Em Por Que a Democracia Brasileira Não Morreu?, recentemente lançado pela Companhia das Letras, os cientistas políticos Marcus André Melo e Carlos Pereira optam por ignorar os debates contemporâneos sobre transformações de regimes políticos e insistem na identificação da ruptura institucional como o único indicador de crise ou colapso das democracias. Assim, malgrado admitam certo malaise institucional e certo cinismo cívico compatível com altos níveis de desconfiança pública nas instituições políticas, não as tomam como indicadoras de crise, senão como evidência da robustez do sistema político brasileiro pós-88.
O presidencialismo multipartidário teria mostrado todo o seu vigor, inobstante a abreviação forçada do mandato de dois presidentes e a prisão de um terceiro (quando liderava a corrida presidencial), sem mencionar a ascensão de um aspirante a autocrata à Presidência da República e os ataques que coordenou, a partir do Palácio do Planalto, às instituições, que culminaram com a invasão e depredação das respectivas sedes dos Três Poderes.
Alguém poderia supor que tamanha cegueira verte de uma postura opositora-desafiadora (genuína ou de matriz estratégica), mas essa abordagem privaria o leitor a priori de algumas boas análises que os autores oferecem. A evidência do esforço de articulação teórico-analítica tampouco autoriza tamanha precipitação na avaliação do argumento de que nunca houve uma ameaça crível à democracia brasileira depois de 1988. Por fim, não cabe qualquer suposição quanto ao peso da orientação ideológica dos autores sobre a tese que articulam, argumento que poderia ser facilmente revertido em desfavor dos críticos, especialmente em uma era de pós-verdade.
Essas são apenas algumas boas razões para se avançar com o enfrentamento respeitoso do argumento dos articulistas políticos. Eis o primeiro ponto: malaise institucional e cinismo cívico não são categorias intercambiáveis. Envolvem uma dinâmica intraelites, no primeiro caso, e societária, no segundo. Cidadãos cínicos não são críticos, ao contrário, a crítica é uma dimensão da política que, como tal, se opõe ao cinismo cívico. Sob um pressuposto democrático, não alcanço a conclusão de que os brasileiros se tornaram mais críticos e, talvez, positivamente mais cínicos, conforme argumentam os colegas.
Ainda é menos razoável supor que essa transformação viria da efetividade dos controles democráticos. Eis o segundo ponto: o malaise institucional e o cinismo cívico detectados só podem afirmar-se como decorrência das escolhas políticas de determinados governantes, como alternativa à explicação institucional, diante de um contrafactual que os autores não podem oferecer. Nenhum dos governos no pós-88 operou sob as mesmas bases institucionais, malgrado o presidencialismo de coalizão ter atraído para si a condição de frame analítico predileto dos cientistas políticos.
Nesse tocante, convém destacar o fato de que apenas os governos do Partido dos Trabalhadores, a partir de 2003, conviveram com uma dinâmica de disputa política da agenda anticorrupção que extrapolou não apenas a lógica da coalizão, mas também o próprio sistema político, facultando acesso à elite judicial. A Lava Jato, em particular, não alterou apenas conjunturalmente a política nacional. Foi o ponto alto de um processo incremental de mudanças institucionais que deslocou as condições de governabilidade estabelecidas sob o marco constitucional.
A Lava Jato foi o principal elemento detonador não apenas da derrocada do presidencialismo de coalizão que culminou no impeachment heterodoxo de Dilma Rousseff, mas também do recrudescimento da erosão da democracia brasileira, cuja maior expressão foi a eleição e o governo de Jair Bolsonaro. Certamente, outros fatores colaboraram para o ambiente de crise. A literatura especializada em Ciência Política tem apontado para a redução dos poderes e recursos à disposição do presidente para gerir a coalizão, o que, certamente, constrange suas escolhas. Em ambos os casos, os cientistas políticos sinalizam os limites estruturais do presidencialismo de coalizão em face de potenciais governos cindidos. É o desvelamento desse processo que ancora as preocupações com a trajetória recente da democracia brasileira.
A defesa da resiliência da ordem constitucional não se constitui como um contraponto satisfatório à percepção generalizada do processo de autocratização que atravessou o Brasil na última década. O outro da resiliência é a ruptura, de modo que a teoria dificilmente captura os processos mais ou menos sutis de –degradação da institucionalidade, de que a persistência do malaise institucional e do cinismo cívico dão testemunho. E, definitivamente, não me parece ser aquele caso em que, distraídos, venceremos. •
Publicado na edição n° 1321 de CartaCapital, em 31 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Corpo estendido no chão’