
Uma alteração nas regras do débito automático implementada pelo Banco Central em 2021, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), está sendo usada por empresas para realizar cobranças indevidas em massa contra aposentados do INSS. A medida, que retirou a obrigatoriedade de autorização prévia do cliente quando a cobrança parte de outra instituição financeira, abriu brechas para grupos empresariais debitarem valores sem consentimento explícito dos consumidores.
Antes da mudança, os bancos precisavam da confirmação do correntista para efetivar um débito automático. Agora, se a cobrança vier de uma empresa financeira autorizada pelo BC, essa etapa foi dispensada. O Banco Central disse na época que a medida reduziria débitos indevidos, mas o efeito foi oposto: milhares de aposentados, muitos de baixa renda e com pouca familiaridade com serviços bancários, tiveram suas contas descontadas sem autorização.
Empresas aproveitam brecha e ações judiciais disparam
Uma investigação do UOL identificou que pelo menos três grupos empresariais passaram a usar financeiras de pequeno porte – vinculadas a eles mesmos – para realizar cobranças automáticas de aposentados. São eles:
– Aspecir, que debita valores para a União Seguradora, de mesmo controle acionário
– Eagle, que realiza débitos em nome da Verbin Seguros (também chamada Clube Conectar), administrada pelos mesmos sócios da financeira
– Sudacred, que efetua cobranças automáticas para o Sudaclube, clube de benefícios do mesmo grupo econômico
Segundo levantamento do Escavador feito a pedido do UOL, essas empresas foram alvo de 67 mil ações judiciais na última década. O número explodiu após a mudança regulatória: em 2020, foram registrados 1,4 mil processos; em 2024, o total saltou para 31,7 mil – um aumento de mais de 2.000%.

Condenações e indenizações milionárias
Em setembro de 2023, Sudacred e Sudaclube foram condenadas a pagar R$ 1,5 milhão em danos morais coletivos após ação do Ministério Público de São Paulo. A decisão citou práticas como falsificação de contratos, indução de idosos à contratação e cobranças sem autorização.
“As empresas privam os aposentados de recursos essenciais para sua subsistência”, destacou a sentença. As companhias negaram irregularidades e afirmaram que todas as vendas seguem a regulamentação.
Já a União Seguradora, ligada à Aspecir, viu sua arrecadação saltar de R$ 50 milhões em 2021 para R$ 198 milhões em 2024, enquanto os sinistros pagos caíram drasticamente. Em 11 estados, onde a empresa concentrou 25% da arrecadação, nenhum sinistro foi quitado no período.
Bancos também são responsabilizados
Em 15 mil das 67 mil ações analisadas, os bancos foram processados junto com as empresas. O Bradesco lidera o ranking, respondendo por 80% dos casos, seguido por Itaú, Caixa, Banco do Brasil e Santander.
As instituições alegaram que seguem as normas do BC, mas especialistas criticaram a falta de mecanismos de verificação. “Os bancos não podem confiar cegamente em financeiras terceirizadas. Precisam garantir a idoneidade dessas cobranças”, disse Ricardo Teixeira, da FGV.
O Banco Mercantil foi o único entre os sete maiores bancos de aposentados que manteve a exigência de confirmação do cliente, mesmo após a mudança.
Questionado, o Banco Central afirmou que os bancos não estão proibidos de adotar medidas extras de segurança, mas não fiscalizou se as instituições estão verificando a legitimidade das cobranças.
A Febraban, que representa os bancos, argumentou que a norma do BC “amarra as mãos” das instituições, impedindo-as de exigir autorização prévia.