A última turnê de Caetano Veloso deixou muitos de seus fãs com um ponto de interrogação na cabeça: por que ele decidiu dialogar com a cultura gospel? A explicação foi difusa e, em alguns círculos, mal recebida. Estaria Caetano, um dos maiores poetas da nossa época, “passando pano” para o fundamentalismo religiosos? A escolha de cantar Deus cuida de mim, do pastor e compositor Kleber Lucas, veio de seu interesse pelo crescimento das igrejas evangélicas no Brasil, como ele mesmo afirmou.
O público progressista, em grande parte, considerou inadequado que Caetano e sua irmã, Maria Bethânia, incluíssem uma canção gospel no repertório – ainda mais em um momento em que esse grupo religioso é amplamente associado ao preconceito, ao reacionarismo e ao autoritarismo. Vi seu show em dezembro, e passei dois meses matutando esse tema. Caetano deveria ter se explicado melhor? Ele cruzou uma linha perigosa?
Cheguei a algumas conclusões que gostaria de compartilhar.
A arte constrói pontes
A arte tem o poder de conquistar mentes e corações, de criar vínculos, afetos e diálogos. Se a famosa máxima “precisamos dialogar com os evangélicos” vale para as eleições, por que não deveria valer para a cultura? Ao cantar Deus cuida de mim, Caetano demonstrou respeito e abriu uma porta para um possível diálogo.
O ascetismo e o sectarismo evangélico são parte do que torna esse diálogo difícil. Mas ele não será construído com repúdio e isolamento. O esforço de aproximação deve partir de nós – e precisa ir além da lógica do convencimento. Não se trata de “salvar” ninguém. Não somos Jesus Cristo.
Kleber Lucas é um aliado na luta democrática
Kleber Lucas não é um nome qualquer no cenário gospel. Além de pastor e cantor respeitado, é um defensor da democracia e um opositor do fundamentalismo religioso. Celebrante do casamento de Lula e Janja, ele é também uma figura central no movimento antirracista evangélico e se dedicou ao estudo das questões raciais nas canções batistas entre os séculos XIX e XX.
O desconhecimento do campo progressista sobre aliados como Kleber Lucas reflete um elitismo que homogeneíza e descarta o que não compreende. O preconceito contra os evangélicos se baseia, muitas vezes, na rejeição às lideranças midiáticas e ao poder institucional das igrejas. Mas a classe trabalhadora evangélica é muito mais diversa do que se costuma imaginar. Antes de julgar Caetano e sua escolha musical, será que seu público conhecia a história por trás da canção e de seu autor?
Evangélicos são sujeitos políticos, não objetos de campanha
Conversar com evangélicos costuma ser um esforço de última hora, nos 45 minutos do segundo tempo das eleições – geralmente no segundo turno. De repente, vale tudo: café, bolo, panfletagem na porta da igreja. Mas sempre à distância, como se o contato com essa cultura fosse um risco de contaminação.
Essa lógica desumaniza. Reduz os evangélicos a um alvo eleitoral, sem espaço para trocas reais. Quando recusamos a possibilidade de escutá-los, de entender suas práticas e de incluí-los em espaços simbólicos importantes – como um show de Caetano Veloso –, reforçamos essa exclusão.
Afinal, o que pode vir de bom da cultura gospel? A resposta está nas figuras que resistem dentro dela: Benedita da Silva, Margarida Alves, a bispa Mariann Edgar Budde, que enfrentou Donald Trump. E tantos outros brasileiros que, sim, podem gostar de cantar Deus cuida de mim.
Troca, e não concessão
Longe de mim romantizar o evangelicalismo brasileiro, o fundamentalismo religioso ou a indústria gospel. Mas se queremos construir pontes, precisamos estar dispostos a trocar. E não podemos repetir a lógica dos colonizadores: não é oferecendo espelhinhos que vamos conseguir o que queremos.