De onde vem o apoio que amplas camadas populares ainda emprestam a Bolsonaro? Não deve ser de suas ações e políticas de interesse social, uma vez que, definitivamente, essa não foi a marca distintiva de seu governo. É curioso observar que, mesmo entre seus mais apaixonados seguidores, parece não haver quem consiga citar ao menos uma iniciativa com relevância. Quando instigados a fazê-lo, as respostas tendem a ser vagas e abstratas: combate ao “comunismo”, defesa da família tradicional e dos “valores cristãos”, não permitir que o Brasil “se torne uma Venezuela”, defesa da liberdade de expressão, resistência à “ideologia de gênero”, e por aí vai… O que tudo isso significa, de fato? Não importa. Não cabe questionar, fundamentar, explicar, discutir. Basta que todos reconheçam esses objetivos como seus e vejam em Bolsonaro seu legítimo representante.

Por outro lado, os traços negativos são bem objetivos e numerosos: mais de 700 mil mortos na pandemia de Covid–19, agravada pela inépcia do governo Bolsonaro; o aumento da fome e da pobreza, com um saldo de 30 milhões de brasileiros em insegurança alimentar; a criação do “orçamento secreto” para obter apoio no Congresso; a redução dos investimentos em saúde, educação, ciência, direitos humanos; o agravamento do déficit de moradia; o desmonte de organismos responsáveis pela proteção ao meio ambiente e às Terras Indígenas; a facilitação do acesso a armas de fogo, favorecendo o aumento da violência; os ataques ao Judiciário; a venda ilegal das joias sauditas; fraude nos cartões de vacinação da família; numerosos casos de corrupção etc. Isso sem mencionar a conspiração para dar um golpe de Estado, robustamente demonstrada pela Polícia Federal.

Se é assim, de onde vem, então, o apoio popular a Bolsonaro?

Em recente publicação nas redes sociais, ele próprio nos oferece, por certo involuntária e inconscientemente, uma resposta. “O truque de acusar líderes da oposição democrática de tramar golpes não é algo novo: todo regime autoritário, em sua ânsia pelo poder, precisa fabricar inimigos internos para justificar perseguições, censuras e prisões arbitrárias”, disse, antes de arrematar: “A cartilha é conhecida: fabricam acusações vagas, se dizem preocupados com a democracia ou com a soberania e perseguem opositores, silenciam vozes dissidentes e concentram poder”. Obviamente, ele pretendia, com essas palavras, atacar seus adversários políticos e, em particular, o Supremo Tribunal Federal, com o intuito de, fazendo-se de vítima, escapar da condenação pelos diversos crimes de que é acusado.

Foi por atacar sistematicamente seus adversários e as instituições democráticas que ele arregimentou tantos seguidores

Ao olharmos retrospectivamente para seu governo (e mesmo para antes dele) veremos facilmente que, no fundo, é de si mesmo que ele fala. O que fizeram Bolsonaro e seus aliados ao longo de todo esse período? Atacaram sistematicamente, sobretudo pela ação coordenada de milícias digitais, as urnas eletrônicas, o Tribunal Superior Eleitoral e determinados ministros da Suprema Corte, a esquerda de modo geral, mas sobretudo o Partido dos Trabalhadores, os artistas, os jornalistas, os sindicatos, os movimentos sociais, os coletivos populares, toda e qualquer instituição da sociedade civil que representasse obstáculo à continuidade de seu projeto de poder. Em suma, fabricaram “inimigos internos” para ocultar seus verdadeiros interesses e justificar sua permanência no poder, mesmo que por meio de um golpe de Estado. Não por acaso, o bolsonarismo rejeita qualquer iniciativa de regulação das mídias sociais, pois isso representaria impor limites a essa sua estratégia de conquista de hegemonia por meio da desinformação.

Esse foi e continua sendo o “truque” do bolsonarismo para preservar apoio popular e perpetuar-se no poder: fabricar falsos inimigos da população, fomentar o ódio contra eles e apresentar-se como o único capaz de derrotá-los. O mesmo velho truque prescrito pela Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento e tão prodigamente utilizado pelos golpistas de 1964 para justificar medidas de exceção, prisões, torturas, exílios e assassinatos durante a ditadura daquele período.

De fato, Bolsonaro conhece bem a cartilha que menciona em sua recente postagem e pela qual reza fervorosamente até hoje. Enebriou-se insaciavelmente do espírito fascista do regime autoritário que o engendrou e que ele declaradamente idolatra. Todavia, revelado o truque, desfaz-se o engodo e emerge o verdadeiro inimigo: o próprio bolsonarismo com seu projeto de poder excludente, elitista e antipopular. Traído por seu inconsciente, Bolsonaro, ao atacar o outro, seu antagonista, projeta nele sua própria imagem: desnuda-se, desmascara-se, desmistifica-se, entrega-se. O falso mito se desmancha no ar e, com ele, a tática bolsonarista de manipulação das consciências.

De quebra, a publicação supracitada também pode ser lida como um relato autobiográfico e em tom confessional, quase uma autodelação reveladora das ­intenções golpistas que cultivou ao longo de todo o seu mandato. E ainda há quem leve a sério a ideia de anistiá-lo. •


*Ex-diretor da Faculdade de Educação da Unicamp e professor titular do Departamento de Filosofia e História da Educação na universidade.

Publicado na edição n° 1352 de CartaCapital, em 12 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bolsonaro no espelho’

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Last Update: 06/03/2025