BRICS, Irã e o papel incômodo do Brasil
por Maria Luiza Falcão
Israel atacou o Irã mais uma vez. O Irã revidou. Mísseis voam entre Israel e Irã provocando destruições em ambas as partes. Países do Golfo temem que o conflito se alastre e se transforme em uma Guerra Regional. O mundo assiste em silêncio — ou com aplausos discretos vindos de Washington, Londres ou Bruxelas. O argumento é o velho conhecido: Israel estaria apenas “se defendendo” como foi aventado na reunião do G7, no Canadá, esta semana. A pergunta que precisa ser feita, com todas as letras, é: com que direito?
A justificativa oficial sempre gira em torno do direito à autodefesa, consagrado na Carta da ONU. Desde quando esse direito autoriza um país a atacar outro soberano sem aprovação do Conselho de Segurança, sem uma ameaça iminente clara e admitindo, formalmente, a autoria da agressão? Aliás, não podia ser de outra maneira já que hoje assistimos bombardeios pela televisão, tablets e telefones celulares, em tempo real!
Israel tem repetido essa prática por anos. Ataca alvos iranianos na Síria, faz sabotagens dentro do próprio Irã, bombardeios com drones ou mísseis de longo alcance. E agora, com a escalada em Faixa de Gaza e no sul do Líbano, o confronto se aproxima perigosamente de um ponto de não retorno. Em vez de desescalar, Israel amplia a zona de conflito —sob o comando de Benjamin Netanyahu e com o respaldo ou a complacência de aliados que deveriam estar defendendo o direito internacional, não distorcendo-o para caber em seus próprios interesses.
Segurança para quem?
É compreensível que Israel, um país com histórico de guerras e cercado por vizinhos hostis, esteja constantemente em estado de alerta. O medo não é fantasia. Transformar esse medo em licença permanente para atacar quem quiser, quando quiser, onde quiser, é outro assunto. A segurança de um país não pode vir à custa de genocídios em outros, como vem ocorrendo na Faixa de Gaza e na Cisjordânia ou causando medo e instabilidade global para todos que anteveem uma Terceira Guerra Mundial.
O Irã também não é uma potência inocente. Apoia milícias armadas, desafia o Ocidente em várias frentes, e seu regime tem um histórico de violações internas graves. Mas a pergunta continua válida: Israel pode unilateralmente se colocar acima da ONU e agir como polícia da região se arvorando de ser o único país no Oriente Médio que pode ter armas nucleares? Porque se a resposta for “sim”, então que paremos de fingir que há um sistema multilateral funcionando.
O silêncio barulhento do Ocidente
Imagine por um segundo se fosse o Irã bombardeando o território israelense com o argumento de estar “se protegendo” de ações futuras do Mossad – Instituto para a Inteligência e Operações Especiais, responsável pela espionagem fora de Israel.
O mundo entraria em colapso. Washington convocaria o Conselho de Segurança em minutos. Sanções choveriam. Quando é Israel que ataca, o mundo fecha os olhos. Esse é o retrato claro do duplo padrão internacional.
O silêncio não é neutro. É barulhento. E tem consequências: reforça o sentimento de injustiça no Sul Global, enfraquece a legitimidade das instituições internacionais e empurra países como Brasil, Rússia, China, Índia, África do Sul a construírem outras plataformas de poder — o BRICS, por exemplo — onde esse tipo de assimetria é questionado. O grupo não para de crescer. Aos cinco países originários já se somaram Emirados Árabes, Egito, Etiópia, Irã e Indonésia. O Vietnam torna-se oficialmente o décimo país parceiro do BRICS, juntando-se a Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Malásia, Nigéria, Tailândia, Uganda e Uzbequistão.
BRICS, Irã e o papel incômodo do Brasil
É aí que entra um novo fator na equação: o Irã agora faz parte do BRICS. Isso muda tudo. De coadjuvante, o país passa a integrar um bloco que pretende disputar liderança global — e que, em 2025, se reúne no Brasil, poucas semanas antes da COP 30, também em solo brasileiro.
Isso coloca o presidente Lula em uma encruzilhada estratégica. O Brasil sediará dois dos encontros mais importantes do ano: a cúpula dos BRICS (em julho, no Rio de Janeiro) e a conferência climática da ONU (em novembro, em Belém). Um tratando da complexa geopolítica; outro da sobrevivência planetária. Em ambos, o conflito entre Israel e Irã será um fantasma presente. E o governo brasileiro será cobrado a se posicionar — ainda que sua tradição diplomática prefira o equilíbrio, a mediação de conflitos.
De um lado, os membros do BRICS, agora com Teerã à mesa, exigirão um discurso firme contra intervenções unilaterais e pela soberania nacional. A ideia é levar uma posição conjunta à Conferência de Belém. De outro, os países do G7 chegarão à COP 30 cobrando “responsabilidade” e tentando controlar a narrativa sobre segurança internacional e direito de defesa e transição energética. Lula terá que navegar com cuidado — mas também com coragem. Neutralidade, neste caso, pode significar irrelevância.
A escalada como política
O problema é que, ao transformar a lógica da guerra preventiva em política de Estado, Israel contribui para o que já se tornou um ciclo vicioso no Oriente Médio: uma escalada permanente que nunca chega a um fim. A cada novo ataque, a radicalização aumenta. A cada nova morte, cresce o ódio que sustenta as milícias. A cada explosão, diminui a chance de uma saída diplomática.
E o mundo paga essa conta. Não só em vidas, mas em energia mais cara, cadeias produtivas instáveis, aumento da corrida armamentista e, o que talvez seja mais urgente: desvio completo da agenda climática. Como esperar avanços na COP 30 com o Oriente Médio em chamas e o petróleo mais uma vez no centro da crise?
Trump 2.0: gasolina e fósforos
Como se tudo isso não bastasse, Donald Trump de volta ao poder — em seu segundo mandato, age como se os Estados Unidos fossem um exército solitário a serviço de suas convicções. Trump não apenas aplaude os ataques israelenses: estimula o confronto, sabota mediações multilaterais e trata o Oriente Médio como de seu interesse pessoal no tabuleiro global.
A diplomacia virou teatro. A ONU virou obstáculo. E qualquer país que se oponha à lógica do “poder pela força” corre o risco de ser rotulado como inimigo. Com Trump de volta à Casa Branca, a paz – mote de sua campanha à presidência dos Estados Unidos -, virou palavra proibida nos corredores de Washington.
Donald Trump exigiu, na terça-feira (17), a “rendição incondicional” do Irã, ameaçou matar o líder supremo do país, Ali Khamenei, e usou a palavra “nós” ao se referir aos esforços de guerra de Israel em uma sugestão de que os EUA podem aderir ao conflito contra a nação persa.
O que está em jogo
Não se trata aqui de escolher lados entre Israel e Irã. Trata-se de escolher o lado do direito internacional, da estabilidade global e do bom senso. Não podemos aceitar que um país — por mais ameaçado que se sinta — se arrogue o direito de atacar outro país soberano fora de qualquer regra coletiva. Isso abre um precedente perigoso. Para todos.
Hoje é o Irã. Amanhã pode ser qualquer outro fora do eixo de “confiança” do Ocidente. E o que restará da ordem internacional quando cada nação resolver se defender daquilo que acredita que um dia pode vir a acontecer?
Com o Irã no BRICS, e o BRICS no Brasil, o mundo olha para o presidente Lula. Ele não poderá apenas acolher as cúpulas. Terá que liderá-las.
Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA.
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