Do Blog da Boitempo
Brasil: opções futuras
Em razão dos 104 anos de Celso Furtado neste dia 26 de julho, relembramos o ensaio “Brasil: opções futuras”, de 1999, publicado no n.34 da Margem Esquerda, a revista da Boitempo, com apresentação de Gilberto Bercovici.
Por Celso Furtado
Apresentação,
por Gilberto Bercovici
Em setembro de 1999, Celso Furtado proferiu a conferência “Brasil: opções futuras” no seminário “O desenvolvimento: o fato e o mito”, organizado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, onde retomou suas preocupações com o subdesenvolvimento e o futuro do Brasil.
A superação do subdesenvolvimento significa a construção de um Estado nacional autônomo, rompendo com a situação de dependência. O desenvolvimento não é mero crescimento econômico, envolve transformações estruturais profundas. Se não ocorrem essas transformações, trata-se de mera modernização, que mantém as estruturas de dominação e perpetua o subdesenvolvimento.
É necessário, assim, uma política deliberada e planejada de desenvolvimento. Furtado defende que o Brasil, em seu processo de formação econômica, deve constituir um sistema econômico nacional, baseado na expansão do mercado interno, por meio de um processo de desenvolvimento vinculado a reformas estruturais. Já seus opositores promovem o modelo dependente ou associado, com preponderância das empresas multinacionais e do sistema financeiro internacional, vinculado às oscilações da economia mundial. Com a globalização e o neoliberalismo, o modelo dependente comprometeria os fundamentos do sistema econômico nacional e as possibilidades de futuro do Brasil.
Celso Furtado, de modo preciso e elegante, enuncia as dificuldades que o Brasil enfrentava com a globalização neoliberal. Sua capacidade analítica é de tamanha atualidade que ele chega a antever a possibilidade de implantação de um regime autoritário de tipo fascista como resposta às tensões sociais no Brasil. Furtado enfatiza que os desafios impostos ao Brasil continuam sendo preservar a unidade nacional e a continuidade da construção de uma sociedade democrática e igualitária. Nada mais adequado para marcar o centenário de nascimento de Celso Furtado que a republicação e a leitura deste texto, preciso e atual, tanto no diagnóstico quanto na solução: a necessária retomada de um projeto nacional de desenvolvimento.
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Brasil: opções futuras1
Refletir sobre a configuração futura da economia mundial é mera conjectura intelectual, pois o próprio do capitalismo é sua imprevisibilidade. Dessa evidência pretende-se inferir que o conceito de longo prazo é de escassa validade analítica em se tratando de macroeconomia. Uma empresa de ação transnacional necessitaria apoiar-se em projeções de longo prazo para aumentar a eficácia das decisões de investimento, mas isso seria inadequado no caso de uma economia nacional.
Nosso objetivo é demonstrar que esse raciocínio é inconsistente com respeito a uma economia no estágio de desenvolvimento da brasileira, de marcada heterogeneidade estrutural e regional. Isso porque os mercados só engendram decisões globalmente coerentes em países que alcançaram um avançado grau de homogeneidade social. O certo é que um projeto orientador de uma política nacional de desenvolvimento faz-se tanto mais necessário quanto maior é a heterogeneidade social caso se pretenda elevar o nível tecnológico. Em casos extremos, em que o Estado nacional inexiste (estatuto colonial), a política de desenvolvimento torna-se impraticável. Mas não é o caso das atuais economias chamadas subdesenvolvidas. A situação dessas é, sem lugar a dúvidas, complexa, pois as forças dominantes são geralmente heterogêneas, dificultando a obtenção de um consenso social.
Uma análise caso por caso é, portanto, imprescindível, pois uma mudança na conjuntura internacional pode ter efeitos muito diversos de país para país. No caso do Brasil, é flagrante a diferença entre a situação presente de desastroso endividamento externo e de desequilíbrio nas contas públicas e a situação, por exemplo, dos anos 1930, quando o dinamismo do mercado interno comandava o processo econômico, sendo o acesso ao financiamento externo muito limitado.
Sem dúvida, houve condições históricas que tornaram possível e mesmo inevitável a prática de uma política de desenvolvimento. As forças sociais dominantes pressionaram nessa direção. Outras circunstâncias podem favorecer a emergência de lideranças carismáticas, inclusive populistas, as quais conseguem mobilizar forças sociais heterogêneas e mesmo tradicionalmente antagônicas. Não se trata de aceitar a tese do determinismo histórico, pois o poder criativo dos homens se sobrepõe a todos os constrangimentos, mas de identificar os fatores que circunscrevem o exercício desse poder.
Meu objetivo é explorar as modificações que estão ocorrendo na delimitação desse espaço em que se manifesta a criatividade política. Dois conceitos nos ajudam a ordenar as ideias sobre esse tema complexo: o de globalização e o de rentabilidade social. O fato de que seja necessário articular a problemática que emerge nesses dois planos de análise nos adverte para a complexidade da matéria. De início, deve-se ter em conta a necessidade de superar os limites da análise econômica para incorporar fatores de natureza política. Tanto no plano nacional como no global, as variáveis econômicas ligam-se intrinsecamente às estruturas de poder e o fenômeno político torna-se tanto mais difícil de captar quanto sua origem deixa de ser a simples detenção de capitais para assumir a forma de controle de inovações tecnológicas.
Consideremos o processo de globalização. A importância do comércio exterior para o crescimento de todas as economias foi reconhecida desde os primórdios da Revolução Industrial. A teoria ricardiana dos custos comparativos foi a primeira explicação consistente do processo de desenvolvimento induzido pela divisão internacional do trabalho. Por outro lado, o protecionismo não foi outra coisa senão uma teorização sobre os efeitos positivos do represamento da demanda em benefício dos investimentos ligados ao mercado interno. De uma ou outra forma, o dinamismo era induzido por decisões de política econômica. A industrialização brasileira é um caso clássico de crescimento por indução externa mediante subsídios às importações de equipamentos.
O que existe de novo na globalização atual é que ela se faz pela desestruturação dos sistemas produtivos existentes em benefício das grandes empresas que planejam seus investimentos em escala internacional. Assim, a indústria automotora que se instalou no Brasil há meio século em função das perspectivas de crescimento do mercado interno vem se reestruturando no nível dos processos produtivos num espaço multinacional. Do ponto de vista das empresas, isso apresenta vantagens evidentes, a começar por economias de escala de produção resultantes da terceirização que permite dividir com outras empresas os riscos de prejuízos causados pela maior instabilidade da demanda efetiva decorrente da globalização.
A globalização aumenta consideravelmente o poder das grandes empresas em suas negociações com as autoridades locais e, particularmente, com os assalariados que emprega. Daí o declínio do poder sindical que se observa por todas as partes, e não apenas nos países subdesenvolvidos.
Uma chave para perscrutar o futuro da civilização globalizada está exatamente nesse ponto: o dinamismo, mas também a instabilidade do sistema capitalista, fundam-se no controle da acumulação por uma minoria que exerce o comando político. É a predominância dessas forças que está na raiz da tendência à concentração da renda, bem como das crises de insuficiência de demanda efetiva e de desemprego estrutural. O poder dos sindicatos de assalariados encontrou espaço para crescer porque exerceu o importante papel de corretor de insuficiência de demanda. Nesse sentido, pode-se afirmar que a difusão do poder político à qual deu origem a ascensão do assalariado pela sindicalização foi fundamental para o desenvolvimento da sociedade capitalista. Também se pode afirmar que, sem essa difusão do poder político, a sociedade capitalista teria perdido impulso de crescimento ou teria assumido a forma de regimes totalitários.
Para captar a especificidade do subdesenvolvimento econômico, faz-se necessário retomar a visão histórica do sistema de divisão do trabalho em escala internacional. Os países exportadores de produtos primários obtinham aumentos de produtividade com base em simples realocação de recursos, diferenciando-se estruturalmente daqueles que se beneficiaram do aumento de produtividade física decorrente da introdução de novas tecnologias.
Surgiu assim a “brecha” de produtividade a que se referiram os primeiros estudos da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe). O subdesenvolvimento é o estágio em que se acham os países que acumularam importante atraso no plano tecnológico. A redução dessa brecha fez-se cada vez mais difícil em razão de os países subdesenvolvidos terem se tornado dependentes da importação de inovações tecnológicas. A redução da referida brecha somente foi alcançada naqueles países que se dotaram de um sistema tecnológico autônomo, vale dizer, onde prevaleceu, na orientação dos investimentos, o conceito de rentabilidade social. Isso nos leva a concluir que o subdesenvolvimento somente pode ser superado mediante a adoção de um conjunto coerente de políticas públicas. A racionalidade dos mercados conduz inexoravelmente à consolidação ou à ampliação da brecha, o que tem sido comprovado pela experiência histórica.
As inovações que alimentam o desenvolvimento são de natureza técnica ou estética. Se observarmos um produto qualquer que simboliza o progresso, digamos o automóvel, veremos que a curva de sua evolução é marcada por fases em que prevalece o avanço técnico e outras em que são mais notórios os ganhos estéticos. É fácil perceber que se as inovações se limitassem ao plano da técnica, cedo elas saturariam o mercado, acarretando aumentos dos salários e baixa dos investimentos. A introdução de novos modelos é essencial para manter o padrão de distribuição de renda. Portanto, podemos afirmar que a inovação fundada no mero progresso técnico ampliou sua eficácia à medida que se apoiava na capacidade do homem de inventar valores estéticos. Certamente, os valores estéticos podem emergir independentemente das inovações técnicas, assim como podem ser influenciados por elas, conforme se observou desde cedo no caso da música. Em síntese, os valores estéticos, juntamente com os éticos, traduzem o gênio humano em sua forma mais nobre e requerem uma proteção que só as políticas públicas integradas num projeto de desenvolvimento social podem assegurar. Sem essa visão de conjunto, a dimensão técnica se impõe por si mesma e acarreta um processo de desestruturação cultural.
Fiz referência ao fato de que dois conceitos nos ajudam a captar o sentido das transformações atualmente em curso: o de globalização e o de rentabilidade social. Este segundo conceito se refere à ordenação das decisões econômicas no quadro dos sistemas políticos nacionais. Na sua fase primário-exportadora, o Brasil foi uma economia relativamente fechada, pois as exportações dificilmente alcançavam um décimo da produção nacional. Isso significa que o mercado interno sempre foi uma referência básica para os tomadores de decisões econômicas.
As decisões estratégicas eram, evidentemente, condicionadas por fatores externos ligados à situação do balanço de pagamentos. Mas, ao debilitar-se esse constrangimento externo – o que aconteceu após a grande crise de 1929 –, o país iniciou uma longa fase de crescimento essencialmente apoiado no mercado interno. Esse crescimento engendrou um sistema de produção orientado para uma utilização seletiva da reduzida capacidade de importação e apoiado em forte proteção de áreas de escassa capacidade competitiva. Sem lugar a dúvida, essa política contribuiu para consolidar a unidade nacional, ao criar reserva de mercado para excedentes de produção regionais que perdiam seus mercados externos, e estimulou os subsídios aos investimentos em atividades estratégicas, em grande medida, de iniciativa do Estado.
Esse sistema de produção integrado em escala nacional tinha peculiaridades ligadas à história de um país continental em processo de ocupação territorial e grande mobilidade demográfica. São poucos os países com essas características, e todos, inclusive os Estados Unidos, que são um caso especial, são economias relativamente fechadas. Esse tipo de país tem certamente grande possibilidade de crescimento, mas isso requer uma política adequada. Tratando-se de um país subdesenvolvido, caso do Brasil, o essencial é saber usar a limitada capacidade de importação para absorver tecnologia no quadro de políticas públicas que tenham em conta as peculiaridades do estágio de desenvolvimento.
Se o objetivo estratégico é conciliar uma taxa de crescimento econômico elevada com absorção do desemprego e desconcentração da renda, temos de reconhecer que a orientação dos investimentos não pode subordinar-se à racionalidade das empresas transnacionais. Devemos partir do conceito de rentabilidade social a fim de que sejam levados em conta os valores substantivos que exprimem os interesses da coletividade em seu conjunto. Somente uma sociedade apoiada numa economia desenvolvida com elevado grau de homogeneidade social pode confiar na racionalidade dos mercados para orientar seus investimentos estratégicos. Essa discrepância entre racionalidade dos mercados e o interesse social tende a agravar-se com a globalização. O problema parece simples no caso da indústria automotora, pois as empresas são de capital estrangeiro e o avanço tecnológico significa aumento dos custos em divisas. Mas, tratando-se de empresas nacionais, o mesmo fenômeno pode se apresentar, pois a tecnologia mais avançada também se traduz em aumento de custos em divisas com crescente pressão na balança de pagamentos. Contudo, não é esse o problema principal e sim o impacto negativo no plano social. A tecnologia tradicional que segue a linha do fordismo tende a ser substituída pela organização em equipes em busca de flexibilidade, o que reduz a capacidade dos assalariados de se organizar em poder sindical. Esse problema se apresenta de forma aguda no capitalismo mais desenvolvido, a começar pelos Estados Unidos, e está na raiz da tendência generalizada para a concentração da renda.
Alcançamos, assim, o âmago do problema colocado pelo avanço tecnológico. A orientação assumida por este traduz a necessidade de diversificar o consumo dos países de elevado nível de vida. As inovações nas técnicas de marketing passaram a ter importância crescente. A sofisticação dos padrões de consumo dos países ricos tende a comandar a evolução tecnológica. Só assim se explica o desperdício frenético de bens descartados como obsoletos e as brutais agressões na fronteira ecológica.
Regressamos, portanto, ao início de nossa exposição quando afirmamos a imprevisibilidade da evolução do sistema capitalista. Seu dinamismo é compulsivo e leva a fases recorrentes de tensões de resultados imprevisíveis. Grandes destruições causadas por guerras abriram o caminho a fases de extraordinária prosperidade. É dentro desse quadro de incertezas que devemos indagar em que direção caminhará nosso país? Se adotamos a tese de que a globalização constitui um imperativo tecnológico inescapável, que levará todas as economias a um processo de unificação de decisões estratégicas, teremos de admitir que é reduzido o espaço de manobra que nos resta. O Brasil é um país marcado por profundas disparidades sociais superpostas a desigualdades regionais de níveis de desenvolvimento, portanto frágil em um mundo dominado por empresas transnacionais que tiram partido dessas desigualdades.
A globalização opera em benefício dos que comandam a vanguarda tecnológica e exploram os desníveis de desenvolvimento entre países. Isso nos leva a concluir que países com grande potencial de recursos naturais e acentuadas disparidades sociais – caso do Brasil – são os que mais sofrerão com a globalização. Isso porque poderão desagregar-se ou deslizar para regimes autoritários de tipo fascista como resposta às tensões sociais crescentes. Para escapar a essa disjuntiva, temos que voltar à ideia de projeto nacional, recuperando para o mercado interno o centro dinâmico da economia. A maior dificuldade está em reverter o processo de concentração de renda, o que somente será feito mediante uma grande mobilização social.
Temos que preparar a nova geração para enfrentar grandes desafios, pois se trata, por um lado, de preservar a herança histórica da unidade nacional e, por outro, de continuar a construção de uma sociedade democrática aberta às relações externas. Como as possibilidades de crescimento do mercado interno são grandes, há espaço para uma colaboração positiva da tecnologia controlada por grupos estrangeiros. Numa palavra, podemos afirmar que o Brasil só sobreviverá como nação se se transformar numa sociedade mais justa e preservar sua independência política.
Nota
1 Por solicitação do Centro Celso Furtado, que gentilmente cedeu à Margem Esquerda este documento inédito, reproduzimos a transcrição exatamente como ela nos foi enviada, sem nenhuma revisão ou edição. (N. E.)
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Celso Furtado foi um economista e intérprete do Brasil. Foi da equipe original da Cepal e criou e dirigiu a Sudene até 1964, tendo atuado como ministro do Planejamento no Governo João Goulart. Escreveu diversos livros, dentre os quais Formação econômica do Brasil (1959).
Gilberto Bercovici é professor titular de direito econômico e economia política da Faculdade de Direito da USP e presidente do conselho deliberativo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.
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