Dois estudos sobre a eleição paulistana divulgados esta semana mostram um quadro preocupante. O dado mais evidente é que Pablo Marçal sequestrou a agenda da disputa. A campanha pode se transformar num fla-flu entre quem é contra ou a favor do ex-coach. Racional ou intuitivamente, ele conseguiu captar uma insatisfação difusa no ar e transformá-la em impulso político. Uma insatisfação que pode ser aparentada à situação de 2013, quando todos os indicadores econômicos – PIB, emprego, renda etc. – apontavam para cima, até que um Krakatoa social entrou em ebulição. O fascismo cresce não apenas em situações de crise, mas em ambientes nos quais o descontentamento está nos subterrâneos da vida social.
Marçal radicaliza uma característica da extrema direita internacional nos últimos anos, a de se colocar como rebelde em meio a um horizonte de conformismo ou resignação geral. Isso gera engajamento militante, algo que não se vê em outras campanhas. Por mais que a família Bolsonaro insista no apoio a Ricardo Nunes, lhe falta exatamente essa viga mestra do neofascismo, a de se apresentar como antissistema.
Há uma tensão nos meios bolsonaristas. O “mito” quer empurrar para seus adeptos um político fisiológico de velho estilo, enquanto suas bases se identificam com o pique outsider de Marçal. Assim, é supérfluo debater quem o bolsonarismo reconhece como seu, até porque não se sabe até aqui se existe algo como “o bolsonarismo”, ou se estamos diante de uma manifestação neofascista de características novas e muito mais agressivas e letais à democracia. Marçal é o primeiro personagem extremista a se afastar da família miliciana sem que seu chão político desabe (lembremos da ascensão e queda de Joyce Hasselman e Alexandre Frota). Marçal é daqueles “contra tudo o que está aí”, versão hardcore.
O crescimento de Marçal tira votos de quem? Aqui entramos num terreno quase especulativo, pois as duas pesquisas recentes apresentam resultados que nos dão poucas pistas. Na Atlas-Intel, sua disparada de 11% para 16,3% entre 8 e 20 de agosto tem como contrapartida as quedas de Boulos (33% para 18,5%) e de Ricardo Nunes (25% para 21,8%). Com alguma licença poética, podemos concluir que o extremista canibalizou os dois da dianteira. Já o Datafolha mostra que Boulos fica onde sempre esteve (23% para 22%) e Ricardo Nunes cai de 23% para 19%, entre 6/7 e 20/21 de agosto. Nesse período, Marçal salta de 14% para 21%. O quadro tendencial é que queda de Nunes, estagnação de Boulos e decolagem de Marçal.
O mix de Milei e Bukele conseguiu, com pouco esforço, empurrar seus oponentes para o lugar de conformistas passivos. Nada é mais conservador na capital paulista do que Ricardo Nunes, títere de Milton Leite, o poderoso presidente da Câmara, e herdeiro dileto do fisiologismo malufista. Nessa situação, Guilherme Boulos, em tese a esquerda radical, decidiu esvaziar seu lado combativo e se apresentar como o defensor do amor. Ou do conformismo em versão fofa. O ex-líder do MTST optou por infantilizar sua jornada com coraçõezinhos, pets, sorrisos em qualquer situação, sapatênis e barba desenhada. O elan vital do promissor líder do MTST de anos atrás se dissolve num figurino de tiozão do pavê a fazer trocadilhos com o próprio nome.
Na Câmara dos Deputados, Boulos se revelou um deputado de baixo perfil, que jamais entra em bolas divididas. Como líder da bancada de seu partido, buscou de toda maneira deixar de lado críticas ou contestações às políticas do Executivo. O ápice foi tentar esvaziar qualquer debate sobre o arcabouço fiscal e trabalhar para que o PSOL não votasse contra a medida do PT, de claro viés antidesenvolvimentista e antidistributivista. O acordo pelo apoio de Lula em São Paulo estava em pleno andamento.
Boulos quase não tocou em dois temas centrais para a cidade em que disputa a prefeitura. O primeiro são os apagões provocados pela ENEL, empresa italiana de energia. De forma inexplicável, foi para cima de Nunes, culpando-o pelo problema, até se dar conta que a concessão é federal. Para investir contra a empresa, teria de exigir do governo Lula a cassação da concessão. O presidente da República já decidiu prorrogar as concessões que vencem entre 2025-30 (a partir das privatizações de FHC) e jamais embarcaria num confronto com o mercado. Assim, o principal candidato de oposição deixou de lado um grave problema de infraestrutura.
O segundo tema é a destruição selvagem do tecido urbano da capital, ampliado pela revisão do Plano Diretor, aprovado pela Câmara Municipal no início do ano. Cinco dos oito vereadores do PT votaram a favor da proposta da prefeitura-Secovi (o sindicato das empresas imobiliárias). A bancada do PSOL foi a única que fechou questão contrária. O desmonte de bairros inteiros aumenta a impermeabilização do solo, satura os sistemas hídricos e avança sobre áreas de mananciais. Uma nova estação de chuvas fará estragos enormes. Com esse resultado, torna-se difícil para o candidato do PSOL abrir baterias contra medidas apoiadas por agremiação aliada.
Sem poder enfrentar concretamente tais assuntos, Boulos se despolitiza. Entra aí a campanha no bom e velho estilo PT: contrata-se um marqueteiro de nome (no caso, o de João Dória), cria-se um slogan insosso, pretensamente simpático e transforma-se o programa de governo numa peça de marketing, com temas simpáticos que podem ser assumidos por qualquer um.
A campanha Boulos olimpicamente ignorou o cenário que gerou condições para o surgimento de um aventureiro extremista. Tudo daria certo, em tese, com o apoio de Lula. Vamos combinar: Lula faz um governo mediano, sem marcas claras, recuado em relação às forças da direita (militares, Faria Lima, Globo, centrão etc.) e capaz de passar o pano para o golpismo latente na sociedade. Nomeia a fina flor da direita para a PGR, para ministérios e para o STF (Cristiano Zanin) e toca a vida como se estivéssemos em 2002-03. Tem a seu favor um relativo controle da inflação, uma alta do emprego (de baixa qualidade e baixos salários) e alardeia a memória do que foi seu segundo mandato, de expansão de investimentos e crescimento econômico, em meio à crise de 2008. A gestão atual tem no ajuste fiscal a todo custo sua pedra de toque.
O nó agora é como enfrentar o marginal Pablo Marçal. Boulos já demonstrou no debate do Estadão não ter se