Quando Antônio Alcântara Machado escreveu o livro de contos “Brás, Bexiga e Barra Funda” (1927), tinha apenas 26 anos de idade. O escritor paulista foi um dos expoentes do movimento modernista, na sua fase inicial, inaugurada através da Semana de Arte Moderna de 1922.
É certo que aquele movimento tinha como norte a oposição ao academicismo e à arte puramente decorativa. O modernismo refletia as incertezas sociais do contexto da I Guerra Mundial, da Revolução Russa de 1917 e da ascensão do fascismo na Europa ( a “Marcha sobre Roma” de Mussolini efetivamente ocorreu 9 meses após a Semana de 22).
Além disso, o novo grupo de artistas expressava as novas realizações tecnológicas de fins do século XIX e início do XX: os automóveis velozes circulando nas cidades, o advento do cinema, a fotografia, o telefone, o gramofone, os bondes elétricos, a revolução causada pelo desenvolvimento da aviação, implicaram num conceito dinâmico da arte associada à velocidade e à simultaneidade, em oposição ao conceito estático tradicional, baseado no equilíbrio e na ordem.
Entretanto, a adesão de Alcântara Machado ao novo movimento literário foi tardia.
Quando ocorreu a Semana de 1922, o escritor era um jovem estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Tomou parte do grupo de alunos que compareceu no Teatro Municipal para vaiar o evento. Naquele momento, já tinha publicado alguns artigos de jornais de crítica literária, além de desempenhar papel de orador do Centro Acadêmico XI de Agosto. Mas tinha restrições aos exageros dos modernistas.
O escritor nasceu em 25 de maio de 1901 na cidade de São Paulo. Pertencia às chamadas “famílias quatrocentonas” paulistas, que remetam aos primeiros povoadores da Capitania de São Vicente, depois Província e depois Estado de São Paulo.
Por parte de pai, teve como ascendentes presidentes de províncias, deputados, barões e professores da Faculdade de Direito de São Paulo. Do lado materno, foi neto de gente de Taubaté, ligada ao bandeirantismo. Ele próprio, como um membro da aristocracia da terra, foi jornalista, advogado e crítico literário, viajou em três ocasiões à Europa e nunca sofreu de privação material. Participou da Revolução de 1932 e foi eleito deputado por São Paulo, falecendo, entretanto, antes de exercer o mandato.
Sua efetiva adesão ao movimento modernista se deu por intermédio de Oswald de Andrade. E isso ocorreu depois de uma viagem à Europa no ano de 1925, onde, suponho, tenha tido contato com as novas correntes artísticas do velho continente: foram as vanguardas europeias que igualmente expressavam um rompimento com o tradicionalismo e apontavam para a experimentação artística, através do cubismo, futurismo, dadaísmo e surrealismo. Foram a expressão de um momento em que o progresso tecnológico redimensionou as fronteiras e os limites da comunicação, por intermédio do rádio, do cinema, do automóvel e do telégrafo. O otimismo em torno da ciência e do progresso tecnológico oriundo das correntes de pensamento do século XIX, levado até às últimas consequências pelo Positivismo, se desdobraria, no século subsequente, numa nova etapa de esgarçamento. O cientificismo e a apologia do progresso terminariam culminando na barbárie e na irracionalidade da guerra generalizada (I Guerra Mundial). A razão levada até às últimas consequência conduziu-nos ao colonialismo, ao eugenismo às teorias de supremacia racial. O pensamento artístico e a vanguarda modernista correspondem à etapa imediatamente anterior, premonitória, desse movimento da razão em direção à barbárie.
“Brás, Bexiga e Barra Funda” trata da vida dos recém chegados imigrantes italianos na cidade de São Paulo. Inicialmente, foram engajados no trabalho do campo, nas fazendas de café do interior paulista, através de um regime de trabalho parecido com a servidão, como forma de substituição do trabalho escravo, abolido em 1888.
Já na década de 1920, esses imigrantes italianos são a força de trabalho da nascente indústria de São Paulo. Tiveram importante papel no desenvolvimento dos primeiros sindicatos e na divulgação das ideias políticas anarquistas; a partir de 1917, sob o impacto da Revolução Russa, os anarquistas tornam-se socialistas constituem o Partido Comunista Brasileiro em 1922.
Os italianos são referidos na introdução do livro como a terceira geração dos mamelucos brasileiros.
“Durante muito tempo a nacionalidade viveu uma mescla de três raças que os poetas xingaram de tristes: as três raças tristes.
A primeira, as caravelas descobridoras encontraram aqui comendo gente, e desdenhosa de mostrar suas vergonhas. A segunda veio nas caravelas. Logo os machos sacudidos desta se enamoraram das moças bem gentis daquela, que tinham cabelos mui pretos, compridos pela espádoas.
E nasceram os primeiros mamelucos.
A terceira veio dos porões dos navios negreiros trabalhar o solo e servir a gente. Trazendo moças gentis, mucamas, mucambas, mumbandas, macumas.
E nasceram os segundo mamelucos.
(…) E então os transatlânticos trouxeram da Europa outras raças aventureiras. Entre elas uma alegre que pisou a terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela planta imigrante que há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira.
Do consórcio da gente imigrante com o ambiente, do consórcio da gente imigrante com a indígena nasceram os novos mamelucos”.
Ao qualificar os imigrantes com mamelucos, o autor reforça o processo de integração e miscigenação que foi um fator bastante positivo no desenvolvimento histórico do Brasil.
Desde os tempos mais remotos da vinda dos portugueses, não houve por aqui a colonização de “povoamento”, aos moldes da América do Norte, quando grupos familiares buscam constituir sociedades autônomas e segregados dos povos que aqui habitavam – na maior parte, eram esses povoadores protestantes radicais e indesejáveis até mesmo na Europa…. A grande vantagem da nossa colonização por “exploração” foi que os portugueses se lançavam numa aventura em torno da extração de riquezas e o enriquecimento imediato: não buscaram, assim, criar uma nova sociedade segregada, aos moldes europeus, mas se integraram e constituíram suas famílias por meio da miscigenação. Primeiro com os índios para constituir a 1ª Geração dos Mamelucos. E depois com os negros para constituir a 2ª Geração dos Mamelucos.
A terceira geração de mamelucos, os italianos, inicialmente eram chamados pejorativamente pelos brasileiros de “carcamanos” e “pés de chumbo”. Mas, seguindo essa tradição dos tempos da colônia, se integraram, se miscigenaram, casaram e constituíram famílias com os/as brasileiros/as e, no limite, foram um dos alicerces da indústria e do desenvolvimento econômico do país, emprestando a sua força de trabalho ou até prosperando e tornando-se eles próprios figuras importantes da política e cultura nacional: Conde de Matarazo, Menotti del Pichia e Anita Malfati são alguns nomes de ilustres imigrantes italianos a quem o livro é dedicado.
As histórias de “Brás, Bexiga e Barra Funda” são curtas, sugerindo uma narrativa em alta velocidade, tal qual os novos bondes e carros que surgem como uma novidade no início do desenvolvimento de São Paulo. Os efeitos visuais e sonoros da cidade em movimento são explorados no texto, remetendo à experimentação formal da vanguarda modernista: são as fábricas que “apitam”, os carros que circulam em alta velocidade e o povo que grita diante do jogo de futebol. As histórias vão fazendo remissão às ruas e bairros conhecidos daqueles que moram em São Paulo: Largo da Santa Cecília, Largo São Francisco, Avenida Paulista, Avenida Angélica, Avenida da Liberdade.
O recurso do humor, tão caro aos modernistas que por meio dele querem demolir as formas tradicionais de arte, aparece no texto, mesmo em sua feição do trágico cômico. É o caso do conto “Gaetaninho”, um italianinho que morre atropelado por um bonde. O seu maior sonho é andar num automóvel e o acaba o realizando no final da história, dentro de um caixão.
Não foi extensa a produção literária de Alcântara Machado. Além de “Brás, Bexiga e Barra Funda”, publicou “Laranja da China” (1928) e “Mana Maria” (1936), esse último lançado postumamente. Isso porque o autor morreu cedo, aos 35 anos, após uma intervenção cirúrgica fracassada por um problema de apendicite. Deixou ainda os seus artigos de jornal, crítica literária e artigos em revistas de literatura. Tal qual Álvares de Azevedo, também acadêmico da Faculdade de Direito de São Paulo, poderia ter sido um dos maiores da literatura brasileira não tivesse falecido tão jovem.