Já é bem conhecida a produção literária de Graciliano Ramos. Trata-se de uma vasta criação de contos, crônicas jornalísticas e romances: dentre estes últimos, é possível selecionar quatro grandes obras que formam as bases fundamentais que mais marcam o seu legado. Como um paralelogramo, são quatro grandes romances que em cada vértice representam-se um grande ponto nodal. E é possível dizer com segurança que, em que pese os contos e outros romances e memórias, será com a leitura destas quatro grandes obras fundamentais que um leitor poderá com segurança conhecer a obra de Graciliano Ramos.

“Caetés” é o primeiro deste conjunto, concluído no ano de 1929. “São Bernardo”, publicado em 1934, representaria outra segunda obra fundamental, dois anos antes do escritor ser preso pela ditadura do Estado Novo varguista, sob suspeita de aliança junto aos comunistas – fato que seria igualmente objeto de dois volume de memórias, “Memórias do Cárcere”. A terceira obra fundamental do universo criado pelo escritor é “Angústia” de 1937. E, finalmente, sua obra de maior repercussão junto ao público e que certamente teria maior conteúdo político (sem cair numa arte superficialmente panfletária), “Vidas Secas”, livro lançado em 1939.

Caetés, São Bernardo, Angústia e Vidas Secas são 4 romances que possuem algo que poucas manifestações artísticas são capazes de remeter: as expressões psicológicas de personagens observadas desde pontos de observação privilegiados de forma a fazer com que seus problemas, uma vez localizados em situações geográficas muito bem determinadas (o sertão nordestino em “Vidas Secas”, o engenho do coronel Paulo com as pequenas propriedades dos roceiros em “São Bernardo”, e por aí vai) mas com dramas universais.

Entretanto, há de se constatar talvez algo que é intuitivo: Caetés é o primeiro romance do escritor e aquilo que poderíamos resumir como “análise psicológica” que é amplamente esmiuçada a partir de São Bernardo em seguinte, ainda é aqui algo um pouco experimental. A sensação que o leitor tem ao conhecer os “4 pontos cardeais” de Graciliano Ramos é que certamente “Caetés” é um romance um pouco fora da curva.

“Caetés” significa mais do que o tema do livro histórico que cuida da atenção de João Valério: entre o tempo que passa só ou em busca de um amor cheio de culpas junto a Luíza, o tempo junto aos parceiros da Pensão, da redação do semanário da “Semana”, na Casa Comercial, nas festas da igreja e outros eventos populares miúdos ou junto aos inúmeros personagens que o rodeiam todos os dias quase como numa roda circulante, tem-se a percepção que a vida nos termos de um jovem solitário pequeno burguês que “tem passado a criar deuses, que morrem logo, ídolos que depois (derruba)” – remete aos mesmos termos dos índios caetés – remetemos o leitor aqui a imagem de índios que dançam sob a forma de um círculo.

Esta é a percepção de João Valério, diante de um fim que envolve tragédia, monotonia e… humor:

“Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não sabia o que se passava na alma de um Caeté. Provavelmente o que se passa na minha, com algumas diferenças. Um caeté de olhos azuis, que fala português ruim, sabe escrituração mercantil, lê jornais, ouve missas. É isso, um caeté. Estes desejos excessivos que desaparecem bruscamente… Esta inconstância que me faz doidejar em torno de um soneto incompleto, um artigo que se esquiva, um romance que não posso acabar… O hábito de vagabundear por aqui, por ali, por acolá, da pensão para Bacurau, da Semana para casa de Vitorino, aos domingos pelos arrebaldes; e depois dias extensos de preguiça e tédio passados no quarto, aborrecimento sem motivo que me atiram para cama, embrutecido e pesado…”

De acordo com o crítico literário Wilson Martins, o escritor Graciliano Ramos, já em plena maturidade literária, passou a ter uma opinião excessivamente negativa acerca de seu romance de estreia. Todavia, essa excessiva falta de indulgência com sua obra de estreia não se justifica. “Caetés” é um romance que se sobressai diante da produção literária nacional, senão pelos aspectos que centralmente marcam a obra de Graciliano Ramos posteriormente como questões existenciais que perpassam as análises das personagens, mas como um romance sobre costumes e com descrições de personagens dentro de um estilo mais próximo do realismo/naturalismo.

Para os marxistas, a questão se coloca em questões adicionais: Graciliano Ramos aderiu ao PCB em 1945 (logo após o término da II Guerra) e a convite da embaixada soviética, fez uma viagem àquele país que resultou num livro amplamente favorável ao país dos sovietes, denominado “Viagem”. Mesmo antes de 1945, ainda que nunca tenha adotado uma literatura francamente político-partidária, é possível identificar elementos relacionados às contradições da concentração fundiária (Vidas Secas), o predomínio/centralização da força política e do domínio sob todos os aspectos do Coronelismo (Paulo Honório) em São Bernardo, e assim em diante. Em “Caetés” o interesse projeta-se na ideia da literatura enquanto espelho da sociedade: saímos da leitura com boas noções da realidade social de uma cidade provinciana do Brasil de início dos anos XX, da forma como se dava os eventos culturais, religiosos (quando a Igreja ainda tinha uma maior relevância e influência social). O patriarcalismo e a diferenciação social dos bacharéis quando da briga de Valério com o promotor durante um jogo de sinuca revela uma crítica que teria sido engendrada aos extremos e com brilhantismo por Lima Barreto: a cultura do bacharelismo, do Diploma, do discurso rebarbativo que prevalece a forma sobre o conteúdo. Trata-se de uma história social que também é descrita com objetividade e realismo por aquela geração de escritores modernistas. Este interesse pelo passado e a descrição viva da história cultural é dentre os 4 romances cardeis de Graciliano Ramos mais observado especificamente em Caetés.

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Última Atualização: 25/07/2024