O Colégio Brigadeiro Newton Braga é um orgulho para a Aeronáutica. Desde 1960, quando foi criado pelo governo federal após uma campanha iniciada por dois capitães e um sargento atentos à “necessidade de formar filhos dos civis e militares da Força Aérea Brasileira”, a escola situada na Ilha do Governador, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, é considerada uma das melhores da cidade. Neste ano, a polêmica em torno da demissão pelo CBNB do professor Gustavo Henrique Cornélio, também sindicalista, manchou, no entanto, a reputação do estabelecimento e chegou ao conhecimento do presidente Lula. A demissão, segundo denúncia das entidades representativas dos trabalhadores do setor, pode ser a ponta de um iceberg de perseguição política nas escolas federais militares.

Assim como seus primos mais conhecidos, os Colégios Militares do Exército, o CBNB não é uma escola militar no sentido estrito, mas uma unidade voltada à Educação Básica, formada pelos ensinos Fundamental e Médio. Embora caiba ao Ministério da Educação coordenar o que é ensinado nas escolas federais durante essa fase, unidades do tipo têm natureza híbrida, pois devem prestar contas também ao Ministério da Defesa e ao comando de cada Força, que habitualmente indica seus diretores. Esse contexto nunca foi fácil para os professores concursados, que pela lei são considerados servidores civis das Forças Armadas, mas piorou consideravelmente durante o governo Bolsonaro, quando cresceu o número de denúncias de interferência acadêmica, imposição de conteúdo e cerceamento à liberdade de expressão em sala de aula levadas aos sindicatos de professores ou de servidores federais.

Professor de Geografia na escola militar carioca desde 1984, quando foi aprovado em concurso público, Cornélio é filiado ao PT e em todos esses anos atuou na seção sindical do CBNB. Sua demissão foi assinada em fevereiro pelo comandante da Aeronáutica, o tenente-brigadeiro Marcelo Damasceno, após a instauração consecutiva de três Procedimentos Administrativos Disciplinares. Para muitos, o expurgo é emblemático do método bolsonarista, fato que alertou as entidades como a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação e o Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica, entre outras. “Acompanhamos o caso faz muito tempo, pois foram vários os episódios de perseguição política, que sempre tiveram como causa a atuação sindical desse servidor”, diz ­Manoel Porto, coordenador-geral do Sinasefe.

Com quatro décadas de trabalho sem uma única advertência, o docente foi alvo de três sindicâncias após a direção da escola passar a mãos militares

Desde a demissão, o sindicato nacional expôs a situação de Cornélio em reuniões com a Controladoria-Geral da União e com os ministérios dos Direitos Humanos e Cidadania e da Gestão e Inovação em Serviços Públicos. “Buscamos administrativamente a revisão da decisão do viciado PAD que culminou na demissão do professor”, diz Porto. O caso foi levado ainda à Assessoria da Presidência da República. “Se não obtivermos êxito na reintegração do servidor, adotaremos medidas jurídicas”, alerta o dirigente sindical. A CGU informou a ­CartaCapital ter iniciado uma investigação preliminar que poderá ser transformada em processo administrativo. Os dois ministérios afirmaram que o tratamento ao caso está em análise.

A reviravolta na vida do professor de 69 anos é digna de um roteiro cinematográfico. Após quatro décadas de atuação como docente “sem sequer uma advertência”, como gosta de frisar, Cornélio afirma que a perseguição começou assim que a direção do CBNB passou às mãos dos militares. “A partir do governo Bolsonaro, as coisas começaram a ficar estranhas. Tínhamos diretor civil, mas ele foi exonerado e entrou um coronel. Chegou ao colégio para intervir. Depois entrou um brigadeiro aviador, e aí começou efetivamente a perseguição.” O militar em questão é o brigadeiro do ar Saulo Valadares, que anteriormente havia ocupado o comando da Academia da Força Aérea. Desde dezembro de 2023, o diretor do CBNB é o major-brigadeiro Mauro Marra.

Por conta do posicionamento contrário à direção da escola em assuntos como a conscientização dos alunos quanto à necessidade de isolamento e vacinação durante a pandemia de Covid-19, Cornélio foi objeto do primeiro PAD e, mesmo absolvido pela comissão interna, foi transferido de unidade em outubro de 2021, em pleno mandato de diretor da seção sindical do CBNB. Três meses depois, o Ministério Público Federal manifestou-se sobre a transferência, classificada como “ato administrativo ilegal”, fruto de uma “denúncia viciada”, e em fevereiro de 2022 a decisão foi revertida pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

Despacho. O tenente-brigadeiro Marcelo Damasceno, comandante da Aeronáutica, assinou a exoneração de Cornélio – Imagem: Redes Sociais/FAB

Em março de 2023, ao retornar ao CBNB após licença para se candidatar a deputado estadual pelo PT, Cornélio envolveu-se em uma discussão com a então coordenadora da escola, Aline ­Amoêdo, e levou à direção da unidade uma denúncia por ter sido destratado pela colega durante uma reunião. A coordenadora fez denúncia idêntica contra ­Cornélio e, diante do exposto, Valadares decidiu que deveria ser aberto um novo PAD, mas somente contra o professor.

Como eventuais provas de conluio para a perseguição de Cornélio existem áudios de conversas entre Amoêdo, Valadares e o coronel Carlos Eduardo Barroso Franco, também ex-diretor do CBNB, no período em que o petista estava afastado da escola. Em um dos trechos, a coordenadora afirma que “sem o Gustavo já ficou excelente” e conclui: “Seria muito melhor se a gente conseguisse passar todas as coisas que a gente quer votar, né? A gente, que eu digo, é a galera do bem”. Em outro trecho, Franco diz: “Estou querendo ver se o brigadeiro abre mais um PAD contra o Gustavo”.

Ainda havia mais por vir. Em junho do ano passado, Cornélio, hipertenso, foi agredido nas dependências do CBNB pelo pai de uma aluna com diversos chutes e socos, tudo filmado pelas câmeras de segurança da escola. O motivo alegado pelo pai, que é policial militar e estava armado, foi um suposto assédio sexual feito à aluna por parte do professor, que teria tocado as nádegas da menina no corredor. Após a agressão, sofrida no meio da tarde, mesmo machucado, o docente ficou detido no CBNB até as 3 da madrugada, por ordem da direção, e impedido de ir ao Instituto Médico Legal para exames enquanto os militares “ouviam as testemunhas”. No fim, a direção da escola decidiu denunciar o professor, que respondeu a Inquérito Policial Militar, além de abrir um terceiro PAD, que culminou na sua demissão.

Vídeos de câmeras de segurança desmentem a acusação de assédio sexual contra aluna, aponta um relatório do Ministério Público Militar de fevereiro

A denúncia de assédio é grave, mas o detalhe é que as câmeras de segurança absolvem o professor. Quem diz isso é o próprio Ministério Público Militar em relatório de fevereiro deste ano. “As imagens do vídeo do momento em que o indiciado se encontrava mais próximo da ofendida foram minuciosamente analisadas, mas não mostraram qualquer contato físico. As testemunhas que estavam no momento do fato logo atrás da aluna e do professor foram enfáticas em afirmar que não presenciaram contato físico entre o indiciado e a ofendida”, diz o documento. E conclui: “Não se pode afirmar que o autor do fato praticou contra a suposta ofendida, sem sua anuência, ato libidinoso com o objetivo de satisfazer sua própria lascívia, uma vez que a análise pericial do vídeo e oitiva das testemunhas presenciais não identificou qualquer contato físico”.

CartaCapital teve acesso a todos os áudios e documentos mencionados nesta reportagem. Diante das evidências, a luta pela reabilitação, mais do que corrigir uma injustiça, pretende revelar para uma realidade recorrente nas escolas militares. “Existe uma perseguição flagrante contra professores vinculados ao Ministério da Defesa, que ficam à mercê do comandante de plantão”, diz Lissa Fontenele, do Sinasefe. Procurada, a direção do CBNB não respondeu ao contato até o fechamento desta edição. Já a Força Aérea Brasileira informou, por meio de nota, que a Comissão de Apuração do PAD que resultou na demissão de Cornélio foi “formada por servidores civis estáveis do Comando da Aeronáutica”. O colegiado concluiu que “houve falta de decoro do servidor com militares e civis no CBNB”. A apuração, segundo a FAB, obedeceu “ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório.” •

Publicado na edição n° 1340 de CartaCapital, em 11 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cala-boca’

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Last Update: 05/12/2024