Transexualidade, uma urgência médica?
Por Bernardo Ramos*, site do PCB
Dia 16 de abril de 2025. O Conselho Federal de Medicina (CFM) finalmente publicou a nova resolução sobre a prática da hormonioterapia cruzada e uso de bloqueadores hormonais para pessoas transexuais com menos de 18 anos (…).
Trata-se da Resolução CFM n° 2.427/2025, que revogou a Resolução CFM n° 2.265/2019.
De todas as pendências do CFM, legislar sobre a transexualidade era o seu assunto mais urgente!
A princípio, tal decreto parecia arbitrário, juízo que logo se mostrou equivocado. Afirmamos isso, pois no final do documento há uma justificação científica que põe fim a todo alvoroço.
Primeiro, vejamos o texto da resolução 2.427/2025, para depois passarmos ao apêndice explicativo.
O texto se inicia com uma série de normas, dentre elas, artigos, incisos e toda a sorte de termos do dicionário juridiquês.
Atentem aos artigos quinto, sexto e sétimo:
“Art. 5º Fica vedado ao médico prescrever bloqueadores hormonais para tratamento de incongruência de gênero em crianças e adolescentes.
(…)
Art. 6º Sobre a terapia hormonal cruzada: § 2º Esta terapia está vedada antes dos 18 anos de idade.
(…)
Art. 7º No âmbito da atenção médica especializada à pessoa transgênero para cirurgias de redesignação de gênero, fica determinado que:
(…) § 3 Ficam vedados os procedimentos cirúrgicos de afirmação de gênero nas seguintes situações:
(…) II – antes dos 18 anos de idade; III – antes dos 21 anos de idade quando as cirurgias implicarem potencial efeito esterilizador, em conformidade com a Lei no 14.443, de 2 de setembro de 2022”.
Com todas as críticas à resolução 2.265/2019, não podemos ignorar a miséria de sua sucessora, que adiou 2 anos o acesso a procedimentos médicos demandados por pessoas travestis e transgênero.
Se a revolta diante dessa normativa aparece como muita gritaria por quase nada, é por desconhecimento no senso comum dos debates nos quais se destaca a relevância do uso precoce do bloqueio hormonal e da hormonização cruzada, por exemplo.
O retrocesso ainda se faz evidente com o caráter explicitamente burocrático com que se formulou e postulou acerca do conceito Gênero em sua relação com práticas médicas.
No documento em questão, a participação de forças político-sociais de luta, como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), dentre outras entidades, não é mencionada.
O nome da ANTRA não consta na nova resolução, assim como não constava na anterior, indicando que não participaram das discussões de sua elaboração.
O fato a que nos referimos talvez se explique com o brilhantismo dos relatores que executaram, com notável rigor científico, a pesquisa que fundamentou as decisões do CFM.
Há que se destacar a competência das figuras que se incumbiram da edificante missão de redigir um documento de 6 páginas, intitulado “Exposição de Motivos da Resolução”, o qual chamaremos simplesmente de “Justificação”.
Os autores do escrito mencionado, o que nos parece uma correta dedução, consideravam que a média de seus leitores, o público-alvo, não extrapolaria a leitura para além da primeira página.
Afirmamos isso com a hipótese que reconhece, no conteúdo do texto, construído a partir de ensaios clínicos e de interpretações, o potencial de negar a própria conclusão que fundamentou a normativa.
Vamos demonstrar brevemente que, uma vez acesa a faísca, o artigo se autoincinera.
Com isso, deixamos às claras a desonestidade e/ou a incompetência intelectual dos que se contradizem em um bom número de parágrafos para, com a cara lavada, cientes da argumentação contraditória, reafirmarem uma posição regressiva na atualização das normas que vão “disciplinar o cuidado à pessoa transgênero”.
A partir dos estudos que usaram como referência, declaram que:
“O fornecimento de terapia hormonal de afirmação de gênero orientada por médicos demonstrou melhorar a qualidade de vida e reduzir os transtornos citados nessa população. A pessoa transexual, em maiores ou menores proporções, enfrenta algumas possibilidades relacionadas à sua condição que podem causar sofrimento, como ter de lidar com questões do desenvolvimento sexual em um corpo que percebem incongruente com o gênero com o qual se identificam, inclusive em idades bem precoces, quando os recursos emocionais ainda são frágeis’’.
Em seguida, apresentam a ressalva, legítima em certa medida, com relação à qualidade das evidências acerca da chamada transição médica (de gênero).
“A transição de gênero é realizada, em tese, para melhorar o bem-estar de pessoas que sofrem de disforia de gênero. No entanto, alguns têm argumentado que as evidências que apoiam intervenções médicas para transição de gênero (por exemplo, terapias hormonais e cirurgia) são fracas e inconclusivas, e um número crescente de pessoas se apresentou recentemente para compartilhar suas experiências de arrependimento de transição e destransição’’.
Logo no primeiro período, já se identifica a mudança na tonalidade da afirmativa frente ao objeto sob análise.
O uso da expressão ‘’em tese’’, entre vírgulas, sugere uma inverossimilhança da teoria com a prática, um contraste com o parágrafo que destacamos anteriormente, no qual não houve espaço para titubear.
A fragilidade dos resultados acerca de intervenções médicas, que se ressalta na sequência da escrita, repõe-se em diversos outros momentos da formação do saber clínico, sobretudo por se aplicar a expressões singulares do gênero humano, o corpo de indivíduos.
Pretende-se com isso demonstrar que, apesar do relevante papel da ciência na constituição de tal saber, a aplicação de métodos científicos aos moldes do que se faz nos chamados estudos naturais (por exemplo, física) é impossível.
Ainda a esse respeito, podemos pensar em como o manejo de demandas socioculturais (por exemplo, transição de gênero) enquanto questões exclusivamente de saúde, submetidas à racionalidade biomédica, culminam em práticas acríticas e engessadas.
A classificação da transgeneridade no quadro de códigos de doenças exemplifica nosso juízo.
Essa tendência se reforçou com o neopositivismo e seu desdobramento na Medicina Baseada em Evidências, na qual os fatos cientificamente verificados falam por si só, basta identificar a melhor evidência possível e se obtém a verdade.
Podemos rememorar, nesse sentido, o joguete que o CFM fez da ciência durante a pandemia, com acusações de politização do manejo da infecção por SARSCOV-2 para fugir a um explícito posicionamento quanto ao kit-covid, enquanto paralelamente deslegitimava medidas de prevenção.
Posições como essas, nas quais ressoa pragmaticamente uma suposta neutralidade científica, resultaram do alinhamento do Conselho ao bolsonarismo, uma condensação ideológica do pensamento conservador brasileiro.
Por considerar que esse debate ainda se estenderia por longos parágrafos, retomaremos subitamente a proposta inicial ao destacar que métodos científicos são fundamentais para orientar o trabalho em saúde.
Entretanto, também são indispensáveis os acúmulos que derivam de outras esferas da vida social, como o que se constitui historicamente, por exemplo, na prática e na reflexão crítica de entidades nas quais se organizam pessoas transgênero e travestis.
Após a apresentação no artigo do CFM de algumas referências de estudos científicos sobre transição e destransição, alcançou-se um consenso parcial e, para evitar desentendimentos, expuseram-no de forma que se assemelha aos mantras do sânscrito.
Em esquema de repetição, o trecho ao qual nos referimos aparece duplamente, com pontuais alterações terminológicas, somente a quatro parágrafos de distância um do outro.
“Embora dados recentes tenham esclarecido uma gama complexa de experiências que levam as pessoas à destransição, a pesquisa ainda está em sua infância. Pouco se sabe sobre as necessidades médicas e de saúde mental desses pacientes, e atualmente não há orientação sobre as melhores práticas para clínicos envolvidos em seus cuidados”.
(…)
‘’Embora dados recentes tenham esclarecido uma gama complexa de experiências que levam as pessoas à destransição, o conhecimento do tema ainda é incipiente. Pouco se sabe sobre as necessidades médicas e de saúde mental desses pacientes, e atualmente não há orientação sobre as melhores práticas para os médicos envolvidos em seus cuidados’’.
Após essa valiosa lição argumentativa e editorial, podemos tornar ao movimento de autorrefutação do texto quando nos deparamos com uma referência que aparece de modo breve, confuso e descontextualizado, mas que carrega em seu conteúdo, numerosas contribuições.
Trata-se da oitava edição (2022) do “Standards of Care for the Health of Transgender and Gender Diverse People (SOC-8)” [Padrões de Cuidado para a Saúde de Transgênero e Pessoas Gênero Diversas], um extenso trabalho de sistematização de resultados de revisões sistemáticas e de orientações para o cuidado em saúde.
A publicação acima mencionada, que se encontra disponível online, traz indicações para procedimentos da chamada transição médica que diferem completamente do que postula a resolução do CFM e talvez por isso foi citada tão porcamente.
Temos essa como referência que vale a atenção, sobretudo dos capítulos seis e sete, que tratam respectivamente de adolescentes e crianças.
O contato com o SOC-8, no entanto, pode seguir à leitura do próprio artigo que analisamos mais detidamente, a “Justificação”.
Outros tantos fragmentos de nossa fonte primária poderiam ser mobilizados aqui, mas segundo a metáfora que sugerimos anteriormente, nosso escrito é apenas uma faísca.
Durante a leitura individual do artigo, que compõe o quadro de autoincineração, há que se atentar para os trechos confusos, como para as asserções da melhoria da qualidade de vida e da saúde mental de pessoas que acessaram por direito os procedimentos médicos de transição.
Atestem, por fim, o grande feito de nossos gloriosos conselheiros, que agiram com urgência rumo ao retrocesso, não irreversível, mas já em curso, do pensamento dominante na categoria médica brasileira.
*Bernardo Ramos é membro da Fração Nacional de Saúde do PCB