A morte de Sarah Raíssa de Castro, vítima de uma trend conhecida como “desafio do desodorante”, reacendeu o debate sobre a regulação das mídias digitais, tema que se arrasta há alguns anos e enfrenta resistência no Congresso Nacional. A menina, de apenas 8 anos, foi induzida a inalar uma grande quantidade do gás de um desodorante aerossol, provocação no TikTok que produziu uma parada cardiorrespiratória. Em março deste ano, a pernambucana Brenda Sophia Melo de Santana, de 11 anos, morreu em circunstâncias semelhantes. Os dois casos são parte de uma estatística que só cresce no Brasil e contabiliza mais de 50 jovens mortos ou feridos nos últimos dez anos em razão de desafios postados nas redes sociais. E tudo com a omissão, ou conivência, das plataformas digitais, que, informadas a respeito do conteúdo suicida, se calam diante do problema, de olho apenas no lucro que as postagens proporcionam. “As big techs sempre priorizaram o número de cliques, a polêmica e o engajamento em torno de postagens. A apuração de uma informação ou uma postagem sempre foi colocada em segundo plano diante do número de replicações, repostagens e comentários”, afirma o sociólogo Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC e referência na área de soberania tecnológica, privacidade e software livre. A regulação das plataformas digitais, ressalta Amadeu, é determinante para garantir a democracia diante de “um sistema comunicacional baseado no espetáculo e na vontade de quem tem mais poder econômico para monetizar suas postagens”.

A morte de Sarah Castro, de 8 anos, reacendeu o debate, mas governo e oposição não se entendem

Várias propostas tramitam no Congresso com vistas a regular as mídias sociais. A mais avançada é o Projeto de Lei 2630, de 2020, conhecido como PL das Fake News, aprovado no Senado e que chegou a ser encaminhado para votação na Câmara dos Deputados em meados de 2024, mas foi retirado de pauta depois de uma manobra do então presidente da Casa, Arthur Lira. À época, Elon Musk travava uma queda de braço com o ministro do STF, Alexandre de Moraes, que incluiu o dono do X (antigo Twitter) no inquérito de milícias digitais por obstrução de Justiça, incitação ao crime e abuso de poder econômico, e determinou o bloqueio de contas suspeitas na plataforma. Musk amea­çou descumprir decisões judiciais brasileiras e acusou o magistrado de censura. O embate contaminou a discussão na Câmara e facilitou a decisão de Lira de jogar por terra a proposta. “Tivemos a aprovação do regime de urgência, porém uma campanha insidiosa com contornos ideológicos, baseada em mentiras espalhadas pelas big techs e apoio de setores da extrema-direita, deturpou o debate e ele acabou paralisado”, relembra o deputado Orlando Silva, do PCdoB paulista, relator do PL das Fake News. Na ocasião, rememora, foi criado um novo grupo de trabalho para fazer outro relatório, mas o colegiado nunca saiu do lugar. “O PL 2630 apresenta uma abordagem totalizante, trata da responsabilização das plataformas, de preservação da liberdade de expressão dos usuários e de mecanismos de transparência. Ele pode ser um importante balizador do debate, porque passou por inúmeras audiências públicas e contribuições da sociedade civil e de parlamentares”, completa Silva.

Expostos. Crianças e adolescentes não contam com nenhuma proteção – Imagem: iStockphoto

Com o engavetamento do projeto, o Centrão correu para apresentar uma nova proposta, base do PL 4196, do ano passado, de autoria de Silas Câmara, do Republicanos do Amazonas. A tendência é a proposta avançar, até porque setores do governo Lula sinalizam com a possibilidade de um consenso em torno do tema. Antes de deixar a Secretaria das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, atual ministro da Saúde, entregou ao presidente da Casa, Hugo Motta, um documento com as prioridades do governo para os próximos dois anos, no qual estava inserido o debate sobre as regras para o ambiente digital. Padilha deu sinais de que o governo poderia apoiar o projeto do Centrão. “Se a direita e a esquerda e, principalmente, o povo brasileiro quiserem alguma coisa racional, nesta proposta nós temos”, defendeu, à época, o relator, mostrando-se otimista em transformar a proposta em um marco regulatório para as redes sociais com o apoio dos governistas.

O PL 4691 defende a livre manifestação do pensamento na internet, ao mesmo tempo que proíbe o anonimato e responsabiliza as grandes plataformas por possíveis danos causados. Dispõe ainda sobre regras protetivas a crianças e adolescentes e garante o livre exercício da atividade econômica no ambiente digital. O projeto está em análise na Comissão de Educação. O secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, João Brant, não confirma o apoio do governo ao PL do Centrão e diz que o Executivo está debruçado em um projeto sobre regulação das redes sociais que será enviado ao Congresso nos próximos dias. “Nosso projeto vai lidar com a proteção de crianças e adolescente, contra os golpes e fraudes, buscando fortalecer mecanismos de proteção e segurança do cidadão no ambiente digital. A proposta também trata de obrigações das plataformas digitais e da responsabilidade civil e administrativa dessas empresas.”

Sem limites. Musk, dono do X, lidera a ofensiva das big techs contra qualquer tipo de regulação. Zuckerberg aderiu – Imagem: Brendan Smialovski/AFP e Ludovic Marin/AFP

Além dos PLs 2630 e 4196, avança na Câmara o Projeto 2628, aprovado no Senado, que trata especificamente da proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital. A proposta, de autoria do senador Alessandro Vieira, do MDB sergipano, tramita em regime de prioridade e está sob análise da Comissão de Comunicação. Maria Melo, uma das coordenadoras do Instituto Alana, ONG que atua há quase 30 anos na defesa da criança e do adolescente, vê com bons olhos a proposta, porque, dentre outros pontos, proíbe o delineamento e a divulgação de dados pessoais de menores capazes de identificar grupos e interferir nos comportamentos e preferências de consumo. “Fazer com que esse público esteja protegido no ambiente digital passa necessariamente pela regulação das plataformas. A gente sabe que a origem do problema é multifacetada, mas o ambiente desregulado, o interesse comercial e o lucro sobrepondo-se aos interesses da população, em particular de crianças e adolescentes, acabam por estimular muito outros problemas”, diz Melo. “É preciso que aconteçam episódios trágicos, como a morte dessas crianças, para que o tema volte à baila? Não dá mais para ignorar a urgência desse debate.”

Na segunda-feira 21, um movimento puxado pela psicanalista Vera Iaconelli tentou realizar uma greve digital de 24 horas, iniciativa que terminou ofuscada pela morte do papa Francisco, acontecimento que gerou grande comoção nas redes sociais. A proposta surgiu depois da morte de Sarah e visava alertar para os riscos que os conteúdos em circulação nas plataformas digitais representam para crianças e adolescentes, muito bem ilustrados na série Adolescência, uma produção da Netflix. Com apenas quatro episódios, o seriado conta a história de um adolescente que, contaminado por uma campanha de ódio e misoginia nas redes sociais, assassina uma colega de turma. “É urgente lutar pela regulação das novas mídias e de seus modelos de negócio, que distorcem a subjetividade, alimentam o ódio e incitam à violência”, ressalta Iaconelli. “Para atrair e prender a atenção das maiorias, as redes sociais estimulam o sensacionalismo e a espetacularização, utilizam temas, assuntos e palavras preferidas de grupos de usuários, privilegiando conteúdos que geram engajamento. Isso prende a atenção, desperta a curiosidade. A notícia não precisa ser verdadeira, deve apenas ser espetacular”, pontua Amadeu. Segundo Iaconelli, uma nova edição da greve digital está em planejamento. “Quem conseguiu abster-se das redes, total ou parcialmente, teve uma experiência do que é você estar no controle, não estar submetido a elas. A gente quer que os usuários entendam que as redes são para a gente usar, não ser usado por elas.”

Um projeto aprovado no Senado avança na proteção de crianças e adolescentes

Brant enumera iniciativas em curso do governo Lula com vistas a controlar as ações das big techs, antes mesmo de encaminhar um projeto específico sobre o tema para o Congresso, como o Crescer em Paz, lançado recentemente pelo Ministério da Justiça. O programa, dentre outros aspectos, trata do acesso a ambientes digitais e consumo de conteúdos online de crianças e adolescentes, por meio de informações às famílias, e auxilia na investigação de crimes digitais. Em março deste ano, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República publicou o documento Crianças, Adolescentes e Telas – Guia Sobre Usos de Dispositivos Digitais, com orientações voltadas à utilização segura de tecnologias por parte desse público. A publicação alerta sobre a vulnerabilidade dos adolescentes a conteúdos nocivos, como cyberbullying, assédio, desafios perigosos e gatilhos emocionais. O governo anunciou ainda a Estratégia Brasileira de Educação Midiática, um conjunto de iniciativas voltadas à promoção de habilidades críticas para uso das mídias pela população.

Atropelado. O projeto relatado por Orlando Silva perdeu-se em meio à “polarização” – Imagem: Jefferson Rudy/Agência Senado

No início deste ano, Mark ­Zuckerberg, diretor-executivo da Meta, grupo empresarial que controla o Facebook, o Instagram e o WhatsApp, anunciou o fim do programa de checagem de fatos e controle de conteúdo divulgado pelas plataformas, uma decisão tomada anteriormente pelo X. “É uma autorregulação que muitas vezes modera conteúdos LGBTs, do movimento negro, das mulheres, para atender aos interesses econômicos da plataforma”, destaca Ramênia Vieira, coordenadora-executiva do Coletivo Intervozes, entidade da sociedade civil que tem como principal bandeira o direito humano à comunicação. Em janeiro último, a Meta também divulgou a receita da empresa em 2023. Foram 48,8 bilhões de dólares, aumento de 20,7% ante as cifras do ano anterior. Só no último trimestre do ano passado, a plataforma obteve lucro líquido de 20,8 bilhões de dólares, quase 50% a mais do que no mesmo período de 2023, que foi de 14 bilhões de dólares. “São empresas que fazem parte de um setor econômico e, como todo setor econômico, devem e têm de ser reguladas. Ganham muito dinheiro, muitas vezes com a desinformação e com o discurso de ódio”, dispara Vieira. •

Publicado na edição n° 1359 de CartaCapital, em 30 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Caiu na rede é peixe’

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Last Update: 24/04/2025