Reportagem especial da jornalista Andréa Magalhães publicada originalmente no site do TST
“Morreram 64 pessoas porque era uma sexta-feira. Em um dia normal, seriam quase 200 pessoas trabalhando. Minha filha estava lá e não voltou mais”.
O desabafo é de Ana Maria Balbina. Ela era uma das trabalhadoras da “Vardo dos Fogos”, fábrica de fogos de artifício clandestina que funcionava no município de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, que explodiu em 11 de dezembro de 1998, matando 64 pessoas que lá estavam. Entre as vítimas, 40 eram mulheres e quatro estavam grávidas. Havia, ainda, 19 meninas e um menino, todos menores de idade. Entre eles, Arlete Silva Santos, de 14 anos, filha única de Ana Maria. Outras seis pessoas ficaram gravemente feridas.
A fábrica funcionava em uma área de pasto, debaixo de tendas. Mulheres que trabalhavam na informalidade eram a maior parte da mão de obra. Por sua própria condição de vulnerabilidade e pobreza estrutural, elas levavam os filhos para ajudar no trabalho e, assim, aumentar a renda e manter o sustento familiar.
O Brasil foi incapaz, por meio de suas instituições, de evitar a tragédia. Depois que ela ocorreu, também foi incapaz de assegurar, de forma razoável, a reparação de danos às vítimas e familiares. Por isso, o caso foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), tribunal criado para proteger os direitos humanos no continente americano. O órgão judicial integra a Organização dos Estados Americanos (OEA).
Após um longo processo, em julho de 2020, a Corte reconheceu a responsabilidade do Brasil e condenou o Estado brasileiro pela violação dos direitos à vida, à integridade pessoal, da criança, às garantias judiciais, à proteção judicial, à igual proteção da lei, à proibição de discriminação e ao trabalho decente, entre outras.
O caso ficou conhecido como “Empregados da Fábrica de Fogos de Artifício de Santo Antônio de Jesus e outros Vs. Brasil”. É um dos 12 processos em que o órgão condenou o Brasil por violação de direitos humanos.
A luta por justiça começa
Familiares das vítimas e sobreviventes se uniram para reivindicar reparação pela tragédia. Em 1999, fundaram o Movimento 11 de Dezembro. Em 2001, com o apoio de outras organizações, o Movimento denunciou as violações sofridas por trabalhadores, trabalhadoras e familiares à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Juntas, a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos formam o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. Um caso somente chega à Corte após a análise e a atuação da Comissão.
A inação das instituições brasileiras
Conforme a documentação da Corte IDH, no momento da explosão, a fábrica tinha autorização do Ministério do Exército e do município. Mas a sentença destaca que se desconhecia qualquer fiscalização das autoridades, seja sobre as condições de trabalho, seja quanto ao controle de atividades perigosas. Após a explosão, o Exército confirmou a violação de normas de segurança, e perícia técnica da Polícia Civil indicou que a explosão foi causada pela falta de segurança no armazenamento e na manipulação dos materiais.
Vinte anos se passaram sem que as vítimas recebessem respostas efetivas das instituições brasileiras. Conforme a sentença da Corte IDH, nessas duas décadas, foram iniciados processos civis, trabalhistas, penais e administrativos. Porém, somente os administrativos e alguns trabalhistas foram concluídos, sem que nenhuma reparação fosse executada. Todos os outros estavam pendentes em diferentes etapas.
O Estado se cala
A Comissão publicou o Relatório de Admissibilidade e Mérito do caso em março de 2018, com várias recomendações ao país. Em junho do mesmo ano, o Brasil foi notificado para informar o cumprimento das recomendações no prazo de dois meses. Mas o Estado se calou.
Então, em setembro de 2018, a Comissão submeteu os fatos e a indicação de violações de direitos humanos à Corte Interamericana de Direitos Humanos, solicitando que esta declarasse a responsabilidade internacional do Brasil e ordenasse medidas de reparação.
A sentença veio em 2020, 22 anos depois da explosão.
Brasil é condenado e responsabilizado internacionalmente
Na sentença, a Corte IDH reconhece a responsabilidade do Estado brasileiro e impõe 11 obrigações ao país, além do dever de elaborar um relatório sobre as medidas adotadas para o seu cumprimento. Entre elas estão a continuidade do processo penal para julgar e punir os responsáveis, das ações civis de indenização e dos processos trabalhistas, para que sejam concluídos e executados; o fornecimento de tratamento médico, psicológico e psiquiátrico às vítimas; e a realização de um ato público de reconhecimento da responsabilidade internacional.
A decisão obrigava ainda o Estado brasileiro a inspecionar sistemática e periodicamente os locais de produção de fogos de artifício e a implementar um programa de desenvolvimento socioeconômico para buscar inserir trabalhadoras e trabalhadores dedicados à fabricação de fogos de artifício em outros mercados de trabalho e criar novas alternativas econômicas para esse grupo.
Segundo o ministro Augusto César, do Tribunal Superior do Trabalho, as decisões da Corte IDH são vinculantes e, portanto, de cumprimento obrigatório. O Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em 1992 e, em 2002, reconheceu a competência jurisdicional contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos para fatos ocorridos após 10 de dezembro de 1998 – um dia antes da explosão da fábrica de fogos.
De acordo com o ministro, a responsabilidade internacional é do Estado, e não de quem violou diretamente o direito. “Para que o Brasil ou qualquer Estado-parte seja condenado, é preciso que a Corte conclua que houve negligência em sua obrigação de respeitar, garantir e promover a observância, no âmbito interno, dos direitos humanos”, explica.
Pendente de cumprimento
Mas, até agora, muito pouco foi feito. Conforme o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as 11 medidas de reparação ainda estão “pendentes de cumprimento”. Algumas delas estão parcialmente implementadas.
A coordenadora executiva da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos do CNJ (UMF/CNJ), Andréa Perdigão, explica que isso não significa ausência de providências. “São decisões de difícil cumprimento e que estão sendo acatadas gradativamente”, afirma. “Nesse sentido, tentamos sempre colaborar com os outros vários órgãos envolvidos”. O UMF foi criada pelo CNJ para monitorar e desenvolver iniciativas voltadas ao cumprimento integral das sentenças da Corte IDH relacionadas ao Brasil.
Os processos trabalhistas do caso Fábrica de Fogos
Entre 2000 e 2001, 76 processos foram ajuizados na Justiça do Trabalho em Santo Antônio de Jesus. Desses, 30 foram arquivados definitivamente e 46 foram declarados improcedentes ainda na primeira instância, conforme a sentença da Corte IDH.
As vítimas recorreram, e, ao julgar os recursos, o Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (BA) reconheceu o vínculo de emprego das trabalhadoras e declarou parcialmente procedentes 18 dos processos.
Em agosto de 2018, foi determinado o bloqueio de bens de Osvaldo Prazeres Bastos, pai do proprietário da fábrica, Mário Fróes Prazeres Bastos, no valor de R$ 1,8 milhão. A medida viabilizou o pagamento dos valores deferidos e o pagamento de indenizações.
Cooperação cresce e Justiça do Trabalho amplia atuação
Para a juíza do TRT-5 Viviane Martins, gestora regional do Programa de Combate ao Trabalho Infantil da Justiça do Trabalho, a reparação só foi possível depois de um longo trabalho. “Essa quitação aconteceu depois de uma intervenção e de um trabalho continuado e denso de cooperação da Justiça do Trabalho com o Ministério Público do Trabalho”, observa.
A afirmação é corroborada pelo procurador do trabalho em Santo Antônio de Jesus, André Pessoa. “No MPT, requeremos providências e acompanhamos as diligências até a efetiva quitação dos valores que estavam sendo executados e que foram finalizados com o pagamento dos créditos atualizados”, afirma.
Mas, para Viviane Martins, era preciso ir além. “A atuação da Justiça do Trabalho, apesar do pagamento dos valores devidos, tinha de ser ampliada, considerando a missão de ser uma justiça social e o dever de proteção de direitos humanos”, avalia.
Em 2023, juntamente com o MPT, foi feita uma audiência pública que resultou na assinatura de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) pelo município. Um dos produtos do TAC foi o Espaço 4.0, que, por meio de um convênio com o Instituto Federal da Bahia (IFBA), promove a qualificação profissional das vítimas, dos familiares e da comunidade. Para a juíza, as medidas têm permitido a “reconexão da Justiça do Trabalho, enquanto justiça social, com as vítimas e os familiares”.
Em outra frente, o TRT-5 passou a desenvolver ações de capacitação para a atuação de magistradas e magistrados para julgamentos sem discriminação, sob a perspectiva de direitos humanos e de direito internacional do trabalho.
Vinte e seis anos depois
A exclusão social e a desvalorização da dignidade humana que, no passado, levaram dezenas de pessoas a condições precárias e inseguras ainda são uma realidade. A ausência do Estado se faz sentir pela insuficiência de fiscalização e de políticas públicas que permitam o enfrentamento da pobreza, do racismo estrutural e da informalidade.
A vice-presidente do Movimento 11 de Dezembro é incisiva ao comentar que “a fábrica não era um espaço de trabalho, mas sim de escravidão”. Segundo ela, o cenário se perpetua. É como se o tempo estivesse congelado desde 1998.
Atualmente, o município de Santo Antônio de Jesus é o segundo do país em produção de fogos de artifício, e fábricas clandestinas continuam a funcionar, com mulheres e crianças trabalhando em áreas rurais ou em casa, sem a proteção adequada.
Por outro lado, ações de fiscalização têm sido intensificadas. Em junho, mais de uma tonelada de fogos de artifício irregulares foi apreendida na Operação Pavio Curto, ação liderada pelo MPT com apoio de outras instituições públicas, em cumprimento à sentença da Corte IDH. O maior volume de apreensões ocorreu em qu