Big Techs: mundo novo, problemas antigos

por Fábio de Oliveira Ribeiro

A velocidade de expansão dos data centers ao redor do mundo é simplesmente fantástica. Estima-se que em 2015 existiam 8.500 data centers no mundo. Esse número cresceu para 11.800 data centers operacionais em 2025. Em 2030 existirão 15.000 data centers. Eles consomem uma imensa quantidade de energia elétrica e de água de refrigeração. Alguns deles dependem fundamentalmente da energia gerada por usinas de energia movidas a combustíveis fósseis. Os problemas ambientais causados pelos data center, cada vez maiores maiores e com mais computadores, é imenso: poluição, falta de água potável e é claro o barulho.

De maneira geral a imprensa dá muita atenção à propaganda das Big Techs acerca dos benefícios dos investimentos em tecnologia e nenhuma atenção às comunidades afetadas por data centers. As externalidades negativas desse ramo da economia deve ser necessariamente estendido à necessidade de matéria-prima para a fabricação de microchips e outros componentes eletrônicos, cabos convencionais e óticos, etc. O mesmo pode ser dito em relação aos dispositivos eletrônicos móveis (smartphones, tablets, drones, robôs e notebooks) que os usuários inevitavelmente usarão para se conectar à internet produzindo dados que circularão e serão armazenados e analisados num data center.

Minas de cobre antigas são expandidas. Novas minas de diversos outros materiais também. Terras raras são havidamente procuradas inclusive em nódulos no fundo do mar. O apetite desse ramo da economia tende a se expandir ainda mais agora que novos armamentos empoderados por IAs, autônomos ou não, começam a ser desenvolvidos e incorporados pelas Forças Armadas dos países mais ricos (e dos mais pobres que puderem comprá-los também). Esses armamentos dependem de microchips, dispositivos de geolocalização e são e/ou serão conectados em tempo real a data centers que prestam serviços aos militares.

Tudo isso custa dinheiro. Boa parte da infraestrutura de internet é financiada com dinheiro privado. Mas o financiamento público é importante, mais importante do que a maioria das pessoas imagina. Uma maior alocação de recursos públicos para esse ramo da economia (inclusive por razões de segurança nacional), significa menos dinheiro para investimento em outras áreas críticas de grande impacto humanitário (saúde, educação, seguro-desemprego, habitação, transporte público, bem-estar social e previdência pública, por exemplo).

Num futuro previsível, em caso de guerra, a infraestrutura de energia elétrica, comunicação e de internet do inimigo serão alvos legítimos. Data centers inimigos também terão que ser destruídos, sejam eles propriedade de instituições públicas ou privadas. A guerra será lutada tanto no ciberespaço quanto no mundo real, porque os supercomputadores terão tanto ou mais valor do que as fábricas dos armamentos que eles orientam e/ou controlam em tempo real.

A corrida para o fundo do poço já começou. Isso pode ser visto no gigantismo do orçamento militar norte-americano. China e Rússia também aumentaram seus investimentos nessa área. Abaixo um quadro fornecido pela IA Perplexity:

Tabela resumo das estimativas para 2025 (valores aproximados)

Região Investimento total estimado Detalhes principais
EUA US$ 50-90 bilhões IA militar, drones, data centers, infraestruturas digitais
China US$ 30-70 bilhões Robótica, IA, drones, cloud militar, chips
Rússia US$ 8-15 bilhões IA militar, robôs, sistemas autônomos, exportação
Europa US$ 35-60 bilhões Fundo de €150 bi, IA/drones/startups e infra militar

O Brasil também fará investimentos nessa área, mas os valores gastos (estimados em menos de US$100 milhões em 2025) são mais modestos. Irrelevantes se consideramos os dados acima mencionados.

Armamentos mais sofisticados nunca foram sinônimo de vitórias militares. No auge de seu poder militar, industrial e econômico, os norte-americanos foram derrotados pelos sul vietnamitas na década de 1960. Duas décadas antes, precariamente armados os comunistas chineses haviam derrotado o sofisticado e bem armado Exército Imperial do Japão recorrendo a técnicas de guerrilha. A Rússia sofreu uma derrota terrível no Afeganistão na década de 1980, mas os afegãos receberam milhares de mísseis terra-terra e terra-ar modernos “made in USA” que anularam a supremacia dos helicópteros de ataque e dos tanques russos.

O futuro da guerra é sempre incerto. Mas o futuro das sociedades que embarcam na aventura da digitalização total é previsível. Os novos bárbaros que atacaram o Império não estão fora dele. Eles serão criados pelo desprezo que os políticos norte-americanos e europeus devotam às necessidades básicas de suas populações. A captura do Estado pelos fabricantes de armamentos era um problema. Esse problema se torna maior agora que eles se unem às Big Techs, cujo apetite por financiamento público parece ser insaciável.

Qual é será a resposta dos Estados ocidentais aos conflitos internos gerados pela redução de investimentos em áreas humanitárias essenciais? Mais repressão policial e maior vigilância digital com recursos de IA (isso já está acontecendo nos EUA, na Inglaterra e na Alemanha). Isso não deixa de ser irônico.

Os governantes e a imprensa norte-americana e europeia adoram criticar o modelo chinês (descrito como um exemplo de totalitarismo 2.0 empoderado por IA), mas a verdade é que está ficando cada vez mais difícil ver alguma diferença entre Ocidente e Oriente. A única diferença talvez é que, ao contrário dos seus adversários, a China continua destinando somas consideráveis de dinheiro para saúde, educação, seguro-desemprego, habitação, transporte público, bem-estar social e previdência pública.

Nesse contexto, o desejo de provocar uma “mudança de regime” na China não passa de um sonho infantil. O mais provável é uma “mudança de regime” nos EUA e na Europa, gestada internamente pelas contradições que os próprios líderes ocidentais estão criando deixar de cuidar de parcelas crescentes de suas populações numa época em que predominam desemprego estrutural e trabalho precário mal remunerado. Donald Trump pode até mandar o Exército remover os miseráveis de Washington DC, mas isso certamente não reduzirá a miséria nos EUA.

Entretanto, além dos empregos de merda mal remunerados conhecidos pelos brasileiros, europeus e norte-americanos (motorista de UBER, entregador de aplicativo, manuseador de estoque na Amazon, etc) existem trabalhos eventuais remotos monótonos e pior remunerados. Esses são os empregos dos trabalhadores invisíveis africanos, venezuelanos, etc que realizam microtarefas de identificar corretamente fotos e mercadorias, moderar conteúdos abusivos, grotescos, violentos, etc para treinar IAs ou reforçar o aprendizado de máquina delas. Existe um bom documentário da DW sobre esse assunto.

Esses trabalhadores miseráveis que mal conseguem ganhar alguns dólares por dia para comprar alimentos são a versão moderna dos escravos que trabalhavam nas e sob as Termas romanas. Eles também eram indispensáveis e invisíveis, obrigados a realizar tarefas penosas, opressivas e cansativas sem poder desfrutar os benefícios daqueles que frequentavam diariamente as Termas.

Uma das coisas mais fantásticas sobre a história de Roma é que ela fornece um modelo bem documentado de como um Império foi sendo lentamente corroído pelas contradições internas até se tornar tão fraco que acabou sendo decapitado por hordas de bárbaros. Após Roma ser invadida e saqueada, as províncias não fizeram nada para salvar o Império ou para recuperar o controle e a centralidade administrativa da capital imperial. As províncias do Império Romano do Ocidente, todas elas, simplesmente seguiram de maneira turbulenta seus próprios caminhos.

Novas ondas de bárbaros exploraram as vulnerabilidades das ex-províncias romanas. Os conflitos entre senhores e escravos se multiplicaram e foram explorados pelos invasores. E em algum momento as principais cidades romanas começaram a ficar em ruínas. Muitas delas foram total ou parcialmente abandonadas.

Algo que chama a atenção de qualquer pessoa que observa o legado romano na Europa e mesmo na Itália é a imponência dos aquedutos, templos, pontes, arenas de gladiadores que restaram. Muitas dessas obras ficaram quase intactas. Outras estão em situação lastimável, o que é compreensível. Mas causa espécie o fato de que nenhuma Terma romana tenha sido preservada intacta. Todas elas foram destruídas. E elas eram muitas. Todas as cidades romanas tinham Termas. Nos grandes centros urbanos, existiam duas ou três delas.

As Termas eram o símbolo mais visível da opulência e da opressão romana. Dentro de uma delas, o cidadão romano tinha acesso a vários ambientes distintos (sala de vapor com piso aquecido, piscina com água aquecida num ambiente à temperatura normal, piscina com água fria corrente, sala de ginástica, vestiário, etc). Os escravos que mantinham tudo funcionando, especialmente aqueles que alimentavam o fogo que aqueciam as caldeiras e faziam a manutenção dos sistemas de transmissão de calor subterrâneos viviam num inferno. Mas eles sabiam que acima deles e dentro da Terma predominava um luxo paradisíaco. Podemos supor que esses escravos odiavam intensamente seu local de trabalho e, quando a oportunidade surgiu, eles se esforçaram bastante para destruí-las. Mas isso é apenas uma hipótese plausível.

Outra hipótese que pode acabar se comprovando será a destruição de data centers em caso de guerra civil. As Big Techs já são intensamente odiadas. E elas se tornarão ainda mais odiadas nas próximas décadas. Quando surgir a oportunidade, data centers serão invadidos e depredados pelos bárbaros que o ocidente está criando? A conferir. Uma coisa é certa, eles são o símbolo mais evidente da civilização incivil que está sendo criada pelos barões dos dados e donos de IAs. 

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Last Update: 18/08/2025