Brasil na encruzilhada, por Pedro Paulo Zahluth Bastos

Brasil na encruzilhada: Reforma fiscal e janela geopolítica como estratégia de desenvolvimento soberano

por Pedro Paulo Zahluth Bastos

Agradeço aos camaradas Luiz Gonzaga Belluzzo, André Singer e Pedro Celestino pelas análises que nos situaram diante dos desafios estruturais que um programa desenvolvimentista enfrenta no Brasil contemporâneo. Minha contribuição busca articular duas dimensões desse desafio: primeiro, as restrições domésticas impostas pelo arcabouço fiscal à execução de uma política econômica desenvolvimentista; segundo, as oportunidades abertas pela reconfiguração geopolítica global, particularmente a rivalidade sino-americana, que criam condições históricas para uma estratégia de autonomia tecnológica e reindustrialização. Meu argumento central é que essas duas dimensões estão intrinsecamente conectadas: sem reformar as amarras fiscais que inviabilizam investimentos públicos estratégicos, o Brasil permanecerá incapaz de aproveitar a janela geopolítica que se abre.

I. A armadilha da austeridade permanente

O chamado “arcabouço fiscal” ou “regime fiscal sustentável” representa a continuidade, sob nova roupagem, da lógica da austeridade que domina a política econômica brasileira pelo menos desde 2015. Embora apresentado como mais flexível que o teto de gastos de Temer, o novo regime mantém o essencial: a subordinação da política fiscal a metas de resultado primário e a limitação do crescimento das despesas primárias a um teto móvel vinculado à receita, com crescimento real máximo de 2,5% ao ano.

As consequências dessa arquitetura institucional são evidentes. Primeiro, ela perpetua a compressão dos investimentos públicos, que caíram de 3,5% do PIB em 2010 para menos de 1% atualmente. Segundo, ela impõe uma contenção permanente dos gastos sociais justamente quando o país deveria expandir sua rede de proteção e seus serviços públicos. Terceiro, e crucialmente para o argumento que desenvolvo aqui, ela inviabiliza a capitalização de empresas estatais e os investimentos em infraestrutura necessários para viabilizar um projeto desenvolvimentista.

O problema não é meramente técnico ou contábil. Trata-se de uma escolha política que prioriza a rentabilidade dos títulos públicos e a tranquilidade dos mercados financeiros em detrimento da capacidade do Estado de induzir o desenvolvimento econômico. Como demonstrei em análises anteriores, essa escolha reflete um condomínio hegemônico entre o capital estrangeiro e o grande capital financeiro doméstico que se consolidou após
o golpe de 2016 e que resiste a qualquer projeto que ameace suas estratégias de acumulação que integra a economia brasileira de modo dependente no capitalismo mundial. A recuperação do gasto público, seja na infraestrutura social seja na econômica, ao contrário, é fundamental para ativar um modelo de crescimento econômico que combine apoio popular e investimentos públicos e privados orientados para atendimento das necessidades da população brasileira.

II. Reforma fiscal estratégica: exclusões necessárias

Diante desse impasse, o ideal seria propormos a superação do arcabouço. Se não tivermos força política para tanto, pelo menos devemos obter duas exclusões fundamentais do cálculo dos gastos limitados pelo arcabouço fiscal.

Primeira: exclusão dos gastos em educação e saúde. A racionalidade dessa proposta é evidente. Educação e saúde são investimentos de longo prazo na capacidade produtiva da nação, não gastos de consumo. Tratá-los como despesas ordinárias que devem ser contidas é condenar o país ao subdesenvolvimento permanente. Mais ainda, em um momento histórico em que a competição econômica global se desloca crescentemente para setores intensivos em conhecimento – inteligência artificial, biotecnologia, transição energética, entre outros –, comprimir investimentos em educação, ciência e tecnologia é renunciar antecipadamente a qualquer possibilidade de inserção soberana na economia mundial.

Segunda: exclusão dos gastos com capitalização de empresas estatais e investimentos em infraestrutura realizados pela administração direta e unidades federadas. Esta exclusão é ainda mais crucial para o argumento que desenvolvo aqui. Sem capacidade de capitalizar empresas como Petrobras, Eletrobras (onde o Estado ainda mantém participação minoritária), BNDES e outros bancos públicos, o Estado brasileiro fica desarmado para implementar políticas industriais substantivas. Contudo, tal capitalização, incluída no teto do arcabouço fiscal, é financeiramente inviável. Contudo, sem poder investir em infraestrutura logística, energética e digital fora do teto de gastos, o país permanece prisioneiro de gargalos estruturais que inviabilizam qualquer estratégia de desenvolvimento.

Um pequeno sinal disso é que no dia 05/12, a LDO de 2026 aprovada pelo Congresso Nacional retirou algo como R$ 10 bilhões do teto do arcabouço para auxiliar na recuperação financeira dos Correios, viabilizando a continuidade de um serviço essencial para integrar a nação. Meritória em si, a exclusão deste gasto do teto do arcabouço e da meta fiscal levanta uma pergunta óbvia: por que só atender a necessidades urgentes de
investimento público – como os Correios ou a reconstrução de infraestruturas destruídas por desastres climáticos – ao invés de viabilizar a expansão planejada do investimento público orientado para restaurar o desenvolvimento econômico e social?

Essas exclusões não representam irresponsabilidade fiscal, mas sim uma compreensão mais sofisticada do que significa “sustentabilidade” em política econômica. Sustentável não é aquilo que agrada aos mercados financeiros no curto prazo, mas sim aquilo que constrói capacidades produtivas de longo prazo. Países desenvolvidos jamais impuseram a si mesmos as amarras que o Brasil se autoinflige.

III. A janela geopolítica sino-americana

Enquanto o Brasil se paralisa em debates sobre décimos de ponto percentual no resultado primário, o mundo passa por uma reconfiguração geopolítica de magnitude histórica. A ascensão da China como potência tecnológica e industrial, e a resposta estadunidense na forma de contenção e “desacoplamento”, criam oportunidades sem precedentes para países de desenvolvimento intermediário que souberem aproveitar as contradições dessa nova guerra fria.

Os dados são eloquentes. A participação da China no comércio exterior brasileiro saltou de meros 2% no ano 2000 para 31,3% em 2023, tornandose nosso principal parceiro comercial. Simultaneamente, a participação dos Estados Unidos caiu de 23,9% para 10,3% no mesmo período. Essa reorientação comercial não é mero acidente estatístico, mas expressão de uma transformação estrutural na economia mundial.

Mais significativo ainda: essa transformação não se limita ao comércio. Empresas chinesas tornaram-se protagonistas em setores estratégicos da infraestrutura brasileira. Na geração de energia elétrica, empresas chinesas controlam 13% da capacidade instalada do país. Na transmissão, controlam 18% das linhas. Em telecomunicações, a Huawei consolidou-se como fornecedora fundamental, apesar das pressões estadunidenses para sua exclusão das redes 5G.

O segundo governo Trump, com sua ênfase em unilateralismo e protecionismo, tende a aprofundar essa tendência. Enquanto Washington impõe tarifas, restrições tecnológicas e exige subordinação geopolítica de seus parceiros, Beijing oferece financiamento, transferência tecnológica e parcerias sem condicionalidades políticas explícitas.

Esta é a janela histórica que se abre: aproveitar a competição sinoamericana para negociar transferências tecnológicas substantivas e construir capacidades produtivas autônomas. Mas – e aqui retorno ao primeiro argumento – essa janela só pode ser aproveitada se o Estado brasileiro tiver capacidade fiscal e institucional para ser um parceiro relevante, não um mero receptor passivo de investimentos.

IV. Parcerias estratégicas: transição energética, IA e semicondutores

Proponho três eixos concretos de parcerias estratégicas com capital estatal chinês, todos dependentes da reforma fiscal que defendo.

Primeiro eixo: transição energética e transferência tecnológica. O Brasil possui vantagens comparativas evidentes em energia renovável – hidroelétrica, eólica, solar, biomassa. Mas nossa inserção nesse setor tem sido predominantemente como fornecedor de matérias-primas e receptor de tecnologias já maduras. A proposta é estabelecer joint ventures entre empresas estatais brasileiras (Petrobras, eventualmente uma nova empresa focada apenas em energias sustentáveis) e grupos estatais chineses líderes em tecnologias de transição energética – painéis solares de alta eficiência, turbinas eólicas offshore, baterias de armazenamento, hidrogênio verde.

O objetivo não é apenas atrair investimentos, mas estabelecer contratos de joint venture que incluam cláusulas explícitas de transferência tecnológica e produção local de componentes de alta intensidade tecnológica. A China possui tanto o interesse estratégico (diversificar cadeias produtivas diante de pressões ocidentais) quanto a capacidade tecnológica para viabilizar esse tipo de parceria. Mas isso exige contrapartida brasileira: capacidade de co-investimento via capitalização de estatais, algo impossível sob o atual arcabouço fiscal.

Segundo eixo: inteligência artificial e economia digital. A corrida pela supremacia em IA é o front central da competição tecnológica global. O Brasil não tem capacidade de competir diretamente com Estados Unidos ou China nesse campo, mas pode buscar uma inserção qualificada. Proponho parcerias para desenvolvimento de aplicações de IA voltadas para especificidades brasileiras – agricultura de precisão tropical, gestão de biomas complexos como Amazônia e Cerrado, sistemas de saúde pública em escala continental, educação adaptativa para país de dimensões continentais e desigualdades regionais extremas.

Empresas chinesas de IA enfrentam crescente fechamento de mercados ocidentais. O Brasil pode oferecer não apenas um mercado de 215 milhões de habitantes, mas também dados e problemas únicos que enriqueceriam o desenvolvimento dessas tecnologias. Em contrapartida, exigimos transferência tecnológica, formação de quadros brasileiros e desenvolvimento de capacidades computacionais nacionais – data centers soberanos, processamento em território nacional, segurança de dados.

Terceiro eixo: semicondutores e autonomia tecnológica. A dependência brasileira de semicondutores importados é quase absoluta, tornado o país vulnerável tanto a choques de oferta (como vimos na pandemia) quanto a pressões geopolíticas. A China investiu centenas de bilhões de dólares na última década para reduzir sua própria dependência de chips ocidentais, especialmente diante das restrições impostas pelos EUA.

Proponho negociar com grupos chineses do setor a instalação no Brasil de plantas de fabricação de semicondutores de gerações anteriores (não necessariamente os chips mais avançados de 3 ou 5 nanômetros, mas chips de 28nm ou superiores que atendem 90% das aplicações industriais, automotivas e de infraestrutura). Em troca, oferecemos mercado garantido via compras públicas, incentivos fiscais e, crucialmente, uma localização geográfica que oferece alguma proteção contra pressões geopolíticas estadunidenses.

Esses três eixos, por sua vez, devem estar conectados a projetos coordenados pelo Estado de expansão da infra-estrutura econômica e social orientada para um modelo de crescimento que combine redução de desigualdades, sustentabilidade ecológica e atendimento de necessidades reconhecidas da população brasileira.

V. Síntese: reforma fiscal como pré-condição geopolítica

Retorno ao argumento central: essas parcerias estratégicas não são viáveis sem a reforma fiscal que proponho. Joint ventures substantivas exigem que o parceiro brasileiro entre com capital, não apenas com território e mãode-obra barata. Transferência tecnológica genuína só ocorre quando o receptor demonstra capacidade de absorção, o que exige investimentos massivos em educação, pesquisa e desenvolvimento institucional.

Autonomia tecnológica não se conquista com passividade fiscal.

O momento é agora. A janela geopolítica aberta pela rivalidade sinoamericana não permanecerá aberta indefinidamente. Se o Brasil não aproveitar a atual conjuntura para negociar parcerias substantivas, voltaremos à condição de receptores passivos de investimentos em setores de baixo valor agregado.

As eleições de 2026 devem ser disputadas em torno dessa escolha civilizatória: continuar prisioneiros de uma austeridade que nos condena ao subdesenvolvimento permanente, ou realizar as reformas institucionais – começando pela fiscal – que viabilizam uma estratégia soberana de inserção na economia mundial do século XXI.

A pergunta que coloco para debate não é se podemos fazer isso, mas se teremos a coragem política de fazê-lo.

Pedro Paulo Zahluth Bastos – Professor titular no Instituto de Economia da Unicamp.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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