no Come Ananás

Bisturi Verde Amarelo

por Hugo Souza

Arkady Babchenko é um jornalista russo que anos atrás forjou a própria morte com a ajuda do serviço secreto da Ucrânia. O teatro teve direito a ambulância cruzando as ruas de Kiev, camisa perfurada de bala – só que não – e lambuzada com sangue de porco, que ketchup é para os fracos, coisa de Hollywood. Tudo para Babchenko sair da mira de assassinos recrutados por Vladimir Putin.

A morte fake de Babchenko aconteceu em maio de 2018, pouco antes da facada em outras coordenadas geográficas: na frente de uma loja da rede Riachuelo, na cidade de onde partiram as tropas que precipitaram uma tal “revolução”.

Em Kiev, uma equipe médica envolvida na farsa foi buscar o “corpo” no apartamento do falso morto, levou-o ao hospital, atestou a morte e mandou um Arkady Babchenko bem vivo para o necrotério. Duas horas depois da encenação, Babchenko estava sentado na frente de uma TV descobrindo suas próprias virtudes em obituários laudatórios, aqueles que via de regra são dedicados aos mortos de expressão pública, quase todos eles, desde que não sejam algum Bin Laden.

É Arkady Babchenko quem aparece “morto” na foto abaixo, tão chocante quanto armada.

Caso parecido, só que mais antigo, foi o do escritor romeno Virgil Tanase, crítico ferrenho de Nicolae Ceausescu. Em 1982, exilado na França, Tanase foi desaparecido do mapa pelo governo francês quando descobriu-se que Ceausescu dera ordem para matá-lo. O serviço secreto francês escondeu o escritor durante três meses na Bretanha, fazendo crer que ele estava morto e acusando a Romênia pelo assassinato.

Na época, um notório conhecedor da farsa, ninguém menos que François Mitterrand, então ocupante do Palácio do Eliseu, chegou a cancelar uma viagem oficial a Bucareste por causa da “trágica hipótese” de um assassinato em território francês sancionado por um Estado estrangeiro.

Em um livro sobre o caso, publicado anos mais tarde, os autores ressaltaram o comportamento da esposa de Tanase ao lidar com a polícia: “ela estava mais que perfeita no papel de esposa preocupada que não sabia o que tinha acontecido com o marido”.

Protagonistas de mais que justificáveis encenações de sobrevivência, de justos ardis anti-ditaduras, Arkady Babchenko e Virgil Tanase estão aí até hoje, bem vivos, e mandam lembranças àqueles que rejeitam, descartam como teoria da conspiração a desconfiança – a desconfiança dos escaldados – sobre histórias mal contadas de hospitais; aos que acham que não cabem dúvidas sobre o que dizem, como agem o mitômano e seu círculo em meio ao dedo no reto e gritaria no banco dos réus, à “narrativa” insustentável de perseguição pela “ditadura da toga”.

Jair Bolsonaro tietado por equipe médica em hospital no Rio Grande do Norte (Foto: Reprodução/Redes sociais).

Não cabem dúvidas porque, afinal, tem ambulâncias na jogada, equipes médicas e esposa preocupada – e não muito mais que isso.

Que esteja em curso uma outra operação de desobstrução – da anistia; que as equipes médicas mais pareçam fãs-clubes; que a esposa preocupada tenha escolhido médico novo, hospital novo para um nada, nada novo episódio de internação providencial; que o médico antigo, referência em gastrocirurgia, tenha dito que não era um caso para bisturi; nada disso parece ser suficiente para que a imprensa brasileira “de referência” veja aí um caso para apuração.

Hugo Souza é jornalista.

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Last Update: 15/04/2025