
Originalmente publicado em O Cafézinho
Elias Jabbour, presidente do Instituto Pereira Passos, criticou o Itamaraty pela questão venezuelana e defendeu que os BRICS assumam responsabilidades na defesa da paz mundial. Analisou a desordem mundial desde 1999, criticou a resposta dos BRICS aos ataques contra o Irã e defendeu uma nova arquitetura financeira internacional. Para Jabbour, existe uma “guerra do norte global contra o sul global”.
Se quiser ouvir ouvir pelo Spotfy:
Abaixo, a íntegra de seu discurso, levemente adaptada a linguagem escrita e apenas com alguns subtítulos para efeito de clarificação:
Base teórica: os BRICS como tendência histórica
Eu vou aqui não entrar naquele senso comum de que o BRICS é importante, que o BRICS representa x% da humanidade, x% da produção de petróleo, x% da produção de alimentos, ou x% da produção industrial do mundo. Acho que todo mundo aqui sabe o que são os BRICS.
E uma leitura profunda da lei do desenvolvimento desigual do Lênin vai nos entregar uma entrega teórica, uma possibilidade teórica para compreender o que são os BRICS hoje. Então não é nenhuma novidade também.
Ou seja, na esteira da crescente financeirização dos países, a tendência à erosão dos países centrais é a tendência do surgimento de novos polos de poder no mundo, por conta da crescente exportação de capitais dos países centrais. Nenhuma novidade disso. Então os BRICS são uma tendência historicamente colocada.
“Me senti envergonhado do papel do Itamaraty”
Eu vou direto ao assunto aqui, também um pouco em cima da minha experiência em loco multilateral, que é o Novo Banco de Desenvolvimento. O seguinte: primeiro, eu acho que os BRICS são um projeto cujas contradições internas fazem com que a sua velocidade de desenvolvimento esteja mais lenta do que o nosso desejo.
E aqui eu faço um registro muito claro: eu me senti envergonhado, enquanto brasileiro, do papel que o Itamaraty cumpriu no processo, um, de ter barrado a entrada da Venezuela nos BRICS, e dois, na negação do convite à Venezuela para a participação dos BRICS.
Eu me senti vergonhado, inclusive, com o papel que o Itamaraty tem cumprido no Brasil já desde o golpe de 2016. Acho que alguém tem que falar isso. Pessoal, desculpem o Fabiano. Alguém tem que falar isso. Porque fica muito essa coisa acadêmica, bonitinha, que vai dar aquela volta, sabe? Não, pessoal.
Acho que as coisas têm que ser ditas, têm que ser repetidas, porque eu acho que isso que está acontecendo nas relações do Brasil com a Venezuela e nas relações do Brasil com os BRICS, no que se refere ao Itamaraty, é uma verdadeira infâmia.
Eu queria deixar isso muito claro. Reito que dar nome aos fenômenos é uma arte de liberdade, né? E a academia brasileira hoje também serve para não dar nome a nada, né? É muita volta que nós damos para falar das coisas.
Primeira responsabilidade: defesa da paz mundial
Os BRICS têm sobre os seus ombros uma responsabilidade. A primeira: a defesa e a proteção da paz mundial.
Então os BRICS têm que ser capazes de se coordenarem entre si com o intuito de jogar papel, de fato, e não somente na retórica, para a preservação da paz mundial.
E acredito que a reação dos BRICS ao ataque estadunidense e de Israel ao Irã foi uma resposta muito tímida, muito diplomática e muito tímida. Eu acho que esse é um ponto que tem que ser colocado e não tem para onde correr.
Por quê? Porque o ataque ao Irã não foi um ataque para derrotar o Irã, não foi. Foi um ataque contra os BRICS e do ponto fulcral ou entreposto ferroviário, rodoviário, da nova Rota da Seda.
E também de um país que assinou há quatro anos atrás um acordo de 400 bilhões de dólares que envolve uma troca de energia por infraestruturas. E que é a primeira grande troca entre países do sul global que subverte a tendência da deterioração dos termos de troca.
Essa tendência da deterioração dos termos de troca dos países, e esse acordo entre China e Irã, ele é um turning point, vamos dizer assim, dessa tendência. Então não foi um ataque contra o Irã e uma resposta muito tímida.
Eu acho que essa questão da paz mundial é fundamental e os BRICS têm que ser mais proativos em relação a isso.
3 bilhões de pessoas reféns das dívidas
O segundo ponto: os BRICS têm que entregar novas formas de financiamento ao desenvolvimento. E uma solução concreta e objetiva para as dívidas internas e externas dos países do sul global.
Hoje 3 bilhões de pessoas vivem com seus países entregando mais recursos para dívida interna e dívida externa do que para educação e saúde. Mais de 3 bilhões de pessoas vivem essa condição hoje no sul global.
Qual que é a resposta dos BRICS a essa questão? Vai ser discutido isso aqui na cúpula? Eu acho que não. O Itamaraty não é muito fã de discussão.
É só vocês verem, por exemplo, o que foi a trilha financeira do G20. Não sei se vocês leram esse documento, que para mim é um dos documentos mais reacionários da história da nossa política externa. Ou seja, de um lado, um discurso moral de combate à fome, um discurso moral que muitas vezes é feito, e por outro, uma trilha financeira que busca aprofundar uma ordem de coisas neoliberal.
Nova arquitetura financeira: além da moeda única
Então acho que essa questão que envolve o financiamento do desenvolvimento e a outra, que é mais estratégica ainda, é sobre a construção de uma outra arquitetura financeira internacional.
Ninguém está aqui pedindo para construir uma nova moeda dos BRICS. Mas sim um sistema digital de pagamento, um sistema digital financeiro e até de investimento.
E ao lado disso, buscar efetivamente uma integração produtiva, financeira, comercial, de investimento total entre os países dos BRICS.
Porque hoje, por exemplo, o caso do Brasil. Por que o Brasil tem relações comerciais e de investimento com a China, enquanto que as relações nossas com os outros países dos BRICS são muito, muito irrisórias?
A desordem mundial começou em 1999
Agora, tem uma questão: fala-se muito de uma nova ordem mundial. Eu fico surpreso com o que o Celso Amorim descobriu só hoje, que o mundo mudou. Acho que o mundo mudou em 99, o mundo mudou em 91 primeiro, depois em 99.
Quando começa a desordem? Esse é o meu ponto de vista.
A desordem começa em 1999, com 70 dias de ataque à Iugoslávia seguidos. A desordem começa também com a financeirização, o aprofundamento do processo de liberalização financeira dos EUA pós-Clinton, que levou o mundo a consolidar uma ordem financeirizada da economia mundial.
E essa ordem financeirizada, ela entrega o que para a humanidade? Mais instabilidade, crises econômicas, que antes eram mais espaçadas, cada 25 anos, passam a ser cada vez menos espaçadas temporalmente, e cada vez mais profundas.
E depois vem, muito claramente, a invasão do Iraque em 2003. A invasão do Afeganistão. Em seguida vem a crise financeira de 2007, 2008, 2009.
China: a primeira resposta socialista pós-91
E aqui eu vou universalizar, porque não é a resposta somente à crise de 2007, 2008 e 2009, e sim a primeira grande resposta que o socialismo entrega em âmbito mundial pós-91.
O que acontece na China hoje não é porque a China administra melhor o capitalismo ou tem instituições que rejeitam a financeirização. O que acontece na China hoje é a construção de uma outra forma histórica que orgulha muito o socialismo, e nós temos que universalizar isso.
Então acho que essa crise de 2007-2008 ela entrega isso: as impossibilidades do liberalismo e as amplas possibilidades que o socialismo ainda pode entregar para o mundo.
Cinturão e Rota: o período popular da história
A China se transforma em um país com uma potência comercial, uma potência industrial, uma potência financeira, capaz, inclusive, de inaugurar alguma coisa nova que o nosso professor Milton Santos trazia: a China inaugura com a iniciativa Cinturão e Rota, que o professor Milton Santos chamaria de período popular da história.
Ou seja, é um período em que toda a humanidade vai começar a ter acesso aos frutos da Revolução Técnico-Científica.
A iniciativa do Cinturão e Rota deve ser vista nesses termos: substituição da globalização capitalizada pela grande finança por uma outra globalização baseada na exportação de valores de uso por parte da China e também exportação de capitais produtivos.
“Guerra do norte global contra o sul global”
Essa questão da desordem do caos, que vai de Belgrado até Gaza, porque eu acredito que o genocídio, o ataque ao Irã, e o surgimento de uma proxy war na Ucrânia, nada mais é do que uma rebelião armada contra a ordem liberal que busca humilhar a Rússia de forma contínua desde o final da União Soviética.
Ao mesmo tempo em que ocorrem as ocorrências do genocídio em Gaza, onde o Ocidente perde completamente o véu da moralidade, ou seja, a imoralidade se transformou em uma coisa naturalizada completamente.
O que leva a uma conclusão muito clara. Existe uma guerra do norte global contra o sul global. Não uma guerra somente contra Gaza ou contra o Irã, porque a guerra contra Gaza e contra o Irã são expressões de algo maior, que é uma guerra contra o sul global.
Tarefas históricas para os BRICS
Os BRICS têm que ter condições de entender isso em torno de como o sul global vai se defender dessa nova investida do norte global, e como que os BRICS vão ter condições de entregar para o mundo possibilidades de desenvolvimento para o sul global.
Daí vem essa questão da desdolarização, da criação de outros meios de pagamento e um papel muito mais prático do Novo Banco de Desenvolvimento, porque hoje o banco não pode jogar um papel que ele deveria jogar, por conta da atuação dos bancos centrais que impedem a operacionalização do arranjo dos contingentes de reserva.
Por isso, é muito a se fazer, são tarefas históricas que a gente coloca.
Eu quero muito agradecer a chance de expor um pouco aqui as minhas ideias. Um forte abraço, um beijo no coração de todo mundo. Valeu!