Concessão do visto a Haddad expõe alívio momentâneo em meio a uma ofensiva que mistura retaliação política e guerra econômica contra o Brasil
A notícia da concessão do visto ao ministro Fernando Haddad pelos Estados Unidos não deve ser lida como um gesto de boa vontade ou de normalidade diplomática. Deve ser entendida pelo que verdadeiramente é: a evasão momentânea de uma crise fabricada, um respiro em uma guerra assimétrica que a administração do republicano Donald Trump move não apenas contra o governo Lula, mas contra a própria soberania e o projeto democrático do Brasil. O alívio nos corredores do Planalto é legítimo, mas é sintomático de um quadro profundamente degradado nas relações bilaterais, onde o cumprimento de um protocolo básico – o Acordo de Sede das Nações Unidas – transforma-se em motivo de celebração.
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Este episódio aparentemente burocrático é a ponta de um iceberg de hostilidades que tem, como seu corpo principal e ameaçador, o tarifaço de 50% imposto às exportações brasileiras, que completa um mês como um ato declarado de agressão econômica e política. Trump, em seu estilo caracteristicamente brutish e contrário ao direito internacional, não escondeu as reais motivações.
A falácia do “déficit comercial” americano – desmentida pelos US$ 410 bilhões de déficit acumulado pelo Brasil na relação bilateral em 15 anos – serve apenas de cortina de fumaça para o que sua carta ao presidente Lula explicitou: uma retaliação por ousarmos submeter à Justiça seu aliado ideológico, Jair Bolsonaro, por crimes de tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito.
Estamos, portanto, diante de um cenário inédito e perigoso. Pela primeira vez na história recente, um presidente norte-americano utiliza abertamente instrumentos de guerra comercial como arma de coação para interferir diretamente nos assuntos judiciais internos de uma grande nação soberana. É um ataque que vai muito além do econômico; é um ataque à espinha dorsal da democracia: a independência e a autoridade do Poder Judiciário. Ao punir o Brasil por seguir suas leis, Trump posiciona-se não como um líder de uma nação parceira, mas como um fiador de facções golpistas, um mandatário de um império que não tolera a autonomia de seus vassalos.
As investigações da Polícia Federal, que culminaram no indiciamento de Bolsonaro e de seu filho, o deputado exilado Eduardo Bolsonaro, escancaram o mecanismo por trás desta guerra híbrida. Revelam uma conexão nefasta entre a extrema-direira norte-americana, articulada em torno de Trump, e os setores bolsonaristas que, derrotados nas urnas e acuados pela lei, operam nos bastidores para destabilizar o país a partir do exterior.
Eduardo Bolsonaro, atuando como um lobista do caos em solo americano, é o elo visceral desta aliança contra a soberania brasileira. O tarifaço não é uma política de Estado republicana; é a materialização de uma vingança pessoal e ideológica, um projeto de poder global da ultradireita que elegeu o Brasil como seu alvo principal.
Os efeitos desta agressão são concretos e dolorosos. O decreto de emergência econômica no Ceará, estado onde mais de 90% das exportações para os EUA foram atingidas, não é uma metáfora. É a realidade de fábricas que paralisam, de empregos que evaporam, de famílias que veem seu sustento ameaçado pela volúpia autoritária de um magnata estrangeiro.
Em Petrolina (PE), a janela de exportação para 2,5 mil contêineres de manga e 700 de uva está sob risco iminente, ameaçando um terço da população que vive da fruticultura. Em Franca (SP), a capital do calçado, empresas que dependem integralmente do mercado americano encaram o abismo, colocando em risco milhares de postos de trabalho. São comunidades inteiras transformadas em reféns de uma disputa geopolítica que não escolheram.
Diante deste cenário de cerco, a resposta do governo Lula tem sido notável e deve ser reconhecida como um marco na afirmação da soberania nacional. O Plano Brasil Soberano, um pacote robusto de R$ 30 bilhões em linhas de crédito, restituição de tributos e apoio à comercialização interna, é muito mais do que uma política econômica de emergência. É um ato de resistência.
É a demonstração clara de que o Estado brasileiro não capitulará, não abandonará seus produtores e não deixará seu povo pagar sozinho o preço de uma agressão externa. A articulação com o BNDES, que injetou mais R$ 10 bilhões, e a mobilização para comprar a produção excedente são ações de um governo que entende seu papel de condutor e protetor da economia nacional em momentos de crise.
A estratégia de diversificação de mercados, acelerando negociações com a União Europeia e ampliando as vendas para China e Argentina, é outro pilar fundamental desta resistência soberana. Mostra que o Brasil não se curvará a um monopólio comercial.
A queda de 18,5% nas exportações para os EUA em agosto é significativa, mas a resiliência de um crescimento de 3,9% nas exportações totais comprova a solidez desta estratégia. Estamos redesenhandoo mapa de nossas alianças econômicas, não por capricho, mas por necessidade imperiosa perante um parceiro que se revelou predatório e inseguro.
A concessão do visto a Haddad, portanto, não apaga este quadro de conflito. Ela apenas adia uma escalada. É um lembrete de que estamos sob a mira constante de uma administração imprevisível e hostil, que trata a diplomacia como uma extensão de suas guerras culturais internas. A soberania brasileira não se mede pela benevolência de Washington em conceder vistos; mede-se pela nossa capacidade de resistir à intimidação, de proteger nossa população, de defender nossas instituições e de seguir nosso próprio curso, mesmo sob fogo cerrado.
O momento exige mais do que alívio. Exige vigilância, unidade nacional e firmeza inabalável. A guerra de Trump contra o Brasil é a guerra da autocracia contra a democracia, do capricho contra a lei, do império contra a nação.
E a nossa resposta, através da resistência econômica, da diplomacia astuta e da defesa intransigente de nosso direito de existir como um país soberano, está escrevendo um novo capítulo na história da América Latina: aquele em que o gigante sul-americano se recusa a ser um peão no xadrez dos interesses hegemônicos e se ergue, soberano, para ditar o seu próprio destino.