Quase oito milhões de bolivianos são chamados às urnas neste domingo (17) para escolher presidente, vice-presidente, 130 deputados, 36 senadores e nove representantes supranacionais. 

O Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) garantiu que o processo está pronto e que 80% dos resultados preliminares devem ser divulgados ainda esta noite, enquanto o resultado oficial será confirmado em até sete dias. 

Segundo a Corte, trata-se das eleições mais observadas da história do país, com a presença de 3.500 fiscais de 19 organizações nacionais e internacionais.

O pleito é considerado o mais arriscado para a esquerda desde 2006, quando Evo Morales chegou ao poder pela primeira vez. Depois de quase duas décadas de hegemonia do Movimento ao Socialismo (MAS), as pesquisas apontam como favoritos os candidatos da direita Samuel Doria Medina, da Alianza Unidad, e Jorge “Tuto” Quiroga, da Alianza Libre, que podem levar a disputa a um inédito segundo turno. 

O sistema boliviano permite vitória em primeiro turno apenas em caso de maioria absoluta ou de pelo menos 40% dos votos com uma vantagem de 10 pontos sobre o segundo colocado.

O MAS chega fragilizado por divisões internas e pela crise econômica. O ex-presidente Evo Morales foi impedido judicialmente de concorrer e passou a convocar seus apoiadores ao voto nulo, enquanto o atual mandatário, Luis Arce, foi expulso da sigla e desistiu de disputar a reeleição. 

O partido lançou Eduardo del Castillo como candidato, mas ele aparece com menos de 1,5% nas pesquisas, enquanto Andrónico Rodríguez, presidente do Senado, figura com cerca de 5%.

Esse cenário abre caminho para a direita, que tenta capitalizar o desgaste da esquerda após anos de disputas internas e o impacto da inflação, hoje em 25% ao ano. 

Analistas alertam que, caso confirmada a derrota do MAS, os avanços sociais conquistados nos últimos 20 anos — como a redução da pobreza extrema de 38,2% para 11,2% e a ampliação do acesso a direitos básicos — podem sofrer retrocessos.

Divisão da esquerda e crise econômica marcam o cenário do pleito

A divisão no MAS foi se acentuando desde 2023, quando Evo Morales acusou os apoiadores de Luis Arce de “traidores” em um congresso realizado em seu reduto em Cochabamba. 

O partido expulsou Arce, e a relação entre as duas principais lideranças da esquerda boliviana se transformou em uma troca constante de ataques públicos. Morales tentou criar um novo partido, mas foi barrado pela Justiça Eleitoral, que confirmou a decisão do Tribunal Constitucional de limitar a dois mandatos a ocupação do cargo de presidente e vice.

Sem Evo e com Arce afastado, Andrónico Rodríguez tentou se colocar como conciliador, mas não conseguiu reunir a militância em torno de sua candidatura. 

O MAS insistiu com Del Castillo, enquanto Evo passou a defender o voto nulo, o que enfraqueceu ainda mais a esquerda. 

Além da crise política, a economia atravessa turbulências. A inflação chegou a 25% em 2025, pressionada pelo aumento dos custos logísticos e pela dependência das importações de combustíveis, que somaram US$ 3 bilhões em gastos no último ano. 

Arce reconheceu as dificuldades, mas ressaltou que sua gestão manteve a democracia e anunciou a inauguração da planta de biodiesel de El Alto em setembro, vista como alternativa para reduzir a dependência externa.

O desgaste contrasta com o histórico de estabilidade das gestões do MAS, que durante 15 anos controlaram a inflação, mantiveram câmbio fixo em 6,96 bolivianos por dólar e nacionalizaram setores estratégicos, como petróleo, gás e minerais. 

Esses fatores foram centrais para a redução da pobreza e para o fortalecimento de políticas sociais, mas hoje não conseguem blindar o governo diante do descontentamento popular.

Arce cobra transparência e reage à ingerência estrangeira

Na véspera do pleito, Luis Arce defendeu em entrevista ao jornal argentino La Nación que a prioridade do governo é garantir eleições transparentes. “Que ganhe a direita, mas que o faça de maneira correta”, declarou, acusando a oposição de manipular pesquisas desde 2022. 

O presidente insistiu que a direita nunca superou 30% do eleitorado boliviano e lembrou que sua vitória em 2020 alcançou 55% dos votos.

Arce destacou como principal legado de sua administração a preservação da democracia após o golpe de 2019 e os protestos violentos em Santa Cruz. 

“Muitos não pensavam que íamos chegar às eleições, mas conseguimos. O melhor legado que estamos deixando é mostrar que se pode fazer uma transição democrática”, afirmou. 

O chefe de Estado também defendeu a base popular do MAS como força de resistência diante da ofensiva da oposição.

Sobre o plano econômico, Arce admitiu os problemas gerados pela dependência de combustíveis importados, mas afirmou que a Bolívia precisa avançar na industrialização dos seus recursos naturais. 

Anunciou que a planta de biodiesel de El Alto, prevista para setembro, reduzirá parte das importações e marcará uma nova etapa para o setor energético.

O presidente aproveitou ainda para rebater críticas externas. Acusou Javier Milei de ingerência ao comentar a economia boliviana e criticou a ministra da Segurança da Argentina, Patricia Bullrich, que alegou presença de forças iranianas no país. “Que nos demonstre isso. Nunca o demonstrou”, afirmou. A reação expõe como a disputa eleitoral boliviana também está marcada pela tensão diplomática com vizinhos regionais.

Lítio e o futuro do Salar de Uyuni no centro da eleição

Entre os temas que mais polarizam o debate está o futuro do lítio, recurso estratégico para a transição energética mundial. O Salar de Uyuni, maior reserva de lítio do planeta e destino turístico icônico, corre risco de degradação irreversível caso avance a exploração intensiva. 

O assunto tornou-se central na campanha de Samuel Doria Medina, que promete abrir o setor a investimentos estrangeiros, revisar contratos com russos e chineses e aprovar nova lei de mineração já em 2026.

Medina ataca diretamente o MAS, acusando o partido de usar o lítio como “alavanca política”. O candidato afirma que se eleito processará os responsáveis pelo contrato em análise com a estatal russa Uranium One e questiona o acordo de US$ 1 bilhão firmado com o consórcio chinês CBC. 

Ele também se aproximou de empresários como Marcelo Claure e Marcos Bulgheroni, da Pan American Energy, levantando suspeitas sobre a formação de um consórcio empresarial para explorar o recurso boliviano.

O ex-presidente Evo Morales e setores populares denunciam que esse modelo ameaça entregar a soberania nacional e destruir o salar. 

Estudos de universidades bolivianas e chilenas, apoiados por ONGs, apontam que a exploração a céu aberto ameaça recursos hídricos, comunidades indígenas e a atividade turística que sustenta milhares de famílias. 

As populações aimarás e quéchuas, que vivem do sal e do turismo cultural, já relatam impacto da retirada de milhões de litros de água subterrânea.

Segundo o economista boliviano Martin Moreira, o risco é a entrega de um patrimônio de valor incalculável em troca de lucros imediatos. Ele calcula que o salar vale US$ 66 bilhões apenas em matéria-prima, mas um modelo especulado no mercado poderia entregar as 21 milhões de toneladas de reservas em troca de apenas US$ 10 bilhões adiantados. 

O alerta é de que, sem consulta prévia às comunidades e sem proteção ambiental, a transição energética global pode reproduzir um modelo extrativista predatório na Bolívia.

Direita fortalecida em meio à desconfiança eleitoral

Além de Samuel Doria Medina e Jorge “Tuto” Quiroga, concorrem outros nomes da direita, como o ex-militar Manfred Reyes Villa, Rodrigo Paz Pereira, Jhonny Fernández e Pavel Aracena Vargas. 

Embora a oposição também seja fragmentada, a vantagem atual nas pesquisas coloca a direita como favorita para vencer o pleito ou levar a disputa a um segundo turno inédito na história boliviana.

O ambiente, no entanto, é de desconfiança. Horas antes da abertura das urnas, a Alianza Unidad denunciou a existência de um suposto “plano manipulado” para vincular seu partido a uma fraude eleitoral. 

O governo reagiu imediatamente em nota, classificando a acusação como “irresponsável” e parte da “guerra suja entre partidos de direita”. O Executivo pediu responsabilidade das forças políticas e defendeu a transparência do TSE, que assegura estar cumprindo o cronograma com rigor.

Em meio às tensões, a Bolívia define hoje se dará continuidade ao ciclo iniciado em 2006 com Evo Morales ou se abrirá caminho para um governo de direita após quase duas décadas de hegemonia progressista. Mais do que escolher seu próximo presidente, os bolivianos decidem o destino de seus recursos estratégicos e o rumo de um projeto político que foi referência regional nas últimas duas décadas.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 17/08/2025