A profusão de sinais contraditórios, tanto positivos quanto negativos, sobre as perspectivas da economia configura uma situação peculiar de divergência de indicadores e de análises que aumenta, em muito, a probabilidade de analistas do sistema financeiro e suas bolas de cristal embaçadas deslizarem em projeções furadas e arrastarem os investidores em outro escorregão na casca de banana das estimativas erradas. Empresas e aplicadores ainda contam as perdas das últimas estimativas sem fundamento e precisam fazer novos gastos e investimentos com um grau de incerteza que só aumenta, dado o elevado grau de desencontro de opiniões.
Alguns exemplos pinçados do noticiário sobre a famigerada crise fiscal dão ideia da dificuldade enfrentada por aqueles que tomam decisões econômicas ou financeiras. De um lado, o déficit nominal do Brasil disparou, a pressão da alta dos juros e do dólar sobre custos e despesas financeiras das empresas aponta para uma queda nos lucros e os empresários da indústria voltaram a ficar pessimistas após um ano e meio de otimismo, dizem jornais e sites. Em contrapartida, os mesmos veículos apontam que o déficit público de 2024 deve ser melhor do que as expectativas do mercado financeiro, o viés de queda da taxa de juros é de baixa, em sintonia com o comportamento do dólar, e o rendimento dos treasuries denota sinais discretos de mudança, para melhor, no modo de atuação do BC.
Segundo o economista Marcos Lisboa, a explicação para a disparidade de sinais e de interpretações dos analistas e operadores é que houve um otimismo exagerado do mercado no início do atual governo, que reverteu e foi substituído por um pessimismo até maior. “Erraram no otimismo e agora estão exagerando no pessimismo”, resumiu Lisboa em um evento promovido pelo portal de informações financeiras Infomoney. O mapa de riscos e de sinais positivos comporta, em uma visão ampla, as vitórias da União no STF em casos bilionários, que evitaram perdas de 860 bilhões de reais ao Fisco e tiveram um impacto positivo nas contas públicas e reduziram o risco jurídico. O inventário contempla também, no cenário externo, a incerteza predominante influenciada pela alta consistente do dólar, um contraponto forte a eventuais melhoras do quadro econômico no front interno. Instabilidades externas, no ápice com a ascensão de Trump, tendem a configurar-se como um contraponto preocupante, e fora de controle, de eventuais melhoras internas na economia.
Até mesmo Robin Brooks, ex-economista-chefe da IIF e ex-estrategista da Goldman Sachs, incorrigível otimista quanto ao Brasil, diz agora que o País corre o risco de ser abandonado pelos investidores. A emergência do Brasil como um grande país com superávit comercial, sublinhou o especialista em investimentos, depende da China e isso agora é uma vulnerabilidade, se esse país tentar evitar tarifas comprando mais produtos agrícolas dos EUA. “O Brasil está prestes a descobrir que não existe um ‘Sul Global’. O Brasil pode ser descartado como uma batata quente”, disparou o ex-otimista Brooks.
As intervenções com compromisso de recompra e por meio de swaps não mexem nas reservas cambiais
A regra universal de manter os pés no chão recomenda não perder de vista, no entanto, perspectivas como aquelas apontadas pelo economista-chefe da Warren Brasil, Felipe Salto. As expectativas do mercado financeiro para o déficit público em 2024 eram piores do que o dado final deverá mostrar, ressaltou Salto em recente artigo. O déficit primário, isto é, sem incluir os juros da dívida, encerrou o ano passado em 47,5 bilhões de reais ou 0,4% do PIB, como previa o governo. Uma melhora expressiva em relação a 2023. O déficit de 0,4% do PIB em 2024 é, portanto, “um feito importante na direção do ajuste fiscal”, destacou Salto, na contramão daqueles que insistem em apontar uma situação de grave descontrole.
A maior parte dos chamados players do mercado não esconde o receio em relação à possibilidade de descontrole da inflação, um risco considerado como quase inevitável diante da tendência, também vista como incontornável, de aumento do gasto do governo. O ponto de partida das análises sobre a questão é o boletim Focus, compilado pelo Banco Central, alimentado por cerca de 140 integrantes de bancos, corretoras e outras instituições financeiras. “Quando alguém recorrer ao relatório Focus para falar de inflação, mande para eles a projeção do IPCA pelo BC na carta aberta do presidente da instituição, Gabriel Galípolo, para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Repare como voltamos à meta ainda em 2025 no cenário-base. Não é tão ruim quanto os players de mercado projetam”, sublinhou o economista Cleiton Silva, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, em debate sobre as tendências da economia em uma rede social. A carta mencionada é a mensagem protocolar de explicações sobre o comportamento da inflação em relação à meta fixada.
No mesmo debate, o investidor Gustavo Araújo observou que, quando se trata do déficit primário e das projeções do Tesouro Nacional, pouco se observa a mudança dessas projeções ano contra ano. “Em 2024, o Relatório de Projeções Fiscais do Tesouro Nacional dizia que só zeraríamos o déficit em 2029. Esse ano, as projeções dizem que será em 2027. A situação fiscal está melhorando”, ressaltou Araújo.
“Nós estamos com uma situação estranhíssima no Brasil”, disparou o empresário Emerson Kapaz, em entrevista à TV Cultura, “porque temos a menor desigualdade de renda da história, um dos menores índices de desemprego, um crescimento vigoroso em 2024, mesmo com o juro crescendo, e uma possibilidade real de ainda se ter um crescimento menor, mas ainda assim crescimento, em 2025.” Projeções indicam que a dívida pública chegaria a 80% do PIB em 2024, mas “há países que têm muito mais que isso”. A situação seria crítica, não houvesse reservas de mais de 360 bilhões de dólares. O Brasil não tem problema de renegociação de dívida externa, está em uma condição econômica consistente. O maior problema que se tem hoje para que tudo isso volte ao normal, frisou Kapaz, é que o mercado consiga ver que há um ajuste fiscal, e o esforço não é atributo só do governo. “Isso é importante entender”, ressaltou o empresário.
Centro de convergência e de difusão de expectativas, o Banco Central dá sinais de que passará a agir rápido para prevenir ou enfrentar movimentos especulativos, pouco restringidos no mercado cambial no fim do ano. Na segunda-feira 20, em uma antecipação a possíveis agitos do dólar por conta da posse de Trump e das instabilidades decorrentes da nova política econômica dos EUA, o BC fez dois leilões com compromisso de recompra, no valor de 2 bilhões de dólares. A intervenção não reduziu as reservas cambiais, ao contrário de várias ações comandadas por Roberto Campos Neto em dezembro, que diminuíram aquela conta em 33,27 bilhões de dólares. A operação, a primeira da gestão de Gabriel Galípolo na presidência do BC, “sinaliza, ainda que de maneira tímida, uma certa mudança na atuação do Banco Central”, aponta o economista Saulo Abouchedid, professor da Facamp.
Em primeiro lugar, prossegue Abouchedid, a instituição foi muito rápida. “É um recado ao mercado, de que o Banco Central não deixará o dólar disparar como aconteceu no fim do ano passado. Uma sinalização de que a autoridade monetária agirá de modo ágil para conter movimentos especulativos, antecipando qualquer tipo de overshooting cambial.” Overshooting é uma reação abrupta e mais que proporcional da taxa de câmbio a uma variação da oferta de moeda no curto prazo.
Os chamados mercados atribuíram a estabilidade do dólar na segunda-feira 20 à postergação pelo governo dos EUA de decisões negativas ao comércio mundial. A explicação não é convincente se o Brasil vive de fato a crise identificada por instituições como o Banco BTG, que prevê a escalada do déficit nominal à posição de segundo maior do mundo e o dólar a 7 reais este ano.
Outra mudança reside no instrumento utilizado. O compromisso de recompra, em geral usado nos fins de ano, sugere o recurso a mais instrumentos que não diminuem as reservas internacionais, caso também dos swaps cambiais. Na quarta-feira 20, o BC informou ter vendido a oferta integral de 15 mil contratos de swap cambial em leilão de rolagem do vencimento de março de 2025.
Ainda na segunda-feira 20, o BC anunciou que passará a divulgar novos rankings Top 5 da Pesquisa Focus, alterará os do IPCA Cesta e deixará de calcular aqueles do IGP-M. Segundo Abouchedid, a modificação mostra maior preocupação com a economia real, a exemplo do PIB e da taxa de desocupação. Revela também uma atenção maior com o longo prazo e ainda uma tentativa de mudar a relação com o mercado quanto à formação de expectativas de inflação.
“Em vez de ficar debatendo inflação de preços livres e administrados, ele vai discutir o IPCA Cesta, que inclui serviços, preços livres, alimentação no domicílio e bens industrializados e levar um pouco o mercado a se voltar para a atividade econômica. Ou seja, ele está orientando algumas pautas que serão importantes nesta gestão”, sublinha o professor da Facamp. •
Publicado na edição n° 1346 de CartaCapital, em 29 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bola de cristal embaçada’