Indígenas de Mato Grosso do Sul, Paraná e Rio Grande do Sul vivem uma onda de violência, ameaça e medo. Desde o início do mês, capangas armados agem de forma articulada e cercam os territórios, coagindo indígenas que reivindicam a retomada de suas terras. Pelo menos 13 comunidades sofreram ataques de 4 a 19 de julho. Alguns aldeados foram baleados e agredidos e os criminosos atearam fogo em várias malocas e nas matas, uma forma de forçar os moradores a desocuparem as áreas.
Esses ataques não são casos isolados, acontecem com frequência em todo o País, e confirmam o histórico de violência contra os povos originários apontado pelo relatório “Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil”, com dados de 2023, divulgado na segunda-feira 21 pelo Conselho Indigenista Missionário, o Cimi. Mato Grosso do Sul, por sinal, lidera o ranking de episódios de violência física: foram 93 casos no ano passado, incluindo 43 assassinatos. O estado é o segundo com maior índice de ataques ao patrimônio, 190 casos, atrás apenas do Amazonas, com 280 registros.
“À noite, as mulheres não conseguem mais dormir, porque têm de cuidar das suas famílias. Enquanto os filhos dormem, ficamos acordadas na beira do fogo para manter nossos filhos vivos. Eles são o futuro. Se nós tombarmos, queremos que eles permaneçam vivos para levar nossa luta à frente. É muito triste o que estamos vivendo, em ver as crianças nessas retomadas e ter a incerteza no coração, porque em cada passo dado sabemos que a qualquer momento podemos levar um tiro”, lamentou Vilma Vera, liderança Avá-Guarani do Tekoha Y’Hovy, da terra indígena Tekona Guasu Guavirá, no Paraná, durante o lançamento do relatório do Cimi.
“No Paraná, que não era um estado tão violento, eclodiram várias denúncias de três, quatro anos para cá. Todo mundo ali se diz dono de terra e quer expulsar os indígenas. Lá no Mato Grosso do Sul não é novidade, é um lugar histórico de violência, uma situação de genocídio mesmo, não tem trégua, nunca para. São milícias contratadas para invadir a terra atirando, batendo nas pessoas, expulsando na marra. É uma coisa inacreditável, digno de páginas sangrentas dos livros de História”, completa a antropóloga Lúcia Helena Rangel, uma das coordenadoras do relatório do Cimi.
Foram registrados 208 homicídios no ano passado, além de 180 suicídios, a maioria de jovens
De acordo com o documento, em 2023 foram registrados 411 casos de violência contra a população indígena, dos quais 208, pouco mais da metade, foram assassinatos. Além de Mato Grosso do Sul, estão no topo da lista Roraima, com 71 casos, sendo 47 assassinatos, e Amazonas, que registrou 58 episódios de violência (36 assassinatos). Também foram contabilizados abusos de poder, homicídios culposos e lesões corporais dolosas, ameaças de morte e de outra natureza, tentativas de assassinato, racismo e violência sexual. Em relação à violência contra o patrimônio, o maior registro é sobre a omissão e morosidade na regularização de terras, que totaliza 850 dos 1.276 casos, seguido de 276 invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio, e 150 conflitos por direitos territoriais.
Os números superam os registrados no governo Bolsonaro, apesar de algumas iniciativas do governo Lula em favor da população indígena. “Você não tem mais o governo Bolsonaro, mas tem, no Congresso Nacional, deputados e senadores votando o tempo inteiro para acabar com os direitos indígenas. É o marco temporal, é a liberação das terras indígenas para garimpo e para exploração de recursos naturais… Quando o Congresso legitima isso, a gente vê o aumento das invasões. Este Parlamento faz o mesmo papel que Bolsonaro fazia no governo federal.”
O relatório ressalta a omissão do Poder Público. Foram 344 casos de desassistência, sendo mais de 200 no campo da saúde e 61 da educação. Outro dado preocupante diz respeito ao grande número de mortes de crianças de zero a 4 anos. Foram 1.040 registros, liderados principalmente pelos estados do Amazonas (295), Roraima (179) e Mato Grosso (124). O documento ainda acende um sinal de alerta sobre a pressão psicológica e a saúde mental dos indígenas, em decorrência da violência de que são vítimas.
Pelo menos 180 se suicidaram em 2023 e o Amazonas, mais uma vez, está no topo da lista, com 66 casos, seguido de Mato Grosso do Sul (37) e Roraima (19). O consumo de bebidas alcóolicas e drogas ilícitas também tem aumentado. Em nota assinada conjuntamente com a Funai e a Secretaria de Saúde Indígena, o Ministério dos Povos Indígenas reafirma o compromisso com a proteção dos direitos indígenas, cita o pouco tempo de criação do órgão e atribui o aumento da violência à “leniência e chancela em relação a atividades ilegais” na gestão Bolsonaro, deixando “um rastro de destruição do meio ambiente e de violência”. E acrescenta: “Este cenário não só provocou a maior presença do crime organizado em territórios com presença indígena, como também o incentivo ao armamento civil indiscriminado resultando no emprego letal de armas de fogo”. A pasta também diz que o primeiro ano do governo Lula marcou a retomada de políticas públicas voltadas para essa população e que os efeitos podem ser sentidos a curto, médio e longo prazo.
Cita também a “instabilidade” gerada a partir da aprovação do marco temporal e a insegurança jurídica que gira em torno do debate da PEC 48, em tramitação no Senado Federal, que define 5 de outubro de 1988, quando da promulgação da Constituição Federal, como a data para demarcações de terra. “Afetam os povos indígenas, mas abre ocasião para atos de violência que têm os indígenas como as principais vítimas”, diz a nota, elencando algumas ações implantadas pelo governo Lula, como mediação de conflitos, demarcação de terras, desintrusão, defesa dos Yanomâmi e medidas voltadas para a saúde indígena. Durante o lançamento do relatório, Leonardo Steiner, presidente do Cimi, lembrou o histórico de violência que a população indígena enfrenta há mais de cinco séculos, criticou a atuação do Congresso Nacional e ressaltou que vai entregar o documento ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, e ao papa Francisco.
“Os indígenas são testemunhas vivas da ousadia, da perseverança, da luta. Quando os europeus chegaram, diz-se que a população indígena era de 3,5 milhões, outros falam até mais. Hoje, segundo o IBGE, temos 1,7 milhão. Ao longo da história, os povos originários foram massacrados. É uma palavra um pouco agressiva, mas que ainda assim não descreve a realidade de morte, destruição de culturas e o desaparecimento de línguas dessa comunidade. O momento em que atravessamos é extremamente difícil, porque o Congresso perdeu o horizonte da ética, mas perdeu também a moral. Acha que pode impor aos povos indígenas determinadas leis, esquecendo que é a Justiça que possibilita a lei e o direito. E a Justiça não condiz com as leis que estão sendo gestadas e todas as tentativas de retirada de direitos”, destacou Steiner.
Um dos capítulos do relatório do Cimi é dedicado aos povos isolados, a revelar uma vulnerabilidade ainda maior do que aqueles que socializam com os não indígenas. “Nesses territórios não tem proteção, o madeireiro e o garimpeiro não querem saber. Muitas vezes nem o Estado quer saber”, denuncia Rangel. Em 2023, foram registrados 30 casos de invasões, extração de recursos naturais e danos ao patrimônio em territórios isolados. •
Publicado na edição n° 1321 de CartaCapital, em 31 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Marcha genocida’