Em entrevista ao Roda Viva, na TV Cultura, o CEO do instituto de pesquisa Quest detalha um país politicamente dividido entre lulismo e bolsonarismo, onde a economia já não é o único fator decisivo e a rejeição mútua molda o cenário para a próxima disputa presidencial.
O cientista político e CEO do instituto de pesquisa Quest, Felipe Nunes, analisou o atual cenário político brasileiro como “calcificado”, com dois blocos ideológicos consolidados que somam cerca de 70% do eleitorado: 35% alinhados ao lulismo e 35% ao bolsonarismo. Em entrevista ao programa Roda Viva, ele estimou que apenas 10% dos eleitores estão de fato em disputa e serão decisivos para a eleição de 2026. Nunes destacou que, nesse ambiente polarizado, a economia perdeu parte de seu poder de influência e o “voto por gratidão” praticamente acabou. As figuras de Lula e Jair Bolsonaro, segundo ele, continuarão sendo os pilares da eleição, mesmo que não estejam diretamente nas urnas, e a disputa será marcada mais pelo medo e pela rejeição do que por um projeto positivo.
A “calcificação” política e os grupos decisivos
Durante sua participação no programa Roda Viva, o professor e especialista em análise de dados Felipe Nunes apresentou um diagnóstico detalhado da atual conjuntura política do Brasil, baseado nas extensas pesquisas realizadas pelo instituto Quest. O ponto central de sua análise é o que ele chama de “calcificação” da política brasileira, um fenômeno que divide o país em dois grandes polos ideológicos praticamente impermeáveis.
“De um lado, você tem os 35% que são lulistas, petistas ou de esquerda. E do outro lado, outros 35%, bolsonaristas ou de direita”, explicou Nunes. Essa divisão, segundo ele, criou uma situação inédita na política brasileira, onde a maior parte do eleitorado já tem sua preferência definida antes mesmo do início das campanhas eleitorais.
Com essa polarização consolidada, sobram apenas cerca de 10% dos eleitores verdadeiramente em disputa. “Esses 10% que estão em disputa e que foram decisivos na eleição de 22 e serão de novo”, afirmou o pesquisador. Dentro desse grupo minoritário, mas crucial, estão principalmente os “liberais sociais” – antigos eleitores do PSDB que votaram em Lula em 2022 – e os “empreendedores individuais”, pequenos empresários que oscilam entre os dois polos dependendo das circunstâncias econômicas e políticas.
Nunes explicou que essa calcificação representa uma mudança estrutural na política brasileira. Diferentemente de décadas anteriores, quando grandes parcelas do eleitorado podiam migrar entre candidatos e partidos, hoje as lealdades estão cristalizadas. “O que a gente tem é um país dividido em dois blocos muito sólidos, e isso muda completamente a dinâmica eleitoral”, observou.
Lula e Bolsonaro continuam como protagonistas de 2026
Para Felipe Nunes, as duas maiores lideranças políticas do país continuarão sendo os eixos da próxima eleição presidencial, independentemente de suas candidaturas efetivas. “Na minha visão, eles continuarão sendo pilares importantes, mesmo que eles não participem da urna”, disse o pesquisador, referindo-se a Lula e Bolsonaro.
Essa centralidade das duas figuras se deve ao fato de que a estrutura política brasileira atual está organizada em torno delas. Os partidos, as alianças e até mesmo as pautas de campanha são definidos em função do posicionamento em relação aos dois líderes. “Lula e Bolsonaro serão muito importantes na eleição, independentemente se tiverem na urna ou não”, reforçou Nunes.
O pesquisador revelou dados que demonstram a persistência dessa polarização. Se a eleição de 2022 fosse repetida hoje, o resultado seria praticamente idêntico. “Lula e Bolsonaro, se repetisse a eleição hoje, segundo a última pesquisa da Quest, teria o mesmo resultado, 41 a 41”, informou. Essa estabilidade nos números reflete a solidez dos blocos eleitorais formados em torno dos dois políticos.
A eleição de 2022 foi marcada por um fenômeno que Nunes considera determinante: o voto motivado pelo medo. Em suas pesquisas, a pergunta-chave era: “Do que que você tem mais medo? Você tem mais medo da volta do PT ao poder com o Lula ou você tem mais medo da continuação do Bolsonaro?”. Hoje, a pergunta foi adaptada para “medo do Lula continuar ou do Bolsonaro voltar”, mas revela o mesmo patamar de divisão entre os eleitores.
Esse cenário sugere que a eleição de 2026 será novamente decidida mais pela rejeição ao adversário do que pela adesão a um projeto político específico. “A disputa será marcada mais pelo medo e pela rejeição do que por um projeto positivo”, analisou Nunes, indicando que os candidatos precisarão trabalhar tanto para mobilizar suas bases quanto para não assustar os eleitores indecisos.
O fim do “voto por gratidão” e as mudanças no eleitorado
Uma das análises mais significativas de Felipe Nunes diz respeito à transformação do comportamento eleitoral brasileiro. Segundo ele, o tradicional “voto por gratidão”, que historicamente beneficiava governos que implementavam programas sociais, praticamente desapareceu. “70% dos brasileiros não tem mais medo de perder benefício social caso o Lula perca a eleição”, revelou o pesquisador.
Essa mudança ocorreu, em grande parte, devido ao Auxílio Brasil implementado durante o governo Bolsonaro, que quebrou a exclusividade do PT na associação com programas de transferência de renda. “O Auxílio Brasil foi um divisor de águas porque mostrou que outros partidos também podem implementar políticas sociais”, explicou Nunes.
O pesquisador comparou o eleitor atual a um “adolescente crítico e exigente”, que vê as ações do governo como nada mais que sua obrigação. Essa nova mentalidade explica por que, mesmo com melhorias na economia, a popularidade do governo Lula não decola como esperado. “O eleitor de hoje não vota por gratidão, ele cobra resultados constantemente”, observou.
Essa transformação tem implicações profundas para a estratégia política. Os governos não podem mais contar com a fidelidade eleitoral baseada apenas na implementação de programas sociais. É necessário manter constantemente a percepção de bom desempenho em múltiplas áreas, desde a economia até a segurança pública.
Nunes também destacou como eventos específicos podem impactar significativamente a aprovação governamental. A crise de fraudes no INSS, por exemplo, teve um efeito direto nos números do governo. “A gente estima que se não fosse o INSS, o governo teria um resultado de quatro pontos percentuais maior de aprovação”, calculou o pesquisador, demonstrando como questões técnicas podem ter repercussões políticas importantes.
Inovações metodológicas nas pesquisas eleitorais
Questionado sobre a precisão das pesquisas eleitorais, Felipe Nunes explicou as inovações metodológicas que o instituto Quest desenvolveu para se adaptar ao novo comportamento do eleitor brasileiro. O principal desafio identificado foi o crescente fenômeno da abstenção eleitoral, que se tornou comparável aos níveis dos Estados Unidos, onde o voto é facultativo.
“A abstenção crescente no Brasil tornou-se uma variável crucial que distorcia os resultados das pesquisas tradicionais”, explicou Nunes. Para corrigir essa distorção, a Quest adotou o modelo “Likely Voter” (eleitor provável), que pondera a intenção de voto de uma pessoa pelas chances reais de ela comparecer às urnas no dia da eleição.
Essa metodologia considera diversos fatores para calcular a probabilidade de comparecimento, incluindo o histórico de participação eleitoral do entrevistado, seu nível de interesse político, a facilidade de acesso ao local de votação e até mesmo fatores socioeconômicos que podem influenciar a decisão de votar.
Os resultados dessa inovação metodológica foram significativos. Segundo Nunes, o modelo “Likely Voter” foi decisivo para prever o resultado acirrado de 2022 e reduziu o erro médio das estimativas em cinco pontos percentuais nas eleições municipais de 2024. “Essa precisão maior é fundamental em um cenário de eleições tão disputadas”, destacou o pesquisador.
A Quest também incorporou outras variáveis em suas pesquisas, como a análise do comportamento nas redes sociais e a medição do engajamento político dos entrevistados. “Não basta mais perguntar em quem a pessoa vai votar. É preciso entender se ela realmente vai votar e quão firme é sua decisão”, explicou Nunes.
O papel da economia na decisão eleitoral
Contrariando a sabedoria convencional de que “é a economia, estúpido”, Felipe Nunes argumentou que, no atual cenário político brasileiro, os indicadores econômicos perderam parte significativa de seu poder de influenciar o voto. “A economia continua importante, mas não é mais o fator determinante que era no passado”, afirmou.
Essa mudança se deve à polarização ideológica que domina o país. Muitos eleitores, segundo Nunes, estão dispostos a aceitar um desempenho econômico inferior se isso significar manter suas preferências ideológicas no poder. “Vemos eleitores de ambos os lados que priorizam a identidade política sobre os resultados econômicos”, observou.
O pesquisador citou exemplos concretos dessa tendência. Durante o governo Bolsonaro, mesmo com indicadores econômicos negativos, uma parcela significativa do eleitorado manteve seu apoio. Similarmente, no governo Lula atual, melhorias em indicadores como emprego e inflação não se traduziram automaticamente em ganhos de popularidade.
“O que vemos é que cada grupo interpreta os dados econômicos através de suas lentes ideológicas”, explicou Nunes. “Os apoiadores tendem a valorizar os aspectos positivos e minimizar os negativos, enquanto os opositores fazem o contrário.”
Essa dinâmica cria um desafio adicional para os governos, que não podem mais contar apenas com bons resultados econômicos para garantir apoio eleitoral. É necessário também trabalhar a narrativa política e manter a mobilização da base de apoio.
Perspectivas para 2026 e os desafios da polarização
Olhando para a eleição de 2026, Felipe Nunes vê um cenário de continuidade da atual polarização, com algumas nuances importantes. “A estrutura básica da disputa será a mesma, mas podem surgir novos atores que consigam dialogar com os 10% indecisos”, previu.
O pesquisador identificou alguns fatores que podem influenciar essa pequena parcela decisiva do eleitorado. Entre eles estão questões como segurança pública, corrupção, meio ambiente e, em menor grau, economia. “Esses temas podem ser decisivos para quem ainda não escolheu seu lado”, analisou.
Nunes também alertou para os riscos da polarização extrema. “Um país onde 90% dos eleitores já têm sua decisão tomada antes da campanha começar é um país com pouco espaço para o debate democrático”, observou. Ele defendeu a necessidade de iniciativas que promovam o diálogo entre os diferentes grupos políticos.
Para os partidos e candidatos, o cenário apresenta desafios específicos. “Não adianta mais tentar conquistar o eleitor do outro lado. O foco tem que ser mobilizar a própria base e conquistar os indecisos”, recomendou Nunes. Isso significa campanhas mais segmentadas e estratégias diferenciadas para cada grupo de eleitores.
O pesquisador concluiu sua análise destacando que, apesar dos desafios, a democracia brasileira mostrou resistência. “Tivemos uma eleição muito disputada em 2022, com resultado aceito por todos os lados. Isso mostra que, mesmo polarizado, o sistema democrático funciona”, afirmou, demonstrando otimismo cauteloso em relação ao futuro político do país.