Brasil deve se voltar ao Brics e à América Latina e Caribe

Por Beto Almeida, no Monitor Mercantil

Os ataques do presidente dos EUA, Donald Trump, contra o Brasil, suas instituições e sua economia não inovam: apenas confirmam as ameaças feitas por Henry Kissinger, ex-secretário de Estado daquele país, contra a soberania brasileira, ao afirmar, diante de medidas nacionalistas adotadas pelo governo Ernesto Geisel, que “os Estados Unidos não vão permitir o surgimento de um novo Japão abaixo da Linha do Equador!”.

A mensagem era clara. Até 1980, quando economistas mais destacados concordam que termina a Era Vargas, iniciada com a Revolução cívico-militar armada de 1930, o Brasil exibia taxas de crescimento exponenciais, mesmo mantendo um insuportável estoque de desigualdades.

Em 1980, o PIB industrial brasileiro era superior ao PIB industrial da China e dos Tigres Asiáticos somados! Hoje, face à regressão desindustrializante e financista, o Brasil não alcança sequer 30% do PIB industrial da China. De 1930 a 1980, o Brasil destacou-se como uma das economias que mais cresceram no mundo.

O contexto que levou Henry Kissinger a ameaçar o Brasil naquele momento foi um conjunto de decisões adotadas pelo governo Geisel — entre elas, várias medidas de estatização em áreas-chave da economia, como a criação da Braspetro, da BR Distribuidora, da Nuclebrás, da Petrofértil, da Reserva de Mercado da Informática e da estatal Cobra —, bem como a ruptura do Acordo Militar Brasil–EUA e a celebração do Acordo Nuclear Brasil–Alemanha, além de um acentuado terceiro-mundismo na política externa brasileira

Vale lembrar que, em 1977, o Brasil aprovou na ONU uma resolução que considerava o sionismo como regime racista e criminoso, além de ter rompido o primeiro bloqueio que os EUA impuseram contra o Iraque, enviando para a nação árabe a Braspetro. Aliás, foram geólogos brasileiros os responsáveis pela decisiva descoberta do maior campo de petróleo naquela altura: o Campo de Majnoon.

Entre esses geólogos estava Guilherme Estrella, também responsável pela coordenação da equipe que viria a descobrir os reservatórios da camada pré-sal décadas depois. Além de enviar empresas brasileiras de engenharia ao Iraque, responsáveis por grandes obras de infraestrutura por lá, o Brasil expandiu suas relações com o nacionalismo árabe, desenvolvendo vínculos econômicos e políticos na região — o que irritou enormemente a Casa Branca.

Geisel e a política externa terceiro-mundista

Ainda nessa linha, o Brasil subiu o tom terceiro-mundista, apoiando a independência de ex-colônias portuguesas que passaram a ser comandadas por governos de inspiração marxista, como os de Agostinho Neto, em Angola, Samora Machel, em Moçambique, e Amílcar Cabral, na Guiné-Bissau.

O governo Geisel chegou ao ponto de enviar o embaixador Ítalo Zappa em missão secreta para encontrar-se com Samora Machel em um acampamento guerrilheiro da Frelimo, muito antes de o brilhante líder africano chegar ao poder em Maputo, selando a Independência Moçambicana.

Durante o cerco do Exército da África do Sul a Luanda, capital de Angola, o Brasil montou uma operação de envergadura para abastecer o povo angolano de alimentos e medicamentos — operação que, sem dúvida, contribuiu decisivamente para a vitória militar de cubanos e angolanos, selada anos mais tarde na Batalha de Cuito Cuanavale, onde a presença ativa de Cuba foi fundamental para assegurar a Independência Angolana.

Essa postura terceiro-mundista brasileira, somada ao reatamento das relações com a República Popular da China, fez Kissinger desembarcar irado em Brasília e reclamar ao presidente Geisel: “Sr. presidente, o Brasil está fazendo o jogo dos comunistas na África!”. Ao que o brasileiro respondeu, secamente, ao seu estilo, que a política externa brasileira não estava na pauta daquela reunião.

Kissinger não admitia que ninguém lhe respondesse assim. As reações punitivas não tardaram. Uma manipulação casuísta na taxa de juros, induzindo à explosão da dívida externa brasileira, fez parte de um conjunto de medidas para impedir que Geisel fizesse seu sucessor — que provavelmente seguiria a linha do nacionalismo econômico, combinado com a ideia de abertura política gradual.

Os EUA conseguiram uma vitória parcial naquela sucessão, especialmente porque, a partir de João Figueiredo — filho de família acentuadamente anti-Vargas —, o Brasil passou a sofrer decisivo controle de sua economia, por meio do protagonismo da tirania financeira, interrompendo as políticas de estatização e industrialização implementadas por Geisel, um notório tenentista varguista que pegou em armas na Revolução de 1930, em apoio a seu líder Getúlio Vargas, em cujo governo ocupou cargos importantes.

Um programa de independência nacional

Hoje, o Brasil preside o Brics, e a irritação de Trump, exposta claramente em declarações mais ameaçadoras que executivas, por enquanto, nos leva a entender que a relação Brasil–EUA precisa passar por uma forte revisão, avançando na linha das políticas implementadas pelo governo Geisel — com independência e fortalecimento do protagonismo do Estado brasileiro.

A crise desatada pelo presidente estadunidense com suas ameaças abriu uma nova página política entre as forças progressistas brasileiras, até então alienadas do processo de desnacionalização e, consequentemente, desindustrialização. Esses processos não podem ser revertidos sem uma corajosa mudança na política financeira, que constitui, de fato, uma verdadeira tirania financeira: sabotagem prática ao desenvolvimento nacional. Tampouco sem a adoção de medidas que expandam corajosamente o mercado interno brasileiro, de forma a reduzir a dependência do país em relação ao mercado dos EUA — o que deve ser planejado com vigorosa ampliação das relações com os países do Brics e, muito especialmente, com a América Latina e o Caribe, superando de imediato o injustificável distanciamento entre Brasil e Venezuela.

Apenas para dar uma ideia do potencial do mercado interno brasileiro, ainda timidamente explorado: um país de dimensões continentais como o Brasil, com enormes distâncias e mais de 5.800 municípios, possui menos de 100 aeroportos operando. O povo brasileiro está praticamente impedido de usufruir do transporte aéreo — ainda caro e restrito —, sendo obrigado a submeter-se ao perigosíssimo transporte rodoviário, marcado por macabras estatísticas de acidentes.

Ampliar o mercado interno também implica aumento vertiginoso dos salários, já que o salário mínimo brasileiro é um dos mais baixos do mundo e, segundo o Dieese, deveria ser, no mínimo, de R$ 7,5 mil. Os brasileiros ainda consomem timidamente sapatos, mel e carne — produtos exportados para os EUA e que deveriam ser destinados, em grande medida, ao abastecimento interno.

Tiradentes ou Silvério dos Reis

Enquanto essa agenda substancial de debates programáticos se abre, gradualmente, e quando verificamos um ex-presidente defender os ataques de um país imperial à soberania brasileira, surge no cenário político a confirmação da lúcida profecia lançada pelo ex-presidente da Associação Brasileira de Imprensa, o inesquecível jornalista Barbosa Lima Sobrinho: “No Brasil só há dois partidos: o de Silvério dos Reis e o de Tiradentes”, que, como diz o inapagável samba de Mano Décio da Viola, “esse grande herói pra sempre deve ser lembrado!”

O debate se aprofunda, e o nacionalismo revolucionário, democrático e programático deve ganhar as ruas diante da nação ameaçada!

Beto Almeida é jornalista e conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 04/08/2025