O governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) está prestes a oficializar uma das medidas mais controversas da história recente da política fundiária em São Paulo: a regularização de 600 mil hectares de terras públicas griladas no Pontal do Paranapanema — uma área equivalente a quatro vezes o tamanho da cidade de São Paulo — com descontos de até 90% e parcelamento em até dez anos. O programa, que já beneficiou grandes empresas do agronegócio, está sendo chamado por críticos de “bolsa-grileiro”, e levanta um debate urgente sobre justiça social, reforma agrária e o papel do Estado na distribuição de terras.
O cálculo, feito pelo UOL com base no Mapa de Terras 2023 do Incra, revela que os descontos concedidos pelo governo paulista chegam a R$ 18,5 bilhões. Sem os abatimentos, a arrecadação poderia ultrapassar R$ 20 bilhões — mais que o montante obtido com a privatização da Sabesp (R$ 14,8 bi). Com os descontos, o Estado espera arrecadar apenas R$ 1,5 bilhão.
As condições são generosas: pagamento parcelado em até dez anos e valores calculados com base em tabelas estaduais, muito abaixo da referência nacional do Incra. Na prática, áreas avaliadas em R$ 33,4 mil por hectare são vendidas por cerca de R$ 2.500, um desconto superior a 1.200%.
“Um processo criminoso”, diz jornalista
Para o jornalista Carlos Alberto Azevedo, que pesquisou a história fundiária da região para uma série de reportagens, a medida é mais do que controversa:
“Essa iniciativa do Tarcísio não é apenas ilegal. É criminosa. Ela busca transformar um crime centenário em propriedade legítima, legalizando registros falsificados e entregando terras devolutas que deveriam ser destinadas à reforma agrária, a latifundiários que enriqueceram à custa do Estado e da natureza.”
“O governador está institucionalizando um roubo de mais de 100 anos, ”, afirmou em entrevista ao Portal Vermelho. Segundo Azevedo, o Pontal do Paranapanema é um território marcado por um ciclo de roubo sobre roubo baseado em muita violência: terras que eram indígenas, depois de preservação ambiental, foram griladas por famílias poderosas da região — como as que hoje dão nome às grandes avenidas de Presidente Prudente.
“Você tem um grileiro inicial, que mata os índios, derruba a mata atlântica, empobrece o solo, e depois vem o Estado e legaliza tudo isso. É como se o Estado dissesse: ‘vocês roubaram, mas agora é de vocês’.”
Azevedo lembra que o Pontal é um dos maiores casos de grilagem do país, marcado por registros cartoriais fraudulentos desde o fim do século XIX. “Em vez de aplicar a Constituição e priorizar os trabalhadores rurais sem terra, o governo escolhe favorecer latifundiários e grandes empresas com preços irrisórios. É um ataque frontal à função social da terra”, criticou.

Impactos sociais e ambientais
Segundo Azevedo, a política de regularização não apenas bloqueia a criação de novos assentamentos — que poderiam beneficiar até 20 mil famílias — como pressiona os já existentes.
“O objetivo é cercar os assentamentos. Muitos acabam sendo empurrados a vender seus lotes, enfraquecendo a reforma agrária. É um processo de expulsão silenciosa”, disse.
O jornalista, que viveu na região na infância e juventude, descreve um ciclo de espoliação e empobrecimento:
Além disso, a região, originalmente coberta pela Mata Atlântica, sofreu devastação histórica. “Eles chegam, desmatam, empobrecem o solo, extraem a riqueza e vão embora. A terra fica arrasada, a população, pobre. E o Estado, em vez de intervir, premia os predadores.”
“Hoje restam pastos pobres e solos desgastados. O que Tarcísio está fazendo é perpetuar um modelo predatório que concentrou riqueza nas mãos de poucos e deixou cidades empobrecidas como dependentes do latifúndio”, avaliou.
Argumentos oficiais e críticas
O governo paulista sustenta que os descontos são um “ato de realismo”, já que anular registros centenários e indenizar benfeitorias sairia mais caro. Azevedo rebate:
“Isso é falso. As benfeitorias foram feitas conscientemente em terras públicas. Legalizar a grilagem com descontos de 90% é premiar quem enriqueceu explorando patrimônio coletivo sem pagar impostos. Os grileiros ganharam a natureza como fonte de riqueza, enriqueceram, e agora o Estado quer premiá-los? Isso não é realismo. É hipocrisia!”
Na Assembleia Legislativa, a oposição batizou o programa de “bolsa-grileiro”. O ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, também criticou a medida: “A Constituição é clara: terras devolutas devem ser usadas para a reforma agrária. O estado de São Paulo está indo na contramão”.
Conexão política e eleitoral
A política fundiária de Tarcísio faz parte de um projeto político maior. O governador, visto como candidato natural da direita em 2026, fortalece seu apoio no interior de São Paulo — uma região acirradamente conservadora.
Para Azevedo, a estratégia de Tarcísio não é apenas econômica: “Presidente Prudente é uma capital de latifúndios. Lá, o Bolsonaro teve 70% dos votos. O movimento evangélico avançou muito. O Tarcísio sabe disso. Ele está ‘nadando de braçada’”, diz Azevedo.
“O agronegócio é a principal base de apoio político dele. Essa regularização é moeda de troca, especialmente pensando em 2026. É o Estado transformado em ativo eleitoral.”
A disputa que não termina
Azevedo compara a iniciativa de Tarcísio com governos anteriores, de Ademar de Barros a Rodrigo Garcia: “Todos sempre favoreceram os grandes. A diferença é que agora o processo chega ao limite, com títulos praticamente gratuitos para empresas e latifundiários. O governador radicalizou”.
“Ademar de Barros já tentou isso nos anos 1960. Sempre houve tentativas de legalizar o grilo. O que o Tarcísio fez foi dar o golpe de misericórdia nesse processo: entregar de graça o que foi roubado.”
O tema deve parar no Supremo Tribunal Federal, onde já tramita uma ação de inconstitucionalidade. Até lá, a tensão segue em uma das regiões de maior conflito agrário do país — e que, segundo Azevedo, continua sendo um “roubo em cima de outro roubo”, iniciado com a expulsão e o massacre dos povos indígenas.
Grandes empresas, descontos bilionários
Levantamento do UOL com base em 217 editais mostra que o programa já beneficiou grandes players do agronegócio:
- Atvos (ex-Odebrecht Agroindustrial), líder nacional em etanol, comprou 508 hectares em Teodoro Sampaio por R$ 1,8 milhão — valor 79% abaixo do avaliado (R$ 8,6 mi).
- A Agropecuária Vista Alegre Ltda , com capacidade para abrigar 33 mil cabeças de gado, também foi beneficiada.
- A Fazenda Itapiranga , em Marabá Paulista, regularizou 2.000 hectares com desconto de R$ 25 milhões (90%), pagando apenas R$ 2,7 milhões .
As terras são usadas para criação de gado, soja, cana e etanol — cadeias produtivas que, aliás, recebem isenção de ICMS no estado, num pacote estimado em R$ 200 milhões.
O prejuízo: 300 assentamentos e 20 mil famílias
Enquanto grandes empresas consolidam suas propriedades, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) alerta: uma área em negociação poderia abrigar 300 novos assentamentos e beneficiar 20 mil famílias .
Hoje, o Pontal já tem 117 assentamentos, com 7 mil famílias em 147 mil hectares. Mas o novo marco legal, aprovado pela base governamental na Assembleia Legislativa, abre brechas perigosas:
- Permite dividir áreas em lotes, como condomínios rurais, burlando o limite de 2.500 hectares previsto na Constituição.
- Autoriza a regularização de terrenos em áreas de proteção ambiental .
- Permite que assentados vendam seus títulos individualmente, facilitando a especulação.
“É um retrocesso. O governo está cercando os assentamentos com latifúndios legalizados. O objetivo é pressionar os camponeses a venderem suas terras”, diz Azevedo.
O que está em jogo
O Pontal do Paranapanema é mais que uma região geográfica. É um símbolo da luta por justiça fundiária no Brasil . Lá, o MST começou a ocupar terras nos anos 1980, liderando por figuras como Zé Rainha. Lá, milhares de famílias conquistaram o direito à terra.
Agora, com uma camarilha, o governo Tarcísio pode apagar esse legado — e entregar ao agronegócio o que a Constituição destina à população. Enquanto isso, as estradas de terra do Pontal continuam marcadas por histórias de violência, desmatamento e esquecimento. Mas também por resistência.
Azevedo se aprofundou na história da grilarem no Pontal, nos trabalhos produzidos por geógrafos da Unesp de Presidente Prudente: “A ocupação do Pontal do Paranapanema”, por José Ferrari Leite (1981) e “MST, formação e territorialização” de Bernardo Mançano Fernandes (1996).