A violência brasileira, com raízes históricas, é um dos principais obstáculos para que o país se desenvolva de maneira pacífica, socialmente justa e com respeito aos direitos humanos. Com alguns avanços e muitos retrocessos ao longo das últimas décadas, o Brasil registrou uma redução de 27,7% no número de mortes violentas intencionais entre 2018 e 2024 — e de 3,4% em 2023. Ao mesmo tempo, a letalidade policial aumentou 188% desde 2013. No balanço geral, o Brasil continua sendo um dos países com os piores índices de violência do mundo.
As mortes violentas intencionais reúnem homicídio doloso, feminicídio, latrocínio, lesão seguida de morte, as mortes de policiais e aquelas decorrentes das intervenções policiais. São, portanto, os casos com intencionalidade definida.
“Isso é importante porque, num primeiro momento, trata-se de uma redução na violência letal no Brasil, o que deve ser comemorado. Além disso, esse número é o menor da série histórica desde 2011”, explica, ao Portal Vermelho, David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
No entanto, ele ressalta que “a taxa brasileira ainda representa quase quatro vezes a taxa média dos homicídios do mundo, de maneira que o Brasil tem aproximadamente 3% da população mundial, mas responde por 10% dos homicídios registrados”.
Considerando somente a América Latina e o Caribe, no ano passado o Brasil teve 22,8 MVI por 100 mil habitantes, uma proporção 18,8% maior do que a regional, que foi de 19,2 por 100 mil habitantes em 2022.
Conforme observado pelos pesquisadores, a análise dos dados colhidos mostra a “predominância das dinâmicas e dos padrões de governança criminal nos territórios das cidades como a grande variável explicativa para a tendência das Mortes Violentas Intencionais no país”.
Ou seja, a redução pode, em boa medida, guardar mais relação com os interesses e a ação das facções do que propriamente com mudanças na política de segurança, a cargo principalmente dos estados.
Violência nos estados e letalidade policial
Nesse universo de mortes violentas intencionais, o Anuário mostra que as maiores taxas por 100 mil habitantes foram verificadas nos estados do Amapá, com 69,9, seguido pela Bahia, com 46,5 e o Amazonas, com 40,2.
Já as menores taxas estão nos estados de São Paulo, 7,8; Santa Catarina, 8,9 e Distrito Federal, 11,1.
“Quando a gente olha para os estados que tiveram as maiores taxas ou os maiores crescimentos nas taxas de mortes violentas intencionais, a gente vai encontrar problemas associados ao crime organizado, nessa modalidade de base faccional, que opera, sobretudo, no tráfico de drogas”, destaca David Marques, do FBSP.
Então, acrescenta, “por um lado, conflitos nessa dinâmica criminal ajudam a explicar o crescimento das mortes; por outro lado, a gente tem visto que a resposta que os governos estaduais têm tentado oferecer por meio das polícias para esse desafio do crime organizado tem sido a atuação letal das polícias, sobretudo da militar”.
Essa pode ser a principal explicação para o fato de a letalidade policial ter saltado 188,9% em uma década, registrando 6.393 casos no ano passado — o que corresponde a 17 por dia. Em 2017, os assassinatos resultantes da ação desses agentes representavam 8,1% do total das MVIs; já em 2023, essa participação aumentou 70%, correspondendo a quase 14% de todas as mortes violentas intencionais.
“Em algumas cidades brasileiras, que estão, por exemplo, entre as dez com maior letalidade policial, a gente tem alguns exemplos em que mais da metade do total de mortes violentas intencionais em 2023 foram cometidas por policiais”, alerta Marques.
Conforme apontado pelo Anuário, na lista de cidades com mais de 100 mil habitantes com altas taxas de morte decorrente de intervenção policial, a liderança é de Jequié (BA), cuja taxa chegou a 46,6 por 100 mil pessoas, número 1.380% superior à média nacional. Além disso, no ano passado, a maioria das mortes violentas da cidade foram de responsabilidade de agentes estatais (55,2%).
O perfil das vítimas de letalidade policial segue sendo majoritariamente masculina (99%), negra (83%) e jovem, entre 12 e 29 anos (72%). Cabe destacar que o risco relativo de um negro morrer por intervenção da polícia é 3,8% maior que em outros grupos.
Neste sentido, para Marques, um dos desafios colocados para o país é “fazer o enfrentamento ao crime organizado, ao mesmo tempo em que faz o controle do uso da força e o combate ao uso abusivo da força pela polícia”.
Segundo o Anuário, a atual forma de enfrentamento “acaba por gerar mais mortes, sobretudo de negros, jovens e por armas de fogo, enquanto o crime organizado tem comprometido várias esferas da vida pública e da economia formal não atingidos pela ação de policiamento ostensivo e de operações especiais”.
O Portal Vermelho publica, na próxima semana, novos dados do Anuário. Acompanhe.