No dia em que José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, saiu da Rede Globo, escrevi uma coluna na Folha dizendo que, se a Globo fosse uma empresa de capital aberto, suas ações despencariam com a notícia.
Só os mais velhos podem ter ideia do que representou o padrão Globo de qualidade nos anos 90, com o país mal saindo da ditadura e buscando uma integração competitiva com a economia mundial.
Os dois símbolos máximos da qualidade brasileira eram a Globo e a Tam, companhia de aviação fundada pelo comandante Rolim
Em cada início de ano, havia um frisson no país, aguardando o anúncio da nova programação da Globo. Eram novos programas, velhos programas repaginados, os blockbusters (filmes de grande audiência) eram as parcerias com o que havia de melhor na TV mundial, era a abertura do Fantástico.
As novelas da Globo se tornaram o grande instrumento de soft power brasileiro. Participei do famoso estudo de Domenico Di Masi sobre A Cara do Brasil no mundo. Os três eventos mais relevantes eram a música, as festas brasileiras e as novelas da Globo, espalhando pelo mundo a beleza feminina, o jeitinho brasileiro e a musicalidade.
Para montar o padrão Globo, Roberto Marinho contou com duas ajudas fundamentais do grupo Time-Life. Uma, foi o know how, a indicação de profissionais que ajudaram a definir alguns pontos fundamentais na competição: a criação de uma grade de programação; o uso intensivo de pesquisas de opinião e a montagem de grades de programação e pacotes publicitários.
O grande nome foi Joseph Wallach, diretor executivo da Globo de 1965 a 1971.
O grupo Time-Life também garantiu um empréstimo de US$ 5 milhões – muito dinheiro para a época – e a publicidade de vários grupos norte-americanos, entre os quais a Esso, que transferiu para a Globo o “Repórter Esso”.
Fora da Globo, o negócio preferencial de Roberto Marinho eram os investimentos imobiliários. Era tão aferrado ao setor que abriu espaço em O Globo até para Mattos Pimenta, um nacionalista ferrenho, mas dono da maior empresa imobiliária do Rio de Janeiro.
Segundo me contou José Serpa, um dos gurus de Marinho, este colocou todos seus bens em garantia, para complementar o empréstimo da Time-Life. E quase perdeu o controle da Globo para Walther Moreira Salles – conforme narro em meu livro “Walther Moreira Salles, o banqueiro embaixador”.
Pouco antes, Walter, Marinho e Arnon de Mello ficaram sócios no Parque Lage. O parque foi tombado por Carlos Lacerda, governador do Rio de Janeiro, em represália a Marinho. Quando entrou Chagas Freitas, Marinho conseguiu o destombamento do parque. Mas, antes que a notícia espalhasse, propôs a Walther adquirir sua parte no empreendimento.
A forra veio pouco depois. Walther era o banqueiro de Marinho. Para receber o empréstimo da Time-Life, Marinho deixou as ações da Globo em garantia. A Time-Life, por sua vez, não tinha interesse em assumir o canal, depois de uma CPI estimulada pelos Diários Associados.
No dia do pagamento, em vez de emprestar a Marinho, Walther se considerou no direito de ir até os gringos para adquirir as ações dadas em garantia.
Marinho foi salvo por José Luiz de Magalhães Lins, sobrinho de Magalhães Pinto e presidente do Banco Nacional, que garantiu o empréstimo e tornou-se patrocinador do maior sucesso jornalístico da Globo e da imprensa brasileira, o Jornal Nacional.
Durante décadas, os jornais brasileiros não fechavam a primeira página sem assistir, antes, o Jornal Nacional.
A fase brasileira
Os dois brasileiros que assumiram a frente da emissora foram Boni, na produção, e Walter Clark, no comercial.
Amparados, também, pela publicidade oficial, Boni deu início ao padrão Globo.
O primeiro grande desafio foi desbancar o programa Flávio Cavalcanti, que dominava as noites de domingo pela TV Tupi. Boni montou o Fantástico, programa inovador que assumiu a liderança em pouco tempo.
Os carros-chefe do Padrão Globo passaram a ser o Jornal Nacional, as novelas em horário fixo, os programas de variedades – dentre os quais alguns programas humorísticos clássicos – e os filmes blockbusters. Todos sob supervisão severa de Boni, para garantir o padrão Globo de qualidade.
Boni inspirou-se fundamentalmente no padrão das rádios cariocas, a rádio Nacional, a Mayrink Veiga com seus humorísticos, novelas, musicais e jornais.
A qualidade musical foi garantida pelos maestros José Siqueira, Radamés Gnatalli, Leo Peracchi, todos egressos do período de ouro da rádio Nacional.
Mas o ponto central eram as novelas. Sob sua direção, a Globo revelou nomes da teledramaturgia, como Dias Gomes, Janet Clair, Gilberto Braga, Aguinaldo Silva, o inesquecível Manoel Carlos, Glória Perez, Benedito Ruy Barbosa, Walcir Carrasco, Carlos Lombardi e Mário Prata, jamais igualados na era pós-Boni.
Cada novela da Globo era um evento nacional. A trilha sonora era disputada por todos os compositores. Entrar em uma trilha de novela era a garantia para o sucesso.
Dentre os autores, Walcir é uma figura curiosa. No meu período de Secretário de Redação da Folha, Otávio Frias de Oliveira pretendeu criar algum colunista que emulasse o padrão Paulo Francis ou Telmo Martino no jornal. Telmo era um colunista extremamente sarcástico, que tinha coluna no Jornal da Tarde.
Deu uma coluna ao então jovem repórter Walcir Carrasco e o estimulou a distribuir sarcasmo contra tudo e contra todos.
Walcir começou a exagerar. Ponderei, na reunião de pauta com Frias, que Walcir poderia se queimar muito cedo, devido aos exageros. Frias, com seu estilo frio, foi incisivo: “Isso é problema dele”.
Pouco tempo depois, Walcir usou todo seu sarcasmo contra Paulinho da Viola. Aí foi demais. Saiu do jornal mas, algum tempo depois, encontrou seu caminho na teledramaturgia da Globo.
As novelas da Globo tinham a repercussão mundial hoje presente na teledramaturgia da Turquia.
O padrão Boni também chegou ao jornalismo, através das mãos firmes de Armando Nogueira. Através dele, a Globo contratou os mais brilhantes jornalistas, especialmente da Editora Abril e do Jornal da Tarde.
Coube a Alice Maria – hoje esquecida – levar o padrão Globo para a recém criada Globonews.
Aliás, em fins dos anos 80 fui convidado por Alice Maria, através de Wianey Pinheiro e Woile Guimarães, diretor de jornalismo em São Paulo, para trabalhar na rede Globo. Junto com a proposta, veio a possibilidade de transferir minha coluna “Dinheiro Vivo” do Jornal do Brasil para O Globo.
Recusei o convite. Aliás, recusei até o convite de um almoço com eles no Rio, para não ser tentado pela proposta. Sempre temi o bom emprego e o risco da acomodação.E prezava muito meu direito à opinião, algo que não ocorria no jornalismo da Globo, apesar da excelência técnica.
Boni saiu da Globo em 1997, quando assumiu a nova geração, os filhos de Roberto Marinho. Foi substituído por Marluce Dias, que veio da área administrativa, e ficou por 4 anos como diretor-geral da Globo. No seu período, contratou Serginho Grossman, Luciano Huck e Ana Maria Braga. Durante bom tempo foram as únicas novidades na programação da Globo.
Nos anos seguintes, a Globo enveredou-se pelas novas tecnologias, quebrou a cara com a Globo Cabo, quase quebrou de verdade com a maxidesvalorização de Fernando Henrique Cardoso e foi salva pelo BNDES.
Continuou a ser Globo. Mas nunca mais o padrão Globo de Boni, que sequer foi lembrado na comemoração dos 60 anos da rede.