Esse conservadorismo deseja manter qualquer tipo de hierarquia, sobretudo social. Logo, para quem odeia pobre, é preciso abominar uma festa em que o povão – a classe trabalhadora – ainda é protagonista. Não tem nada a ver com suposta promiscuidade ou outros “pecados da carne”.
Também não deixa de ser irônico constatar que indivíduos que apregoam uma economia liberal se mostrarem preocupados com investimentos sociais por parte do poder público. Se os investimentos no carnaval fossem direcionados para um evento gospel – como tentou uma prefeita no Maranhão – não haveria todo esse chilique na extrema direita.
Ao contrário da verborragia da extrema direita, carnaval não é sinônimo de alienação. Nesse momento de catarse coletiva, eclodiram inúmeras manifestações de descontentamento popular. No longínquo século XIX, o carnaval já era usado para problematizar a abolição da escravatura e as disputas por terras.
Além do tradicional moralismo da extrema direita, nos últimos anos, tem chamado a atenção as tentativas de setores identitários em censurar determinadas manifestações do carnaval – historicamente uma festa conhecida por subverter qualquer tipo de ordem social.
A partir de seu principal modus operandi – a nefasta e autoritária “cultura do cancelamento” – os identitários, sob o suposto pretexto de defender minorias – querem estabelecer “o que pode” e “o que não pode” no carnaval. Desse modo, querem proibir clássicas marchinhas, cantadas pelo povo há décadas, e decidir quais fantasias são permitidas (homem se vestir de mulher ou se fantasiar de índio, por exemplo, está proibido). Trata-se do “cancelamento retroativo” – não basta cancelar os vivos; é preciso cancelar os mortos também – e do “negacionismo histórico identitário”, rescrevendo o passado, não como foi, em suas contradições, mas idealizando-o segundo determinados padrões (impostos, evidentemente). Em suma, os identitários buscam acabar com qualquer essência subversiva e espontânea do carnaval. Transformar a maior festa popular do Brasil em um evento repleto de regras.
Obviamente, não gostar de carnaval é um direito de qualquer indivíduo. Porém, estragar a festa dos outros, querer militar sobre a fantasia alheia, impedir a execução de certas músicas ou fazer campanha pelo fim do carnaval, não são apenas atos egoístas: significa negar um dos únicos momentos de alegria ao (sofrido) povo brasileiro.
Francisco Fernandes Ladeira é doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ)
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