Por Carlos Santana
Nos últimos tempos, temos acompanhado com grande interesse uma série de anúncios sobre novos investimentos e parcerias internacionais que prometem injetar bilhões de reais na economia brasileira. Notícias sobre acordos com a China para produção de combustível sustentável, desenvolvimento de energia limpa, expansão da infraestrutura com ferrovias transcontinentais, e até mesmo o fortalecimento do comércio com a Rússia, enchem as manchetes e, compreensivelmente, geram expectativas.
Como historiador, advogado e alguém que dedicou parte significativa da vida à representação popular no Congresso Nacional, sinto-me no dever de analisar esses acontecimentos não apenas sob a ótica dos grandes números, mas, fundamentalmente, a partir do impacto que eles podem e devem ter na vida do trabalhador brasileiro e da nossa sofrida população de classe média baixa.
Não podemos nos iludir com o brilho dos cifras bilionárias sem um olhar crítico e atento. É preciso dissecar o que esses investimentos realmente significam para o dia a dia do nosso povo, tanto no curto quanto no médio prazo. Afinal, o desenvolvimento só tem valor se for para todos, se reduzir desigualdades e se construir um futuro mais justo e soberano para o Brasil.
O mosaico dos novos investimentos: o que está em jogo?
As notícias recentes pintam um quadro de intensa atividade diplomática e comercial. A China desponta como protagonista, com anúncios que somam cerca de R\$ 27 bilhões em áreas estratégicas. Estamos falando de investimentos robustos em setores como:
Energia Sustentável: Um aporte de cerca de R\$ 5 bilhões da Envision Group para produzir Combustível Sustentável de Aviação (SAF) a partir da cana-de-açúcar, além de outros R\$ 5 bilhões da mesma empresa para um parque industrial “net-zero”, focado em SAF, hidrogênio e amônia verde. A estatal chinesa CGN também planeja investir R\$ 3 bilhões em um hub de energia renovável (eólica e solar) no Piauí. Some-se a isso a parceria entre a Windey Technology e o SENAI CIMATEC para um centro de pesquisa e desenvolvimento em energias renováveis.
Indústria e Tecnologia: A montadora GAC planeja investir R\$ 6 bilhões, com foco em carros elétricos. A Longsys aportará R\$ 650 milhões para ampliar a produção de semicondutores, e uma parceria envolvendo a brasileira Nortec Química e empresas chinesas destinará R\$ 350 milhões para a produção de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) no país.
Infraestrutura e Logística: Discute-se a ambiciosa Ferrovia Transcontinental, ligando o Atlântico ao Pacífico com apoio chinês, além da articulação de cinco rotas de integração sul-americana para facilitar o escoamento da nossa produção.
Serviços e Comércio: A gigante do delivery Meituan pretende investir R\$ 5 bilhões para lançar o app “Keeta”, e a rede de bebidas Mixue planeja R\$ 3,2 bilhões em sua expansão. A DiDi, que opera a 99, também fala em expandir no delivery e instalar 10 mil pontos de recarga para veículos elétricos.
Mineração: O grupo Baiyin Nonferrous anunciou a compra da mina de cobre Serrote, em Alagoas, por R\$ 2,4 bilhões.
Paralelamente, vemos um estreitamento de laços com a Rússia, com o comércio bilateral quase duplicando em dez anos, atingindo US\$ 12,7 bilhões. Embora a balança ainda seja desfavorável para nós, as exportações brasileiras de café e carnes para o mercado russo cresceram significativamente. A Rússia também se tornou uma importante fornecedora de diesel, um insumo crucial para nossa economia.
Até mesmo a relação entre China e Estados Unidos, com um recente acordo para suspender a guerra comercial, traz reflexos para o Brasil, abrindo potenciais janelas para reduzirmos tarifas de exportação de produtos como aço e alumínio.
Este é, em linhas gerais, o cenário que se apresenta. Um cenário de oportunidades, sem dúvida, mas também repleto de desafios que precisam ser enfrentados com seriedade e com foco no interesse nacional e popular.
Impactos imediatos: emprego na ponta da linha e alívio no bolso?
No curto prazo, a chegada desses investimentos pode, sim, trazer um alívio para muitos brasileiros. A construção das novas fábricas, usinas, minas e projetos de infraestrutura certamente demandará mão de obra. Setores como a construção civil devem ser aquecidos, gerando empregos diretos e indiretos, especialmente nas regiões que receberão esses empreendimentos.
A entrada de novas empresas de delivery e serviços, como a Meituan e a Mixue, também acena com a criação de milhares de postos de trabalho.
No entanto, como bem sabemos por nossa história, é preciso cautela. Que tipo de emprego será gerado? Serão vagas com direitos garantidos, salários dignos e condições de trabalho seguras? Ou veremos a expansão da precarização, especialmente no setor de serviços por plataforma, onde a figura do “empreendedor de si mesmo” muitas vezes mascara uma exploração sem limites?
Os empregos na construção, por sua vez, são, em grande parte, temporários. O que acontecerá com esses trabalhadores após a conclusão das obras?
Outro ponto de impacto imediato pode ser o custo de vida. A importação de diesel russo, por exemplo, tem o potencial de ajudar a segurar o preço dos combustíveis e, por tabela, o custo do frete de alimentos e outros produtos essenciais. Isso seria um benefício direto para a mesa do trabalhador.
Por outro lado, o súbito influxo de investimentos e trabalhadores em determinadas localidades pode gerar uma pressão inflacionária nos aluguéis e serviços locais, antes que os benefícios mais amplos se concretizem.
Olhando adiante: oportunidades e armadilhas no médio prazo
Se no curto prazo os impactos são mais visíveis na geração de empregos e no custo de alguns insumos, é no médio prazo que as transformações mais profundas podem ocorrer – para o bem ou para o mal.
Com as novas plantas industriais e de energia em operação, surgirão novas vagas, muitas delas exigindo maior qualificação técnica. A produção de SAF, carros elétricos, semicondutores e IFAs, bem como a operação de usinas de energia renovável e centros de P\&D, são atividades que podem agregar valor à nossa economia e gerar empregos de melhor qualidade.
O desenvolvimento dessas cadeias produtivas pode, inclusive, impulsionar pequenos e médios fornecedores nacionais.
A expansão da energia limpa pode significar contas de luz mais baratas para a população e para a indústria. A produção local de medicamentos e veículos elétricos, se acompanhada de políticas de acesso, pode torná-los mais disponíveis para a classe média baixa.
A sonhada Ferrovia Transcontinental, se sair do papel e for pensada para além do mero corredor de exportação de commodities, tem o potencial de integrar regiões esquecidas e baratear o custo de vida em áreas mais isoladas.
Contudo, as armadilhas também são muitas. A principal delas reside na qualificação da nossa mão de obra. De que adiantarão vagas mais sofisticadas se o nosso povo não estiver preparado para ocupá-las?
Sem um investimento massivo e urgente em educação básica, técnica e superior, corremos o risco de ver essas oportunidades serem preenchidas por uma elite já qualificada, ou mesmo por trabalhadores de fora, aprofundando ainda mais as desigualdades.
A automação crescente em setores como o automotivo também é um fator a ser considerado, podendo limitar o número de empregos diretos.
Outra preocupação central diz respeito aos impactos socioambientais. Projetos de mineração e grandes obras de infraestrutura, por mais que gerem empregos, precisam de licenciamento e fiscalização ambiental rigorosos, com participação ativa das comunidades afetadas, para que não se repitam tragédias do passado e para que o passivo ambiental não seja maior que o benefício econômico.
Da mesma forma, é preciso criar mecanismos para que a riqueza gerada por esses empreendimentos não se concentre nas mãos de poucos, mas seja revertida em serviços públicos de qualidade e em melhoria de vida para as populações locais.
O papel insubstituível do Estado e a defesa dos interesses nacionais
Diante desse cenário complexo, o papel do Estado brasileiro é mais crucial do que nunca. Não podemos ser meros espectadores da chegada do capital internacional. Precisamos ser protagonistas, definindo as regras do jogo, induzindo o desenvolvimento nas direções que interessam ao nosso povo e garantindo que a soberania nacional seja preservada.
Isso significa, em primeiro lugar, investir naquilo que é mais precioso: nossa gente. Programas robustos de educação, qualificação profissional e apoio à ciência e tecnologia são fundamentais para que possamos não apenas ocupar os novos postos de trabalho, mas também para que possamos desenvolver nossas próprias tecnologias e não sermos eternos dependentes.
Significa também fortalecer nossos órgãos de fiscalização ambiental e trabalhista, garantindo que os novos empreendimentos respeitem nossas leis e nosso meio ambiente.
Significa planejar o desenvolvimento regional de forma integrada, assegurando que os benefícios cheguem às periferias e ao interior do país.
A produção local de insumos estratégicos, como os IFAs e os semicondutores, é um passo importante para reduzir nossa dependência externa e fortalecer nossa soberania.
A diversificação de parceiros comerciais, como a aproximação com China e Rússia, pode ser positiva, desde que conduzida com inteligência e sem submissão a interesses que não sejam os do Brasil.
É preciso ter clareza: os investimentos são bem-vindos, mas não a qualquer custo. O desenvolvimento que queremos é aquele que emancipa, que inclui, que respeita a natureza e que fortalece a nossa capacidade de decidir os rumos do nosso próprio país.
Conclusão: um futuro em disputa
Os recentes anúncios de investimentos e parcerias internacionais abrem, sem dúvida, uma janela de oportunidade para o Brasil. Há um potencial real de geração de empregos, de modernização da nossa infraestrutura e indústria, e de inserção do país em novas cadeias produtivas globais, como a da transição energética.
Para o trabalhador brasileiro e para a população de classe média baixa, isso pode se traduzir em mais oportunidades de trabalho, acesso a energia mais barata, alimentos com preços mais estáveis e, quem sabe, a novos bens e serviços que hoje são inacessíveis.
No entanto, como a história nos ensina repetidas vezes, esses benefícios não virão automaticamente. Eles precisam ser conquistados, disputados.
É fundamental que nós, como sociedade civil organizada, sindicatos, movimentos sociais, e que os governos progressistas, estejamos vigilantes e atuantes. Precisamos cobrar para que a qualidade dos empregos seja prioridade, para que os direitos trabalhistas sejam respeitados, para que haja investimento sério em educação e qualificação, e para que o desenvolvimento seja socialmente justo e ambientalmente sustentável.
A Ferrovia Transcontinental, por exemplo, não pode servir apenas para escoar minério e soja para a China; ela precisa integrar o nosso território, baratear o custo de vida para o nosso povo e gerar desenvolvimento ao longo de seu traçado.
Os investimentos em energia limpa devem significar contas de luz mais baixas para todos, e não apenas lucros para grandes corporações.
O Brasil tem todas as condições de aproveitar esse novo ciclo de investimentos para dar um salto de qualidade no seu desenvolvimento. Mas isso exige visão estratégica, capacidade de negociação e, acima de tudo, um compromisso inabalável com os interesses da maioria da nossa população.
Os desafios são imensos, mas a esperança de construir um país melhor, mais justo e soberano, deve ser a nossa bússola.
Carlos Santana é historiador, advogado e ex-deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores.