Governo fala em cabos submarinos enquanto vê sua produção científica cair; na corrida por conhecimento, China e Índia disparam e transformam o Brics em uma potência global


Entre 2000 e 2024, os países do Brics — bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul e recentemente expandido a outros onze membros — vivenciaram uma verdadeira revolução na produção científica. Dados compilados pelo professor Odir Dellagostin, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e membro da Academia Brasileira de Ciências, revelam que o número de artigos publicados pelos países do grupo nas principais revistas científicas do mundo cresceu mais de dez vezes nesse período.

A China, em especial, se destacou ao ultrapassar os Estados Unidos no volume de publicações científicas. Já a Índia, agora terceiro maior produtor mundial de artigos científicos, superou coletivamente os países europeus, consolidando-se como uma potência emergente no cenário científico global.

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O Brasil, apesar de mostrar avanços significativos até meados da última década, parece estar perdendo velocidade frente a esse crescimento acelerado dos parceiros do Brics. Em 2024, o país respondeu por menos de 100 mil dos mais de 2 milhões de artigos publicados pelos membros do bloco.

“O Brasil apresentou um crescimento bastante acelerado e contínuo até 2021. E esse crescimento foi, basicamente, paralelo ao crescimento da pós-graduação. Enquanto a pós-graduação estava crescendo, a produção científica também evoluía”, explicou Dellagostin, baseando-se em dados extraídos da Scopus, a maior base de dados de literatura científica revisada por pares do mundo.

Porém, a partir de 2022, o ritmo das publicações brasileiras começou a cair, acompanhando uma retração no número de pesquisadores ativos no país. Em 2024, houve uma leve recuperação: cerca de 4 mil artigos a mais foram publicados e quase 600 novos mestres e doutores foram titulados. Mesmo assim, segundo Dellagostin, o Brasil corre o risco de ficar para trás.

“De 2021 a 2024, o mundo cresceu 8,3% na produção científica. Os países do BRICS tiveram desempenhos impressionantes: os Emirados Árabes cresceram mais de 60%, a Índia 41%, a China 20%, e a Malásia, mesmo não sendo do Brics, teve aumento de 17%. E o Brasil? Caiu 10,1%”, alertou o pesquisador.

Ele ressalta que a falta de recursos é parte do problema, mas não o único fator determinante. A pandemia, com o fechamento de laboratórios e interrupção de projetos, contribuiu significativamente. Além disso, Dellagostin menciona o ambiente político anticientífico que marcou boa parte da última década no país como um obstáculo à motivação dos pesquisadores.

“A desvalorização da ciência diante de parte da sociedade e o discurso anticiência de alguns governantes impactaram negativamente o ambiente acadêmico. Isso desmotiva quem está dentro da academia”, afirmou.

Outro ponto crítico é a dificuldade de absorção dos doutores pelo mercado. Com poucas oportunidades fora da academia, muitos jovens pesquisadores desistem da carreira científica, prejudicando a continuidade e expansão do conhecimento.

“Precisamos implementar uma carreira de pesquisador efetiva no Brasil. Hoje, praticamente toda pesquisa está ligada à docência ou ao estudo na pós-graduação. É preciso criar alternativas reais de emprego para quem quer seguir essa trajetória”, defendeu Dellagostin.

Mundo que muda: olhares voltados ao Oriente

Enquanto isso, o mapa da produção científica global está se transformando. Países asiáticos, especialmente China e Índia, estão ditando o ritmo da inovação. Para o professor da UFPel, é fundamental que o Brasil revise suas prioridades estratégicas e passe a investir mais em colaborações dentro do próprio bloco do Brics.

“No passado, os Estados Unidos e a Europa eram nossas referências, mas isso está mudando. Em 2024, a China produziu 60% a mais do que os EUA. A Índia já ultrapassou os países europeus. Nós precisamos olhar muito mais para a Ásia”, disse.

Dellagostin defende a criação de um conselho de pesquisa compartilhado entre os países do Brics, inspirado no modelo europeu do European Research Council (ERC), que financia projetos conjuntos com recursos de todos os países membros. “Um Brics Research Council poderia ser um grande passo para fortalecermos nossa cooperação científica e tecnológica.”

Infraestrutura digital: cabos submarinos do Brics

Além da produção científica, o Brics também está mirando na construção de uma infraestrutura digital própria. Durante a 17ª Reunião de Cúpula realizada no Rio de Janeiro, os líderes dos países membros incluíram na Declaração Final a proposta brasileira de estudar a viabilidade técnica e econômica da instalação de cabos submarinos conectando diretamente os países do bloco.

Essa iniciativa tem como objetivo aumentar a velocidade, segurança e soberania no compartilhamento de dados entre os membros do Brics, além de impulsionar o desenvolvimento conjunto de inteligência artificial.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou a importância do projeto durante seu discurso na cúpula:

“Fazer um estudo de viabilidade para o estabelecimento de cabos submarinos ligando diretamente membros do Brics aumentará a velocidade, a segurança e a soberania na troca de dados”, afirmou.

A ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, explicou que o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), instituição financeira do Brics, será responsável por financiar o estudo inicial. Segundo ela, atualmente a maior parte dos cabos submarinos pertence a países do chamado “Norte Global”, como Estados Unidos, França, Japão e China.

“Nós estamos em um tempo dadocêntrico, cuja questão dos dados é decisiva para uma agenda de desenvolvimento dos países. Nós temos que ter um cabo próprio, em que os dados sejam nossos, sejam desses países”, enfatizou.

Inteligência artificial com identidade própria

Paralelamente, o bloco também aprovou um documento sobre Governança Global da Inteligência Artificial, reforçando a intenção de construir uma IA com características próprias, alinhada às necessidades e realidades dos países em desenvolvimento.

No Brasil, já existem 11 centros de competência dedicados ao desenvolvimento de soluções em inteligência artificial aplicadas à saúde, educação e agricultura. Esses centros fazem parte do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, com investimento de R$ 23 milhões.

“A inteligência artificial, assim como todas as revoluções tecnológicas, não precisa ser vista como o bicho-papão, precisa ser dominada. E o Brasil está demonstrando que pode fazer isso”, afirmou Luciana Santos.

Ela destacou ainda a importância de desenvolver tecnologias que estejam próximas às pessoas e que evitem vieses nocivos, como uso indevido, intolerância e ameaças à democracia.

“Têm várias soluções brasileiras de inteligência artificial, e é isso que a gente quer, que, cada vez mais, a ciência e a tecnologia se aproximem das pessoas e tragam benefícios reais”, concluiu.

Brasil no jogo global: onde está e para onde deve ir

Com 11 países-membros permanentes e representando 39% da economia mundial, o Brics se posiciona como uma nova força geopolítica e tecnológica. Sozinho, o bloco abriga quase metade da população global e responde por 23% do comércio internacional. Em 2024, os países do Brics responderam por 36% das exportações brasileiras e 34% das importações do país.

Apesar de sua relevância, o Brasil ainda mantém fortes laços científicos com os Estados Unidos e a Europa, enquanto colaborações com os parceiros do Brics são minoritárias. Para especialistas, é hora de repensar essas relações e apostar na cooperação intra-bloco.

“Acho que o fiel da balança está mudando. Precisamos ampliar nossa visão e nos aproximar mais dos países asiáticos e africanos do nosso próprio grupo”, reforçou Dellagostin.

O futuro da ciência brasileira depende de políticas públicas consistentes, investimento contínuo e uma visão estratégica que enxergue o mundo de forma diferente — e o Brics pode ser a chave para esse novo capítulo.

Com informações de Agência Brasil*

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Last Update: 08/07/2025