Braço forte, anistia Amiga: o pacto de impunidade reafirmado pelo STF no julgamento da ADPF 153

por Danton Mello e Silva & Maiara Aquino Vilela

“A lembrança é possível apenas porque os indivíduos vivem em sociedade. É na sociedade que o homem adquire a sua memória, a conserva e a evoca.”[1] Assim afirmou o sociólogo francês Maurice Halbwachs ao desenvolver o conceito de “memória coletiva”. A arte, enquanto construção social, se insere nessa teoria como instrumento de mobilização das lembranças – e dos olvidos – de uma comunidade.

A obra “Ainda estou aqui”, de Marcelo Rubens Paiva, é exemplo do poder de resgate coletivo da arte. Ao contar a história de sua família, Paiva expõe também as feridas ainda não cicatrizadas de um Brasil que se recusa a enxergar seus crimes.

O entendimento irrestrito de anistia – como teorizado por Ruy Barbosa e ainda endossado pelo Supremo Tribunal Federal – é símbolo desse “comando de esquecimento”[2] do Estado brasileiro, que opta por ignorar as graves violações a direitos humanos praticadas por agentes do governo durante a ditadura empresarial-militar.

Assim, ao contrário de Eunice Paiva, o Alzheimer que acomete o Brasil não é uma doença neurológica, mas uma política de Estado. A arte surge então como um tratamento contra essa amnésia forçada daquilo que nos é incômodo, e o sucesso reverberante de “Ainda estou aqui” comprova que o esquecimento coletivo das atrocidades da ditadura se tratava de uma memória adormecida, mas jamais enterrada.

Até o momento, o Supremo Tribunal Federal não julgou os embargos de declaração interposto ao acórdão da ADPF 153, que reconheceu a “autoanistia” concedida pelos militares a agentes do Estado acusados de graves crimes contra a humanidade.

A decisão, sustentada no argumento dos ministros de um suposto “acordo nacional” ou “fruto de um propósito elevado”, nas mesmas expressões citadas no voto do Min. Celso de Mello, ou ainda como “o preço que a sociedade brasileira pagou para acelerar o processo pacífico de redemocratização com eleições livres e a retomada do poder pelos representantes da sociedade civil”, como resumiu a ministra Ellen Grace. Pagamos ainda duplamente o preço de longos períodos sem democracia e o esquecimento dos “crimes conexos” nos anos de chumbo.

A postura do STF contrasta com a de cortes constitucionais de países vizinhos da América do Sul, como Argentina e Chile, que promoveram reformas profundas no sistema de justiça e responsabilizaram seus ditadores (Augusto Pinochet e Rafael Videla), bem como os militares e outros agentes envolvidos em tortura e repressão. No Brasil, a omissão judicial preservou a impunidade e alimentou o golpismo, reacendido décadas depois por militares contrários à redemocratização e às ações de responsabilização e reparação das vítimas, como as da Comissão Nacional da Verdade em 2011[3].

É verdade que, em relação ao julgamento dos crimes contra o Estado Democrático de Direito perpetrados no dia 8 de janeiro de 2023, o STF agiu com celeridade e firmeza institucional, dentro das balizas da Constituição de 1988, para apuração e responsabilização dos crimes. No entanto, a história é ingrata e cobra o preço do “esquecimento” e da “pacificação” buscada sem a devida responsabilização e justiça. Como observa Marcelo Semer em Paradoxos da Justiça, no julgamento da ADPF 153, as contradições que movem o Judiciário, regou as sementes do esquecimento e deu alimento à impunidade.

O Brasil precisa aprender com a experiência argentina e ospaíses vizinhos na américa latina que realizaram o processo de transição. Até o momento, o Brasil segue sendo o único, entre os 16 países que aprovaram leis de anistia, que mantém o bloqueio ao julgamento e à responsabilização pelos crimes contra a humanidade. O Brasil paga hoje o preço dessa omissão[4].

Durante as campanhas pela anistia, o engajamento da sociedade civil (em especial do movimento de mulheres, mães e esposas de desaparecidos políticos, como Janaína Teles) tinha como objetivo a liberdade, o reconhecimento estatal das ilegalidades e abusos e a reparação das vítimas. Contudo, com o aval do STF, a anistia transformou-se em sinônimo de impunidade e garantia de que os agentes do Estado não seriam punidos.

Cabe, portanto, ao Brasil e ao STF decidir se continuarão a sustentar um processo de esquecimento coletivo e a retroalimentação de feridas abertas ainda não cicatrizadas de um país que se recusa a enxergar os seus crimes. Ou se seguirão o exemplo dos vizinhos latino-americanos, como no histórico “Juicio a las Juntas” de 1985, e a declaração da nulidade da Lei da Obediência Devida, no qual líderes da ditadura argentina foram condenados por crimes contra a humanidade e a prática de tortura, sendo afastado a anistia, em nome da memória, verdade, justiça e reparação à sociedade argentina.

Aos juízes e promotores brasileiros, vale a recomendação do filme “Argentina, 1985”, do diretor Santiago Mitre, que contrasta com a transição inacabada no Brasil. A obra de Mitre retrata a luta dos promotores Julio Strassera e Luis Moreno Ocampo, e de sua equipe de jovens juristas, contra pressões políticas e militares, resultando em vitórias importantes, como a implantação de reformas judiciárias abrangentes e a proibição de civis serem processados por tribunais militares, além da submissão de militares a tribunais civis quando acusados de crimes contra a dignidade dos civis.

A arte e a história devem inspirar coragem, não um “perdão cordial” em nome de um consenso para a transição democrática. É preciso resgatar a memória, promover justiça e responsabilização – dimensões negligenciadas pelo Judiciário brasileiro – para concluir de fato o processo de redemocratização e evitar a reprodução cotidiana da repressão e da violência política de Estado que ainda maculam nossa democracia.

Cumpre seguir as recomendações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil[5], que determinam a eliminação da autoanistia como obstáculo ao reconhecimento e julgamento dos crimes contra a humanidade. É preciso retirar o manto áspero e ácido da impunidade que corrói o Estado Democrático de Direito e reafirmar que ninguém está acima da lei – seja agente estatal, político ou civil -, garantindo a responsabilização dos autores de graves violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade, e, assim, impedir que se perpetua o processo inacabado de transição que macula à democracia brasileira[6].

Por fim, como afirma Lenio Streck: “Não devemos temer esse debate, porque ele, a todo tempo, deve significar uma espécie de “blindagem” contra regimes autoritários. Ao falar do velho, conservamos vivas as possibilidades do novo.”[7]

Referências bibliográficas

ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo. Mutações do conceito de anistia na Justiça de Transição brasileira: a terceira fase da luta pela anistia. In: BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Justiça de Transição: análise comparada Brasil-Alemanha. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, Comissão de Anistia, [s. d.]. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/comissao-de-anistia/anexos/justica_transicao_analise_comparada_brasil_alemanha.pdf. Acesso em: 13 ago. 2025.

AUTOR DESCONHECIDO. Anistia plena teorizada por Rui Barbosa encontra freios contemporâneos. Migalhas – Quentes, [S. l.], 30 jul. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/426902/anistia-plena-teorizada-por-rui-barbosa-encontra-freios-contemporaneos. Acesso em: 30 jul. 2025.

BORGES, Nadine. A exumação da ditadura e o comando de esquecimento: um estudo autoetnográfico das políticas de memória e verdade no Brasil. 2020. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) — Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020.

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Recurso eletrônico. Brasília: CNV, 2014. 976 p. (Relatório da Comissão Nacional da Verdade; v. 1).

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Centauro, 2006.

PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Editora Schwarcz, 2015.

SEMER, Marcelo. Os paradoxos da justiça: judiciário e política no Brasil. 1. ed. São Paulo: Contracorrente, 2021.

SIKKINK, Kathryn; WALLING, Carrie Booth. The impact of human rights trials in Latin America. Journal of Peace Research, v. 44, n. 4, p. 427-445, 2007. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/27640539. Acesso em: 13 ago. 2025.

STRECK, Lenio Luiz. Os equívocos do Supremo Tribunal Federal do Brasil na interpretação da Lei da Anistia. In: BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Justiça de Transição: análise comparada Brasil-Alemanha. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, Comissão de Anistia, [s. d.]. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/comissao-de-anistia/anexos/justica_transicao_analise_comparada_brasil_alemanha.pdf. Acesso em: 13 ago. 2025.


[1] HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Centauro, 2006.

[2] BORGES, Nadine. A exumação da ditadura e o comando de esquecimento: um estudo autoetnográfico das políticas de memória e verdade no Brasil. 2020. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) — Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020.

[3] Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. – Recurso eletrônico. – Brasília: CNV, 2014. 976 p. – (Relatório da Comissão Nacional da Verdade; v. 1)

[4] MAISONNAVE, Fabiano. “Via judicial da repressão evitou mortes, afirma brasilianista”, Folha, 2004. Acesso em 13 de agosto de 2025.

[5] de Direitos Humanos, C. I. (2010). Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Observatório Da Jurisdição Constitucional1(1). Recuperado de https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/observatorio/article/view/479

[6] Sikkink, Kathryn, and Carrie Booth Walling. “The Impact of Human Rights Trials in Latin America.” Journal of Peace Research, vol. 44, no. 4, 2007, pp. 427–45. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/27640539. Acesso em 13 de agosto de. 2025.

[7] STRECK, Lenio Luiz. Os equívocos do Supremo Tribunal Federal do Brasil na interpretação da Lei da Anistia. In: BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Justiça de Transição: análise comparada Brasil-Alemanha. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, Comissão de Anistia, [s. d.]. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/comissao-de-anistia/anexos/justica_transicao_analise_comparada_brasil_alemanha.pdf. Acesso em: 13 ago. 2025.

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Last Update: 13/08/2025