As pessoas nascidas nas últimas três décadas tiveram a sorte de, enquanto crianças pequenas, poderem ouvir o Palavra Cantada, criado por Sandra Peres e Paulo Tatit em 1994 e tornado um marco da produção musical infantil no País.
Essa trajetória é celebrada na Ocupação Palavra Cantada, que será aberta no sábado 3, no Itaú Cultural, em São Paulo. O espaço expositivo, que reproduz a ideia de lar, terá fotografias, vídeos com depoimentos, clipes e shows, textos, croquis, vestimentas, instrumentos, álbuns, livros e outros elementos retirados do acervo pessoal da dupla.
“Sinto que, com essa exposição, vamos tocar muito na emoção de pessoas mais velhas que estarão lá, com seus filhos, recordando canções que marcaram suas vidas”, diz Paulo Tatit, que deu entrevista a CartaCapital por videochamada, tendo Sandra a seu lado.
“Fazemos música para a família. A gente está sempre dentro da casa, junto com ela”, complementa Sandra, explicando a escolha dos curadores por realizar a exposição em uma casa estilizada e lúdica.
O espaço foi montado com mobiliário real e está todo adesivado, com os diferentes cômodos representando realizações e atividades do Palavra Cantada. Nos diversos ambientes será possível manipular objetos e abrir gavetas e portas para descobrir histórias.
A fachada da casa terá a toca do Rato, canção lançada em 1998. A história do ratinho romântico que ao invés de catar/ lasquinhas de queijo e comer na rua/ prefere mil vezes um beijo/ um beijo brilhante da lua ganhou, três anos depois, um clipe na TV Cultura que teve grande repercussão.
Ao entrar na casa, os visitantes conhecerão a história iniciada com o álbum Canções de Ninar (1994), que traz composições de Arnaldo Antunes, Hélio Ziskind, Caetano Veloso etc. De lá para cá, foram lançados mais de 20 álbuns e 11 DVDs, além de nove livros voltados ao público infantil.
Músicas como Sopa (1996), Aniversário (1996) e Criança Não Trabalha (1998) são registros memoráveis. O último álbum de inéditas é Cenas Infantis (2024).
Sandra é graduada em Piano e Canto Lírico e chegou a acompanhar o cantor e compositor Walter Franco. Paulo Tatit, que se formou em Arquitetura, mas optou pela música, participou do grupo musical Rumo juntamente com o irmão, o cantor, compositor e linguista, Luiz Tatit. Em 1989, ele e ela formaram uma sociedade para produzir jingles e trilhas sonoras. Cinco anos depois, ingressaram no universo musical infantil.
Na varanda da casa estão os figurinos usados nos shows. A garagem e a oficina são dedicadas a um álbum que mudou a forma de a dupla desenvolver seus projetos: o Canções do Brasil (2001), que foi produzido após longa pesquisa sobre as manifestações populares do País e que traz crianças de todas as regiões cantando.
“A gente descobriu que sempre onde há grupos de adultos de congada, de maracatu, de capoeira e de congo mineiro tem a versão para crianças”, conta Tatit. “A partir desse disco, a brasilidade, em nossa música, aprofundou-se. Tínhamos nos nutrido da experiência de sentir o pulso rítmico das manifestações populares, suas trocas e danças”, explica Sandra.
Depois do lançamento de Canções do Brasil, pelo menos dois outros trabalhos expressam esse diálogo com as tradições brasileiras: Carnaval Palavra Cantada (2007) e Pé Com Pé (2005), composto de 15 faixas, cada uma dedicada a um ritmo tradicional do País.
A dupla inovou ao privilegiar a melodia e as letras e romper com a onda de hits baseados em gestos
A Ocupação segue para a cozinha, onde se mostra o processo de criação do grupo. No quarto estão as composições feitas com parceiros, como Luiz Tatit e seu outro irmão, Zé Tatit, Arnaldo Antunes – Paulo Tatit integrou os Titãs como guitarrista, baixista e arranjador – e Edith Derdyk, parceira da dupla desde os primeiros discos.
Ao lado há um cenário com uma banheira com chuveiro, onde um microfone e um som playback convidam o público para um karaokê. Chegando ao sótão, descobre-se, enfim, a inspiração para o nome Palavra Cantada: ele foi extraído, por Tatit, de um livro de poemas de Augusto de Campos.
O projeto de Sandra e Tatit tem como base o canto falado e transforma em melodia temas que, em geral, giram em torno do cotidiano das crianças. O “eu lírico” é quase sempre infantil, como no caso de Agenda Infantil (2012): Segunda-feira tenho aula de inglês/ Na terça-feira curso de computação/ Na quarta-feira faço uma terapia/ Que me dá muita preguiça, não tenho problema não (…) Eu já falei pra minha mãe milhões de vezes/ Meu Deus do céu eu não sou relógio não.
Eles também inovaram ao valorizar a melodia e as letras, sem se apoiar excessivamente no elemento cenográfico. Ou seja, o Palavra Cantada rompeu com a ideia de que música infantil tem letras simplórias para serem decoradas, pelos ouvintes mirins, a partir de um conjunto de gestos.
Sandra e Tatit buscam construir vínculos afetivos e reflexivos a partir de um repertório diverso, alegre, criativo e rico em sentimentos reais do dia a dia. As composições, não por acaso, passaram a integrar alguns projetos pedagógicos, levaram ao surgimento de outros grupos e influenciaram artistas a se aventurar pela canção para crianças.
“Com a música se vibra alegria, amor, afetividade. A criança aprende a ouvir, tocar, cantar e interagir. A música é uma ferramenta de conexão muito poderosa”, diz Sandra. A Ocupação Palavra Cantada quer transmitir justamente isso ao público. •
Publicado na edição n° 1360 de CartaCapital, em 07 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Canções para brincar e pensar’