
Por Yuri Vasconcelos
A Marinha do Brasil está dando mais um passo para concretizar o objetivo de ter em sua esquadra um submarino movido a energia nuclear. Uma etapa crucial do projeto em desenvolvimento no país, a montagem eletromecânica da seção denominada bloco 40, que abrigará o protótipo do reator responsável por gerar energia térmica para sua propulsão, está em estágio avançado, segundo a Força Naval. Para testar esse equipamento, um modelo em escala real das seções mediana e traseira do submarino, os blocos 10 a 40, encontra-se em fase final de construção em um dos laboratórios do Centro Industrial Nuclear de Aramar (Cina). Complexo militar voltado a pesquisas nucleares, o Cina, conhecido apenas como Aramar, situa-se em Iperó, a 115 quilômetros de São Paulo.
Uma unidade de pesquisa, o Laboratório de Geração de Energia Nucleoelétrica (Labgene), foi montada exclusivamente para testar o reator nuclear. O prédio principal, um galpão de grandes proporções, tem cerca de 30 metros (m) de altura. É nele que está sendo montado o protótipo do submarino. Inicialmente, informa a Marinha, a planta de propulsão será testada com vapor oriundo de uma caldeira tradicional, alimentada com combustível fóssil. Somente depois será carregado o combustível nuclear, também produzido em Aramar.
O propósito do Labgene é validar a operação do reator de propulsão naval e dos sistemas eletromecânicos e de controle integrados a ele, como geradores de vapor, trocadores de calor, bombas e válvulas. A embarcação será construída a cerca de 550 quilômetros dali, no Complexo Naval de Itaguaí, no Rio de Janeiro.
“A construção de uma planta nuclear embarcada [PNE] é algo inédito no Brasil. Nunca fizemos isso. Precisaremos testá-la exaustivamente antes de colocá-la no submarino”, declarou o vice-almirante Celso Mizutani Koga, diretor do Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP), durante visita da reportagem de Pesquisa FAPESP ao Cina, em maio deste ano. “Teremos que garantir que todos os requisitos de segurança e performance sejam atingidos. Estimamos que deverá levar três anos para o Labgene ser criticalizado, ou seja, começar a produzir energia por meio da fissão nuclear”.

O reator projetado pela Marinha é do tipo que funciona com água pressurizada (pressurized water reactor ‒ PWR), o modelo mais usado em centrais nucleares no mundo todo. Equipamentos PWR são empregados nas usinas brasileiras Angra 1 e 2, no litoral fluminense. O desenvolvimento dos componentes do bloco 40 está a cargo da estatal Nuclebrás Equipamentos Pesados (Nuclep), criada em 1975 para atender o Programa Nuclear Brasileiro (PNB).
“Estamos fazendo muita coisa do zero, pois os países que detêm a tecnologia de fabricação de submarinos nucleares não a compartilham, o que enseja inúmeros desafios por conta de seu ineditismo e necessidade de desenvolvimento autóctone”, afirma Koga.
Apesar da complexidade e dos desafios que envolvem a construção de uma planta nuclear, seja uma unidade embarcada em um submarino ou uma central para produção de eletricidade, seu funcionamento é similar a um gerador termoelétrico, em que o calor resultante da queima de combustível fóssil produz vapor, que leva ao acionamento de uma turbina acoplada a um gerador de potência.
No caso de uma unidade nuclear, o vapor é gerado não pela combustão de óleo diesel ou gás natural, mas pela energia térmica liberada na fissão (quebra) de átomos de urânio, mineral base da energia nuclear. Circuitos (ou tubulações) de condução de calor, contendo água aquecida e vapor, acionam a turbina que alimenta os geradores do sistema elétrico, produzindo eletricidade. A vantagem da energia nuclear diante de combustíveis fósseis é sua elevada densidade energética: 1 pastilha de urânio de poucos gramas enriquecido libera a mesma energia térmica que 1 tonelada de carvão.
Programa militar secreto
A construção de um submarino nuclear convencionalmente armado (SNCA) com tecnologia nacional é um dos dois objetivos perseguidos pelo Programa Nuclear da Marinha (PNM), um dos braços do PNB. Executado hoje pelo CTMSP, o programa teve início em 1979, durante o regime militar (1964-1985), de forma sigilosa, sob o codinome Chalana. Apenas depois da redemocratização, foi tornado público.
Desde então, enfrentou inúmeros desafios, como a dificuldade para obter o domínio completo do ciclo do combustível nuclear. Também enfrentou contingenciamentos orçamentários que quase provocaram o fim do programa e levaram a seguidas revisões de seu cronograma. Especialistas ouvidos pela reportagem estimam que a embarcação só deverá ficar pronta em meados ou fim da próxima década, cerca de 60 anos após o início do projeto.
A construção do SNCA, batizado de Álvaro Alberto (1889-1976), em homenagem ao cientista e oficial da Marinha que foi um dos idealizadores do programa nuclear brasileiro, também faz parte do Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub), uma parceria entre Brasil e França. O acordo prevê o desenvolvimento de quatro submarinos convencionais, com propulsão diesel-elétrica (ver Pesquisa FAPESP no 274).

Com orçamento na casa dos R$ 40 bilhões, o Prosub foi iniciado em 2008 e é considerado um dos maiores projetos militares atuais do país. Dois submarinos convencionais, Riachuelo e Humaitá, já estão em operação e um terceiro, Tonelero, foi lançado ao mar para testes em 2024 e deve ser entregue à Marinha este ano. O quarto, Almirante Karam, está em construção e deve ser entregue em 2026. A transferência de tecnologia para a fabricação das embarcações está prevista em uma das cláusulas do negócio bilateral.
“Hoje, apenas seis nações conseguem fabricar submarinos nucleares: Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido, França e Índia”, afirma o contra-almirante Sérgio Luís de Carvalho Miranda, diretor de Desenvolvimento Nuclear da Marinha. Todas elas são potências atômicas. “O Brasil é o primeiro país que, mesmo sem possuir armas nucleares, constrói um submarino desse tipo.” Entre as principais vantagens de um submarino nuclear sobre os modelos convencionais, esclarece o oficial, estão sua maior velocidade, seu poder de ocultação e sua elevada capacidade de permanecer em operação. “Ele pode ficar longos períodos submerso em missões de vigilância, defesa e reconhecimento, sem precisar emergir para a superfície nem retornar à base para reabastecer”, afirma.
Para o físico Claudio Geraldo Schön, coordenador do curso de engenharia nuclear da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), submarinos nucleares são um importante equipamento de dissuasão. “Por ser muito silencioso e veloz, ele pode se aproximar de outras embarcações sem ser notado”, conta. “Para o Brasil, dono de uma imensa área marítima, é importante ter uma embarcação com essas características para resguardar as riquezas nacionais e garantir nossa soberania no mar”, comenta, destacando que submarinos nucleares podem transportar, além de torpedos e minas, mísseis balísticos ou de cruzeiro. “São, essencialmente, uma arma de guerra.”
Ciclo do combustível nuclear
Outro objetivo traçado pelo PNM era dominar a tecnologia de produção do combustível nuclear. Com a participação do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), instituição pública gerida pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), resultados com foco nesse propósito começaram a ser alcançados ainda nos anos 1980. Para isso, o Brasil criou uma tecnologia própria de ultracentrifugação, a etapa do processo em que se faz enriquecimento do urânio.
“Somente 13 países sabem como fazer o enriquecimento isotópico do urânio. Esse é o gargalo do ciclo do combustível nuclear”, conta o engenheiro nuclear Renato Cotta, consultor do PNM e pesquisador do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ) (ver entrevista). “Quem domina essa tecnologia não a divide com ninguém.” Isso porque, explica o pesquisador, quem é capaz de enriquecer o urânio para gerar energia elétrica também sabe produzir a matéria-prima necessária para fabricar bombas atômicas.
Para entender como o urânio é enriquecido e transformado em combustível nuclear, é preciso saber que, na natureza, o mineral é formado por apenas 0,7% do isótopo U-235, o ideal para a fissão nuclear – isótopos são átomos do mesmo elemento químico com diferentes pesos moleculares. O isótopo prevalente na composição é o U-238, mais pesado, com mais de 99% do total. Para gerar energia elétrica em usinas nucleares, o urânio precisa ter, no mínimo, 5% de U-235; no caso do combustível para o submarino, o enriquecimento deverá chegar a 19%. “A primeira carga do submarino já foi produzida”, informa Koga.
Para atingir o índice desejado, o urânio, depois de minerado, é convertido em um gás, que passa por um conjunto (ou cascata) de ultracentrífugas operando em série e em paralelo para concentração do U-235. Em seguida, o gás enriquecido é reconvertido em um pó, dando origem à matéria-prima para a fabricação das pastilhas usadas para produzir o combustível nuclear (ver infográfico). Todo o processo ocorre em diferentes estruturas do Cina, complexo com 8,5 quilômetros quadrados onde trabalham mais de 1,2 mil pessoas.

“O ciclo do combustível nuclear não é secreto. Você encontra em qualquer livro a definição do processo, os materiais que precisam ser usados, as reações químicas necessárias. O complicado é ter a tecnologia para fazer isso”, diz Schon, da USP. Na visita de Pesquisa FAPESP a Aramar, foi possível conhecer o Laboratório de Enriquecimento Isotópico (LEI), local onde ocorre a concentração do urânio, mas não as ultracentrífugas.
“É um segredo industrial. Nem mesmo os técnicos da Aiea [Agência Internacional de Energia Atômica] que realizam inspeções de salvaguardas regularmente em Aramar têm contato visual com elas”, explica Miranda. “As medições que fazem para checar o nível de enriquecimento do urânio são feitas de forma indireta, de modo a preservar a tecnologia desenvolvida no Brasil.” O acesso irrestrito às centrífugas é interditado para evitar que elas sofram um processo de engenharia reversa, ou seja, que por meio da análise visual de sua estrutura seja possível desvendar seu funcionamento e princípios tecnológicos.
Durante as visitas, os inspetores da Aiea querem se certificar de que o Brasil não está enriquecendo urânio a patamares diferentes dos acordados pelo país no âmbito internacional. Se o material for enriquecido acima de 90%, por exemplo, poderia ser usado para fabricar armamentos nucleares. Como o país é signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), o processo de produção do combustível nuclear, bem como o desenvolvimento do reator para o submarino, é inspecionado pela Aiea. “Cada país define em seu acordo de inspeção com a agência como serão feitas as averiguações e o que será fiscalizado”, declara Koga.
Graças ao domínio do ciclo do combustível nuclear, o combustível usado nas usinas Angra 1 e 2 é produzido localmente pela Indústrias Nucleares do Brasil (INB), empresa estatal localizada em Resende (RJ). As ultracentrífugas em operação na INB foram fabricadas pela Marinha. “Já fornecemos equipamentos para montagem de 10 cascatas”, diz Koga, do CTMSP. “Não podemos especificar quantos aparelhos são usados em cada cascata. Como vários aspectos da fabricação do combustível nuclear, esta é mais uma informação sigilosa.”

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