LEGALIZAÇÃO DA AUSTERIDADE: Camisas de força jurídicas e o mito da dívida pública
por Gustavo Livio
A austeridade fiscal não é uma novidade na história do capitalismo. Como salientou Clara Mattei, talvez com exceção do período de três décadas que se seguiu à 2ª Guerra Mundial, o conjunto de práticas que chamamos de austeridade tem sido o verdadeiro sustentáculo do capitalismo mundial ao longo de sua trajetória (MATTEI, 2023, p. 19). Argumentos contra a dívida pública e a agência estatal na promoção da “riqueza das nações” podem ser encontrados pelo menos desde Hume e sua teoria da neutralidade da moeda (nesse sentido, BLYTH, 2020, p. 160).
Entretanto, creio que a década de 1980 é um bom lugar para começarmos nossa discussão porque foi aí que a austeridade foi alçada à condição de paradigma econômico dominante. Mas antes de avançarmos, o que é um “paradigma” econômico? Uma macroarquitetura institucional que consolida determinada racionalidade econômica dominante que passa a ser praticada independentemente do governo da ocasião. Por exemplo, entre os anos 1930 e 1980 prevaleceu outro paradigma, uma outra racionalidade econômica que se convencionou chamar de desenvolvimentismo. Durante sua vigência, o Estado foi alçado à condição de sujeito econômico fundamental para alcançar alguns objetivos traçados como prioridade: industrialização, pleno emprego e crescimento econômico puxado por estímulos de demanda. Dizer que o desenvolvimentismo era um paradigma econômico significa dizer que essa era a racionalidade praticada tanto por governos de direita quanto por governos de esquerda, guardadas, é claro, as devidas distinções. Para dar o exemplo brasileiro, em 1969, auge da sangrenta ditadura militar-empresarial, o governo Costa e Silva expandiu o gasto público da União em 35% acima da inflação e os investimentos públicos cresceram incríveis 16% em termos reais, algo de dar inveja a qualquer governo de esquerda hoje em dia (ARAÚJO, 2021, p. 271). O milagre econômico brasileiro pode ser explicado por uma conjugação de políticas que hoje seriam classificadas como sendo “de esquerda”: políticas fiscais expansionistas, diagnóstico sobre a inflação como sendo de custos (e não de demanda) e reformas financeiras de grande impacto (que se iniciaram ainda durante o PAEG de Castello Branco) como a criação de um Banco Central, do Sistema Financeiro de Habitação e de um sistema que instituiu a dívida pública como mecanismo que substituiu a emissão de moeda para fins de financiamento do déficit público. Tudo isso enquanto a tortura e a repressão abriam os portões do inferno de um dos períodos mais sombrios de nossa história.
Devemos então nos questionar: por que uma ditadura militar de extrema direita, que tinha todo poder para adotar as políticas econômicas que quisesse, aderiu ao desenvolvimentismo? Porque este era o paradigma da época, aquela arquitetura institucional recheada de uma racionalidade que gerencia o tipo de política econômica aplicada. O paradigma constrange pela força da mimesis, da comparação, da emulação, do que é concebido como “boas práticas” no âmbito mundial.
As conquistas do desenvolvimentismo foram notáveis. Longe de acabar com todos os problemas do mundo, a transformação do Estado em agente econômico teleologicamente orientado para a promoção do desenvolvimento trouxe taxas históricas de crescimento do PIB, aproximações sistemáticas com o pleno emprego e, pelo menos na Europa, a edificação de um robusto sistema de bem-estar social que serviu de exemplo para países subdesenvolvidos como o Brasil. Tudo isso tendo como base políticas econômicas de expansionismo fiscal (direcionadas a um esforço de industrialização), controle sobre os movimentos internacionais de capitais (com barreiras fiscais e tarifárias), sistemas de câmbio fixo ou semifixo e forte presença de empresas públicas nos setores estratégicos da economia. Partia-se do pressuposto de que a economia não pode estar alheia às questões sociais e cabe à política econômica, por meio do protagonismo do Estado, direcionar esforços para aprimorar os indicadores sociais e, no caso dos países subdesenvolvidos, superar a inserção subordinada na divisão internacional do trabalho que é a raiz fundamental da pobreza e de todas as mazelas que lhe orbitam.
E então chegamos na década de 1980, momento de virada de chave em que a austeridade destrona o desenvolvimentismo e conquista o posto de novo paradigma econômico. Todo movimento histórico é um movimento simultâneo de afirmação e negação, de inovação, descarte, retomada e conservação; essa é a dialética da História. E o que o novo paradigma da austeridade nega? Nega, em primeiro lugar, que o Estado deva exercer protagonismo na busca de objetivos tidos como moralmente positivos para a prosperidade comum. Ou seja: pleno emprego, sofisticação da matriz tecnológica, crescimento econômico, essas questões podem ser importantes, mas o Estado não deve meter o bedelho no funcionamento regular do livre-mercado. A partir desta negação fundamental, o novo paradigma afirma um compromisso diabólico com a estabilidade de preços, com o livre fluxo de capitais internacionais a partir de sistemas de câmbio flutuante e um conjunto de amarras institucionais ao gasto público. Tudo isso tendo como base a velha ideia básica do liberalismo: o mercado é uma entidade que se autoregula, que tende ao equilíbrio a partir de seus próprios mecanismos de oferta e demanda; as interferências do Estado costumam perturbam esse equilíbrio quase mágico. Como consequência, a função mais importante do paradigma neoliberal (ou paradigma da austeridade) é manter o Estado acorrentado para que seu expansionismo não perturbe os mecanismos sobrenaturais de mercado. O Estado, o antigo camisa 10 da política econômica, se transforma em vilão a ser contido.
E como acontece essa contenção? Por meio de um aparato institucional tão famoso quanto pouco compreendido, o tripé macroeconômico. Seus pés são: 1) metas de inflação; 2) câmbio flutuante; 3) resultados fiscais equilibrados ou superavitários (o famoso “superávit fiscal”). As coisas funcionam resumidamente assim: o objetivo principal da política econômica não é mais o crescimento econômico ou o pleno emprego, mas a estabilidade de preços. Cabe ao governo criar um “ambiente de confiança” para que os investimentos privados sejam a alavanca principal do crescimento econômico. Para tanto, cabe ao governo fixar o primeiro pé, as metas de inflação; e cabe aoBanco Central o objetivo precípuo de atingir essa meta. Como ele faz isso? Embora a inflação seja um fenômeno extremamente complexo e multifatorial, o novo paradigma basicamente se restringe à manipulação da taxa básica de juros (Selic) como ferramenta de controle inflacionário. O argumento tradicional da ortodoxia econômica diz que todo fenômeno inflacionário é causado por estímulos de demanda; com esse diagnóstico em mente, argumenta-se que a elevação nas taxas de juros desaquece a economia e esse arrefecimento contribui para a queda da inflação. Para que isso funcione, entram em cena os dois outros pés: como a inflação brasileira é determinada essencialmente pelo preço do câmbio (dólar), o BACEN aumenta as taxas de juros (Selic) para atrair investimentos curtoprazistas do exterior (taxas elevadas de juros são atrativas para investimentos financeiros externos) e com isso baixar o preço das divisas. Ao lado disso, o novo paradigma parte de uma presunção arbitrária de que os gastos do Estado são essencialmente inflacionários, razão pela qual o Estado deve atuar tendo como norte o tão propagado “equilíbrio das contas públicas”. Voltarei a esta falácia em breve, mas já podemos observar uma coisa: o pleno emprego, o crescimento econômico, a busca pelo desenvolvimento e a superação da pobreza enquanto objetivos imediatos das políticas econômicas evaporaram, desapareceram. O objetivo imediato é a estabilidade de preços e todo o aparato institucional neoliberal se dedica a alcançá-la. Os demais objetivos ou não existem (não há mais preocupações com o pleno emprego nem com a industrialização) ou são objetivos secundários, alcançados mediatamente a partir da livre operação do mercado em uma economia com preços estáveis. Quando as taxas de crescimento são pífias, a inflação acelera ou o desemprego dispara, já temos uma desculpa pré-fabricada que é automaticamente acionada: o governo não foi liberal o suficiente porque não fez as “reformas” necessárias.
Essa compulsão obsessiva com a estabilidade de preços, em uma primeira aproximação é até compreensível diante dos episódios de hiperinflação observados em vários países a partir da década de 1980. Mas só em um primeiro momento. A hiperinflação observada no período pouco teve a ver com expansionismo fiscal; suas causas, na verdade, estão muito mais relacionadas com o perfil da dívida que era externa e com um acontecimento internacional conhecido como “choque Volcker”, deflagrado em 1979. Neste ano, Paul Volcker, então presidente do Fed, empenhado em retomar a força do dólar, adotou uma política de drástica elevação das taxas de juros estadunidenses para atrair dólares do mundo inteiro. Em um estalar de dedos, as taxas de juros saltaram de 10% para 20%, fato que desencadeou uma “fuga de dólares” dos países periféricos em direção aos EUA. Como os países latino-americanos tinham adquirido dívidas externas lastreadas em dólares, seu preço disparou e tiveram então início episódios sistemáticos de hiperinflação ocasionada pela busca desenfreada de dólares para pagamento das dívidas externas que se multiplicavam sem controle simplesmente porque o preço do dólar disparou. O México declarou moratória em 1982, o Brasil suspendeu temporariamente seu pagamento em 1987 e a Argentina fez o mesmo em 1989. Por conta da estrutura da dívida pública desses países (dívida externa) e do “choque Volcker”, desencadeou-se um padrão inflacionário em toda a região, pois tivemos que travar uma batalha encarniçada para atrair dólares do mundo para pagar a dívida externa (afinal, não somos emissores de dólar). Essa é a causa central da hiperinflação observada no período: um somatório de dívida externa, dependência econômica e fuga de dólares em razão de um acontecimento histórico peculiar. Não tinha nada a ver com o papel do Estado sobre a condução dos rumos da economia e nem com “gastos excessivos do Estado” e sim com o tipo de dívida assumida por esses países (dívida externa). Mesmo assim, o paradigma desenvolvimentista acabou levando a culpa na história e então se iniciou um processo de demonização sistemática da atuação do Estado como agente econômico.
Ora, o problema da inflação era o perfil da dívida: nossa dívida era externa e isso exigiu a atração de dólares para seu pagamento. Como a demanda por dólares aumentou, aumentou também seu preço; como a inflação latino-americana tem seu núcleo dependente do câmbio (não produzimos os insumos necessários para o funcionamento regular da economia; precisamos importar), é só fazer as contas: a disparada da inflação tinha como causa o encarecimento dos encargos de uma dívida externa. Se esse é o diagnóstico, então somente por aí poderíamos resolver o problema. E assim foi feito. Muito se fala do Plano Real e pouco se fala de um outro plano que foi fundamental para a solução da hiperinflação: o Plano Brady. Tratava-se de um plano lançado em 1989 pelo secretário do Tesouro Americano, Nicholas Brady, que envolvia a troca de dívidas bancárias por títulos da dívida negociáveis. O Brasil aderiu ao plano em 1994 e a partir daí começamos a resolver o problema inflacionário. Nos anos 2000, a partir dos governos Lula, construímos uma excelente reserva de divisas internacionais que nos proporcionou um macio colchão para nunca mais termos problemas sérios com inflação. Pois sempre que ela ameaça disparar o Banco Central pode fazer leilão de dólares para desvalorizar o câmbio e com isso arrefecer a inflação.
O ponto é que o desenvolvimentismo acabou levando a culpa e se iniciou um impiedoso processo de demonização do Estado enquanto sujeito econômico ativo. Como em um pacto com o diabo, sacrificamos as pretensões de crescimento econômico em troca de uma estabilidade que não é apenas de preços, mas também do status quo. O desenvolvimentismo almejava a superação da condição de subdesenvolvimento, ele buscava um lugar-outro; ele era tomado por um ímpeto de progresso, de uma força que mobilizava o inconformismo a serviço de um futuro melhor que estava a nosso alcance. O paradigma da austeridade, por outro lado, é paralisante porque desmobiliza o próprio futuro enquanto categoria. A atual ortodoxia defende abertamente que a saída para nossa economia está na “especialização em nossas vantagens comparativas”, leia-se, devemos continuar nos especializando em vender soja e insumos agro-minerais. A estabilidade de preços, a grande meta do novo paradigma, é na prática a estabilidade de uma posição dependente e subordinada na divisão internacional do trabalho. No fundo, é a estabilidade da própria condição de subdesenvolvimento.
O novo estudo de José Gabriel Palma traz dados reveladores sobre a diferença nos indicadores econômicos entre as épocas do desenvolvimentismo (1950-1980) e do neoliberalismo (1980-2019). Esse estudo também coteja a performance econômica da América Latina com os países asiáticos, onde o modelo desenvolvimentista permanece firme e forte até hoje (PALMA, 2025). A China e a Coréia, por exemplo, escaparam com sucesso da “terapia de choque” neoliberal e mantêm, cada uma da sua forma, o Estado como protagonista de uma política econômica a serviço do desenvolvimento. O gráfico abaixo demonstra a evolução histórica comparativa entre o output (leia-se: crescimento econômico), a produtividade e o emprego no Brasil (onde a proposta desenvolvimentista foi interrompida nos anos 1980) e na Coréia (onde modelo desenvolvimentista continua vigente):

Fonte: Palma, 2025.
Entre 1950 e 1980, o Brasil teve uma média estimada de crescimento econômico de 7.4% a.a. Entre 1980 e 2019, essa média decaiu drasticamente para 2.2% a.a. Ninguém supera a condição de subdesenvolvimento com taxas tão baixas de crescimento. Não se nega que a estabilidade de preços seja importante, mas ela não pode se transformar em deusa imaculada a exigir todo tipo de sacrifício. A Coréia do Sul, por outro lado, manteve taxas bastante elevadas de crescimento a partir de um sistema financeiro fundamentalmente público que direciona pesados investimentos para o desenvolvimento e sofisticação da indústria nacional (com destaque para os Chaebols); lá, a preocupação central permanece sendo o desenvolvimento das forças produtivas tendo o Estado como sujeito econômico indutor e ordenador. A comparação com a Coréia é interessante porque entre os anos 1950 e 1980 tínhamos taxas muito similares de output: 7.4% a.a para o Brasil e 7.5% a.a para a Coréia. Estávamos em posições similares no processo desenvolvimentista e muitos tratavam o Brasil como “país do futuro”. A partir da década de 1980, o Brasil adotou “voluntariamente” as ideias do Consenso de Washington e a Coréia manteve firme sua estratégia desenvolvimentista. O resto é história e a linha verde do gráfico é autoexplicativa.
O neoliberalismo acorrentou o Estado por meio do terceiro pé do tripé macroeconômico, a exigência de “resultados fiscais equilibrados”. Agora é hora de destrinchar um pouco essa história para desmistificar a lenda tão propagada de que as “contas públicas” são um problema catastrófico, uma bomba relógio que explodirá em algum lugar imaginário caso o governo não cortes seus gastos.
O primeiro falso problema com as contas públicas é o medo de que o Estado fique sem dinheiro para arcar com seus compromissos. Toda a miríade de expressões relacionadas com a “responsabilidade fiscal” parte dessa premissa. Nesse sentido, o pensamento econômico neoliberal costuma difundir uma analogia pegajosa entre o orçamento de um ente privado (uma família ou uma empresa) e o orçamento do Estado. Você, leitor(a), não pode se endividar além das suas capacidades. Da mesma forma, uma empresa que não conseguir arcar com seus compromissos inevitavelmente fechará as portas porque suas fontes de receita são limitadas. Ora, se isso acontece com uma empresa, então o Estado também poderá falir se os rombos nas contas públicas persistirem por muito tempo. Como todo mundo odeia pagar tributos, então a saída é sempre a mesma: corte de gastos. É por isso que o Estado precisa manter as contas equilibradas. Tudo isso parte de uma premissa central: assim como eu e você, o Estado também pode ficar sem dinheiro para arcar com seus compromissos.
A analogia entre as contas públicas e as contas privadas é uma daquelas falsidades que a ciência ortodoxa dissemina por muitos anos sem ser desmentida porque o raciocínio é pegajoso, é aparentemente lógico porque provoca identificação imediata com uma pessoa comum. Mas se formos ver essa questão mais de perto veremos que o Estado tem uma porção de atributos que eu e você não temos. O Estado, diferente de nós, é um ente dotado de soberania monetária. Ele detém o monopólio legal de emissão da própria moeda, pode vender títulos de sua dívida com uma remuneração que ele mesmo estipula (a taxa Selic), tem um banco central próprio e ainda goza de capacidade de tributação compulsória. Não há qualquer tipo de comparação entre a minha dívida com o banco e a dívida pública interna porque eu não posso criar dinheiro do nada. Desde o fim do sistema de Bretton-Woods em 1971, as moedas nacionais não possuem mais lastro, são puramente fiduciárias e não há mais nada que impeça sua emissão. Seus limites são puramente macroeconômicos, ou seja, a capacidade de acomodação da expansão da base monetária sem que isso desencadeie espirais inflacionárias (e essa não é uma consequência necessária como costumeiramente se difunde por aí). Fora isso, não há problema algum com a emissão de moeda e o Estado faz isso todo santo dia. O ponto é que um Estado soberanamente monetário jamais irá à falência por dívida pública denominada em sua própria moeda; esse é um medo infundado, um terrorismo econômico muito útil para manipular a opinião pública a favor dos cortes de gastos e da elevação das taxas de juros para compensar o suposto “risco da dívida”. Esse ponto é meramente descritivo e sequer está aberto a discussões; mas para que você não acredite apenas nos meus argumentos, trago a conclusão de André Lara Rezende, uma das maiores autoridades no assunto: “Existe risco na dívida pública denominada em moeda estrangeira, mas não existe risco de crédito na dívida pública denominada em moeda nacional” (RESENDE, 2023, p. 68). Não existe nenhum exemplo histórico, nenhum caso sequer de algum Estado que tenha “falido” na própria moeda. Para entidades soberanamente monetárias, a “responsabilidade fiscal” é uma falácia. Ela pode valer para entes que não gozam de soberania monetária (como eu e você, empresas, Estados e Municípios), mas jamais para um país que emite a própria moeda. Mesmo assim, os arautos do neoliberalismo continuam repetindo como papagaios os mantras do “risco Brasil”, da “responsabilidade fiscal”, do “rombo das contas públicas” e outras tolices.
Ora, mas e as crises fiscais da Grécia e da Itália? E as crises das dívidas nos países latino-americanos citadas acima? Como explicar esses casos? Aqui é importante fazer uma distinção fundamental que propositalmente é deixada de lado pelos papagaios da ortodoxia: 1) Dívida interna x dívida externa; 2) Dívida de países soberanamente monetários x dívidas de países que renunciaram à sua soberania monetária. O leitor atento lembrará que as moratórias dos países latino-americanos aconteceram em razão de uma dívida externa. Por que isso é relevante? Porque a soberania monetária é um conceito central para nossa discussão. O Brasil não emite dólares, nossa soberania monetária se restringe à emissão de Reais, como é óbvio. Por isso, a dívida pública interna não é um problema fiscal, em absoluto; a dívida externa, por outro lado, é um problemão. Quando a dívida é externa, é necessário entrar em uma competição por divisas estrangeiras que pode acabar degringolando o sistema de preços nacional, pois, como lembramos, a inflação dos países emergentes é majoritariamente cambial. A Argentina até hoje tem problemas crônicos de dívida externa e essa é a causa central da hiperinflação vivida pelo país. O Brasil, ao contrário, resolveu seu problema com a dívida externa no início dos anos 2000; nossa dívida é essencialmente interna e temos uma boa quantidade de reservas internacionais acumuladas para acomodar eventuais sobressaltos cambiais.
E a Grécia? A Grécia, juntamente com toda a zona do Euro, simplesmente abriu mão de sua soberania monetária em favor do Euro. A Grécia não pode emitir euros por sua própria vontade, e por isso o risco de insolvência é real. Esses países precisam de fato tomar cuidado com o tamanho de sua dívida porque não possuem em suas mãos o teclado de emissão de euros. O Equador, da mesma forma, abdicou de sua própria moeda e adotou o dólar estadunidense como moeda de curso. O Banco Central destes países não tem competência para emitir a moeda circulante no país e isso faz com que o risco de insolvência seja real porque, na situação limite, não será possível emitir moeda para pagar a dívida.
Fora desses casos, o Estado não pode “quebrar”. Os “rombos” anunciados em alto-falante pela mídia tradicional não passam de terrorismo ideológico para justificar cortes de gastos públicos e elevação dos juros com nítidos contornos de classe: taxas de juros nos píncaros aumentam os rendimentos dos rentistas poupadores; cortes de gastos geralmente são direcionados às políticas públicas cujos destinatários são as pessoas mais pobres. Com isso percebemos que o orçamento público é, hoje, uma das principais arenas das lutas de classes.
Desmistificamos brevemente esse primeiro terrorismo. Vamos para mais um, bastante conhecido no jargão econômico como “efeito crowding out” ou “efeito de afastamento”. Em sua forma mais comum, os mitólogos do crowding out argumentam que o Estado precisa realizar empréstimos para se financiar, fato que o leva a competir com outros mutuários por uma oferta limitada de reservas disponíveis. Como existe maior competição por fundos emprestáveis, a taxa de juros tende a subir, o que atrapalha o investimento privado e comprime a atividade econômica. Há algumas variações dessa tese, mas o ponto é que o Estado não deve injetar recursos na economia porque essa ação afastaria investimentos privados.
Uma olhadela para a realidade já bastaria para questionar essa tese. Não significa que não possa existir algum efeito de afastamento, mas o que na prática mais acontece são os efeitos de sinergia entre o gasto público e a economia privada. Há dois fortes argumentos que respaldam essa tese. O primeiro é o dos efeitos multiplicadores. O bolsa família, por exemplo, tem um efeito multiplicador estimado pelo Banco Mundial de 2,16, o que significa que cada dólar investido no programa expande o produto total em 2,16. O beneficiário do programa vai no mercado local comprar mais comida, o mercado se expande, contrata mais trabalhadores, paga mais tributos, os trabalhadores compram mais coisas e assim a roda da economia opera em um circuito virtuoso.
Há ainda um segundo argumento importante: se dividirmos uma economia fechada em dois setores, o privado e o público (abstraindo o setor externo), chegaremos a uma conclusão inafastável: déficits públicos são superávits do setor privado e vice-versa. Contabilmente, tomando como premissa metodológica o princípio das partidas dobradas, não é possível que os dois setores estejam em superávit ao mesmo tempo. Isso significa que déficits públicos não são vilões, são na realidade a injeção de ânimo da economia privada. Do ponto de vista contábil, toda dívida pública é um ativo do setor privado. A dívida pública não é em absoluto uma “dívida de todos nós”, é um ativo de parcela da sociedade (a parcela rentista do andar de cima). Ela não é um problema “de pagamento”, é um problema de desigualdade social.
Vejamos ainda mais um argumento: o PIB se mede a partir da seguinte equação: Y (PIB) = C (consumo das famílias) + I (investimentos privados) + G (gastos do Governo) + (E – I) (saldo de tudo que entra menos tudo que sai do país, exportações menos importações em sentido amplo). Os gastos do governo são de fundamental importância na equação do PIB, seja porque os gastos do governo (G) possuem sinergias positivas com o consumo das famílias (C) e com os investimentos privados (I), seja porque representam um dos termos da própria equação (G). Cortes de gastos públicos exercem pressões tendencialmente recessivas sobre a economia privada porque uma fonte fundamental da equação sofre redução; do outro lado, déficits públicos por meio de expansionismo fiscal desencadeiam efeitos multiplicadores que garantem que a expansão dos gastos públicos não apenas aumente o item “G”, mas também o consumo das famílias (C) e os investimentos privados (I). Essa sinergia acaba produzindo uma elevação do PIB que explica por que as taxas de crescimento econômico durante o período do paradigma desenvolvimentista foram tão superiores àquelas observadas no atual paradigma da austeridade.
A linguagem não é neutra. A mídia utiliza propositadamente a expressão “rombo” nas contas públicas para dar a impressão de que existe um passivo a descoberto que pode resultar em calote. Nada disso é verdade. Podemos dormir despreocupados, o Brasil não se transformará na Argentina e nem deixará de restituir aos seus credores os valores imobilizados com títulos da dívida.
O ponto mais importante de toda essa discussão é que a política fiscal, os déficits e os superávits, não devem ser analisados isoladamente do ciclo econômico. Superávits e déficits não são positivos ou negativos a priori; eles devem ser analisados em conexão com os objetivos previamente estabelecidos e com o momento vivido pela economia; momentos de baixo dinamismo econômico e inflação reduzida demandam déficits fiscais do mesmo modo que períodos de superaquecimento podem demandar contrações e cortes de gastos. Tudo depende dos objetivos previamente delimitados e do momento do ciclo econômico em que nos encontramos. Com isso em mente, as políticas fiscais e monetárias deveriam ter como princípios reitores tanto a flexibilidade para flutuar ao redor do ciclo econômico como as missões constitucionais estabelecidas não só pelo artigo 3º, II e III (desenvolvimento nacional e erradicação da pobreza), mas também por um amplo rol de direitos fundamentais que demandam orçamento público para sua concretização.
A grande estratégia do neoliberalismo para acorrentar o Estado é a retirada da deliberação pública sobre os rumos da política econômica. E é aqui que o Direito entra na jogada: ele cristalizou na legislação uma única forma de condução das políticas fiscais e monetárias ao arrepio do princípio da flexibilidade que deveria regê-las. O mito do déficit e a demonização do gasto público a partir de jargões ilusórios como “rombo das contas públicas” e “responsabilidade fiscal” são ferramentas ideológicas para acorrentar o Estado em camisas de força jurídicas incompatíveis com as missões estabelecidas pela Constituição de 1988.
Se antes da crise de 2008 o paradigma da austeridade funcionava pela via da constrição ideológica, a partir daí o capitalismo percebe que precisa de amarras mais fortes para manter as coisas como estão; e então vieram as famosas “regras fiscais”, que começaram a povoar os ordenamentos jurídicos de diversos países. No Brasil, adotamos o diabólico teto de gastos via Emenda Constitucional 96\2016; depois veio o Novo Arcabouço Fiscal (Lei Complementar 200\2023), que não passa de um outro teto de gastos ligeiramente mais flexível. Mas não estamos isolados: quase todos os países do Ocidente passaram a cristalizar essa forma única de condução da política econômica em regras jurídicas que comprimem o espaço de liberdade do Estado (nesse sentido, MCBRIDE, 2016). Adivinhem quem não adotou regras fiscais? A China, a Coréia e os países asiáticos que continuam apresentando desempenhos econômicos de dar inveja. A China, inclusive, possui metas de déficit porque percebeu a relação entre o gasto público e o crescimento da economia.
Há um componente antidemocrático nisso tudo: o estreitamento da margem de discricionariedade de atuação do governo eleito sobre aspectos tão fundamentais como a condução da política econômica (fiscal e monetária). “Autonomia” do Banco Central e Tetos de Gastos são as mais recentes amarras jurídicas a serviço de um projeto tecnocrático que corre na contramão do programa constitucional de superação do subdesenvolvimento. As regras fiscais removeram um dos aspectos centrais da política fiscal que é o aspecto quantitativo, ou seja, o nível de expansão orçamentária que o governo pretende promover, o “quanto” ele pretende gastar. Não há quantidade sem qualidade, sabemos perfeitamente disso; mas se toda expansão quantitativa é uma expansão qualitativa, então não é possível expandir os serviços sociais, não é possível industrializar o país nem investir em ciência e tecnologia sem expandirmos também o orçamento público. E para isso é preciso desmistificar o terrorismo da “dívida pública”.
A cristalização jurídica da austeridade, que retira o necessário espaço de flexibilidade do governo para a condução da política econômica, é absolutamente incompatível com as próprias diretrizes constitucionais. As consequências estão aí para quem quiser ver. Níveis alarmantes de desigualdade social com o 1% da população possuindo 37% da riqueza nacional; erosão das relações tradicionais de trabalho e níveis crescentes de informalidade com cerca de 35% dos trabalhadores recebendo menos do que 1 salário-mínimo. Poderíamos estipular metas de crescimento, metas de pleno emprego, metas de desenvolvimento da indústria, metas de educação e de investimento em ciência e tecnologia, metas de elevação da produtividade, metas de transição energética… mas escolhemos colocar no pedestal as metas de inflação e as metas de “resultados fiscais equilibrados” como fins em si mesmos sem entender bem o sacrifício que isso demanda. E assim o paradigma da austeridade acorrenta nosso destino aos campos áridos do subdesenvolvimento. É uma estabilidade que vai muito além do preço da moeda, é a estabilidade de um lugar econômico, um lugar subordinado, dependente, subdesenvolvido, onde a miséria e a pobreza convivem lado a lado com a ostentação dos novos bilionários e com esquemas de casas de apostas em uma sociedade cada vez mais estranhada de seu próprio destino.
Gustavo Livio – Doutorando pela PUC-Rio. Mestre pela UFRJ com pesquisa em Direito e Economia. Promotor de Justiça do MPRJ. Integrante do coletivo Transforma MP. Ex-Defensor Público do Estado da Bahia.
Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.
BIBLIOGRAFIA:
ARAÚJO, VICTOR LEONARDO DE. A Macroeconomia do Governo Costa e Silva. In. A Economia brasileira de Getúlio a Dilma – novas interpretações. Org. ARAÚJO, VICTOR LEONARDO DE; MATTOS, FERNANDO AUGUSTO MANSOR DE. 1ª. Ed. São Paulo: Hucitec, 2021.
MATTEI, CLARA. A Ordem do Capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2023.
McBRIDE, STEPHEN. Constitutionalizing Austerity: Taking the Public out of the Choice. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/1758-5899.12271. Acesso em 05.12.2025.
PALMA, JOSÉ GABRIEL. Latin America: how its neo-liberal reforms led to a rentier trilogy of high market inequality, mediocre investment rates and collapsing productivity growth. How to fix a system with so little entropy? Cambridge Working Papers in Economics. University of Cambrigde, Faculty of Economics. Octobre, 2025.
RESENDE, André Lara. Camisa de Força Ideológica: A crise da macroeconomia. 1ª ed. São Paulo: Penguin, 2022.
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