Quando assumiu a Presidência pela primeira vez, em 2003, Lula (PT) tinha entre seus muitos desafios acalmar uma parte significativa da comunidade internacional que ainda o enxergava como “radical” e temia a política econômica de seu governo. Mandou a Washington seu então braço direito, José Dirceu, antes mesmo de definir seu representante formal nos Estados Unidos, a fim de preparar o terreno.
Quando chegou à capital norte-americana, em abril de 2004, o embaixador Roberto Abdenur encontrou um cenário menos tenso, mas trabalhou para estreitar as relações e teve sucesso. Agora, ressalta o diplomata em entrevista a CartaCapital, o cenário é sensivelmente distinto e o Brasil amargará prejuízos com Donald Trump no poder.
Naquela ocasião, o presidente dos Estados Unidos era George W. Bush — republicano como Trump, mas as semelhanças param por aí. O partido não é mais o mesmo: capturado pelo magnata e controlado com mão de ferro, virou a casa da extrema-direita. Além disso, a profunda divisão nas atuais sociedades brasileira e norte-americana não encontra paralelo naquele início de século XXI.
A estratégia para “seduzir” o governo americano no primeiro mandato de Lula tampouco parece plausível neste momento. Pouco depois de desembarcar em solo americano, Abdenur organizou um seminário em Nova York com a participação de Lula e de nomes de peso da gestão, como o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci.
“Lula foi extraordinário ao convencer a plateia de que ele estava aplicando uma política econômica correta, de que não iria balançar o coreto, colocar o Brasil em uma situação difícil e, por extensão, criar uma crise econômica até internacional”, relembra o embaixador. “Eu vi as caras de satisfação das pessoas. No plano econômico, a relação com os Estados Unidos ficou muito boa.”
Na seara política, outro campo minado. Lula era uma das lideranças a se levantarem contra a invasão do Iraque pelos militares norte-americanos, determinada por Bush. Sob o argumento de combater o terrorismo e impedir a fabricação e o uso de armas de destruição em massa – nunca encontradas –, a operação deixou sequelas: duas décadas depois, o mundo ainda conta os custos daquela farsa.
Roberto Abdenur salienta, porém, que as críticas de Lula em nada afetaram o diálogo com Bush, uma vez que eram muitos os líderes que vociferavam contra a incursão americana. As portas ao Brasil, diz o embaixador, continuram abertas em diversos setores da Casa Branca e do mundo empresarial.
Ao tomar posse para seu terceiro mandato, em 2023, Lula encontrou no então presidente democrata Joe Biden um aliado em temas como os direitos trabalhistas, o combate às mudanças climáticas e o enfrentamento à extrema-direita.
Agora, o Palácio do Planalto prende a respiração para tentar entender os próximos movimentos de Donald Trump sobre o Brasil. Das ameaças de tarifas em produtos brasileiros ao namoro com a extrema-direita tupiniquim, passando pelo negacionismo na agenda ambiental, saltam aos olhos os pontos de atenção.
“O Brasil quase com certeza terá prejuízos na área comercial, porque Trump certamente imporá tarifas, mas há o risco de que, havendo algum desentendimento mais sério com Lula, ele responda com uma tarifa ainda maior”, adverte o ex-embaixador.
Na luta contra o aquecimento global, enfatiza Abdenur, sequer haverá debate, uma vez que Trump já se retirou da sala — e do Acordo de Paris. Trata-se de um inegável obstáculo para Lula no ano em que Belém (PA) sediará a COP-30.
O diplomata aposta que muitos eleitores de Trump se arrependerão de seu voto, mas, ainda que isso se concretize, será preciso manter o alerta sobre a relação entre o republicano e os principais expoentes da ultradireita brasileira. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) parece ter se convertido em uma espécie de embaixador do bolsonarismo nos Estados Unidos, destaca Abdenur.
Não é algo trivial. Em 2022, quando Bolsonaro, parte das Forças Armadas e ministros de Estado tramavam contra as eleições e buscavam uma forma de se manter no poder — conclusão da Polícia Federal no inquérito do golpe —, o governo Biden fez parte da contenção ao movimento golpista.
O democrata, mesmo em viagem, foi o primeiro a se movimentar e entrar em contato com outras lideranças para reconhecer a vitória de Lula. Outro exemplo: em junho de 2022, Bolsonaro convocou uma reunião com embaixadores em Brasília a fim de colocar em dúvida a lisura do processo eleitoral. À época, os EUA publicaram uma nota endossando a legitimidade do pleito brasileiro e ressaltando que as urnas eletrônicas foram amplamente testadas.
Em 2021, revelou a agência Reuters, o diretor da CIA já havia dito a autoridades brasileiras que Bolsonaro deveria parar de colocar em xeque o sistema eleitoral.
Diante dessas lembranças, o que é possível projetar, então, para 2026, com Trump na Casa Branca e uma extrema-direita competitiva no Brasil, mesmo com a inelegibilidade de Jair Bolsonaro?
“A questão da confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro não se coloca mais. O Bolsonaro perdeu essa parada e o Trump também não poderá fazer isso”, analisa Abdenur. “Mas ele, possivelmente, procurará de alguma maneira no contexto das eleições presidenciais dar algum fôlego político ao candidato da direita.”