Foi mais do que oportuna a inciativa do presidente Luís Inácio Lula da Silva de encomendar um Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) que está sendo desenvolvido sob a coordenação do Ministério da Ciência e Tecnologia. Afinal, esta é uma indústria em expansão nos países desenvolvidos e que deve dominar o cenário da economia nesta e nas próximas décadas. Segundo projeções da empresa de consultoria Statista, o mercado mundial de IA deve atingir, ao final deste ano, US$ 184 bilhões, chegando em 2030 a US$ 826,7 bilhões.
E o Brasil não pode, como em outras tecnologias de ponta, ficar refém dos conglomerados de tecnologia estrangeiros, limitando-se ao subalterno papel de usuário de produtos e serviços fornecidos por estas empresas. Se queremos alterar nossa posição na divisão internacional do trabalho, temos que investir em P&D e inovação para criarmos empregos de qualidade no país e não somente empregos de baixa produtividade.
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O PBIA tem que ser articulado com o Nova Indústria Brasil que, no meu entendimento, é um dos três eixos que deveriam compor um programa de desenvolvimento para o país, para articular em torno dele os diferentes segmentos da sociedade. Os outros dois eixos seriam, também, programas já lançados por Lula: o PAC, que concentra investimentos em energia, óleo e gás, Minha Casa, Minha Vida e obras de infraestrutura, prioritariamente; e o Plano de Transformação Ecológica.
O PBIA, que atualiza a atual Estratégia Brasileira de IA, focada no uso de sistemas de IA, deverá ser apresentado na 5a Conferência de Ciência e Tecnologia, marcada para os dias 31 de julho e 1 de agosto. Chamou-me a atenção que a versão preliminar que circula no interior do governo, segundo artigo do sociólogo Sérgio Amadeu e da jornalista Lia Ribeiro Dias publicado no site GGN, mantenha o foco no uso de IA e no desenvolvimento de aplicativos, sem dar ênfase ao desenvolvimento de tecnologias essenciais para a indústria de IA, como os modelos.
Se o artigo estiver correto em relação ao conteúdo da versão preliminar, é importante que o PBIA seja mais audacioso. É verdade que o desenvolvimento de modelos exige elevados investimentos, mas nem por isso devemos nos resignar em sermos só produtores de aplicativos para os modelos das empresas estrangeiras – o mercado de IA é liderado por empresas dos Estados Unidos; o segundo maior investidor na área é a China. Com isso, só vamos reforçar o poder desses oligopólios de tecnologia.
É mais do que claro que não se pode pretender que o Brasil seja autossuficiente na produção de sistemas de IA, nem que, no curto prazo, vá integrar o seleto grupo de líderes dessa indústria. Mas no médio e longo prazo, poderá construir seu espaço na indústria de IA. Temos que acabar com o complexo de vira-lata, de que tecnologias disruptivas só podem ser desenvolvidas pelas multinacionais de tecnologia porque o país não tem capacidade de investimento. Isso só em parte é verdade. Se o PBIA definir em que áreas atuar e concentrar recursos e foco, pode, sim, desenvolver tecnologia no coração da indústria de IA e não somente soluções secundárias, que mantêm e ampliam nossa dependência tecnológica que, no caso da indústria de IA, é mais complexa do que a que experimentamos no mundo industrial.
Um bom exemplo que deve ser levado em conta pelos formuladores do PBIA é o da Itália. O país, hoje, não tem relevância de IA. Mas está buscando um caminho próprio. O Sapienza NLP – Grupo de Pesquisa em Processamento de Linguagem Natural da Universidade Sapienza de Roma anunciou, em abril deste ano, o lançamento dos modelos Minerva, uma nova família de modelos de linguagem treinados do zero para o idioma italiano. Os modelos, baseados em base de dados de código aberto de mais de 500 bilhões de palavras, visam atender a uma ampla gama de necessidades de aplicação, desde a compreensão da linguagem natural até a geração de texto, da tradução automática ao suporte automatizado ao cliente.
Em suas falas sobre o PBIA, Lula tem dito que quer uma Inteligência Artificial que fale “brasileiro” e que o Sul global venha a ter sua IA para competir com a indústria do Norte. No caso brasileiro temos universidades com centros de pesquisa de excelência, um sistema de financiamento que pode ser adaptado para finalidades estratégicas e empresas de tecnologia que podem ser parceiras de projetos de desenvolvimento de IA. E temos os dados, o principal insumo para o desenvolvimento de sistemas de IA.
O Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços está trabalhando em um projeto para adensar a cadeia da indústria de IA no Brasil e negocia com o BNDES recursos para apoiar o desenvolvimento de modelos de linguagem por três empresas brasileiras de tecnologia.
Política de dados
Pelo que se sabe, a versão preliminar do PBIA também não menciona a necessidade de uma política de proteção dos nossos dados públicos e estratégicos. Mas esta política é essencial para o próprio desenvolvimento da indústria de IA, pois o treinamento de modelos demanda uma grande quantidade de dados: bilhões e até trilhões de parâmetros.
A União Europeia já despertou para a necessidade de medidas de proteção econômica de seus dados – até então, a preocupação estava centrada em políticas de proteção da privacidade dos dados de cidadãos e empresas e na defesa de direitos. E a China anunciou, recentemente, que vai promover reformas relacionadas à alocação orientada do mercado de elementos de dados e colocar ativos de dados (ativos intangíveis) nos balanços das empresas. Com isso, espera estimular as empresas a desenvolver e usar dados, promover sua circulação e o comércio de recursos de dados e capacitar o desenvolvimento econômico e social.
O governo brasileiro também começa a olhar para a importância dos dados na economia. Em seu discurso na Cúpula do Mercosul no dia 8, em Assunção, no Paraguai, o presidente Lula defendeu uma política de soberania digital. “A governança regional de dados no Mercosul é vital para nossa soberania futura e para o desenvolvimento da IA (…) É preciso habilitar a região a desenvolver capacidade própria de coletar, processar e armazenar dados, insumo fundamental para avançar no desenvolvimento tecnológico e na digitalização da indústria regional”.
Em artigo que publiquei no Congresso em Foco, comentei que a economia dos dados impacta de forma distinta países desenvolvidos e países periféricos dependentes. Pela simples razão de que os países centrais são os que desenvolvem as tecnologias de ponta e detêm a infraestrutura tecnológica e legal que suporta a produção e armazenamento das bases dados, enquanto os países dependentes são consumidores de tecnologia e exportadores de matérias-primas e produtos de baixo valor agregado.
Diante desse cenário de crescimento exponencial das bases de dados e da concentração de seu armazenamento – cinco empresas detêm 80% do mercado –, o que vem ocorrendo é que os dados dos países periféricos em poder do Estado (também de países centrais, mas estes contam com o enforcement regulatório que mitiga em parte o poder abusivo das companhias de tecnologia) estão sendo transferidos de infraestrutura própria pública para bases de dados de companhias de tecnologia estrangeiras e, muitas vezes, armazenados fora do país.
A preocupação com a soberania dos dados tem que estar no centro da política pública de qualquer país e, com mais razão, de um país como o nosso, que precisa dar um giro vigoroso para alterar sua posição na divisão internacional do trabalho. Só com investimento em pesquisa e inovação vamos conseguir desenvolver tecnologias de ponta, como os sistemas de IA, e criar as condições para a produção de produtos de maior valor agregado.
José Dirceu é ex-ministro-chefe da Casa Civil, ex-deputado federal (PT-SP) e ex-deputado estadual pelo estado de São Paulo
Publicado no Metrópoles
Última Atualização: 15/07/2024