Em março de 2020, o empresário Josival Cavalcanti da Silva, vulgo Pacovan, acompanhado de dois amigos, invadiu com sua caminhonete Hilux a garagem de uma casa em São José de Ribamar, terceira maior cidade do Maranhão, com 240 mil habitantes. Deixou um bilhete com seu nome e seu telefone. Giovani dos Santos Costa, o caseiro, entregou ao patrão, Eudes Sampaio, prefeito do município. “Meu deus, como é que esse cara tá aqui? Na minha casa! Como ele descobriu onde eu moro? Eu vou chamar a polícia”, reagiu Sampaio, conforme relato de uma advogada e de uma funcionária da prefeitura.

A invasão foi uma tentativa de arrancar do prefeito 1,6 milhão de reais. A quantia equivalia a 25% dos 6,6 milhões de reais em emendas parlamentares destinadas a São José de Ribamar, entre dezembro de 20219 e abril de 2020, por três deputados federais do PL: Josimar do Maranhãozinho e Pastor Gil, ambos do estado, e Bosco Costa, de Sergipe. ­Pacovan cobrava a propina em nome do trio. Dois meses antes da invasão da garagem, o empresário tinha estado com Sampaio na prefeitura, acompanhado de outro político, Antonio José Rocha Silva, que depois confirmaria à Polícia Federal a reunião. Pacovan achava que o prefeito não queria pagar a propina, pois outro grupo político, que não aquele de Josimar e associados, teria tentado convencer Sampaio de que era o verdadeiro padrinho das emendas. “Quero desmascarar esse cara que tá dizendo que é dele (a verba das emendas). Ele vai pegar uma bala na cara. Esse vagabundo. Eu fiquei ontem até meia-noite lá com o prefeito. Lá no Ribamar. Entendeu?”, disse Pacovan a Josimar via celular em 30 de janeiro de 2020. “Não posso ir na casa dele (Sampaio). É perigoso, pois pode ter câmeras para nos filmar… Não podemos ir em escritório dele”, respondeu o deputado.

Desvendar o esquema e chegar aos mentores é prioridade na Polícia Federal, com respaldo do STF

Sampaio denunciou a extorsão à PF naquele ano. Agora, os três parlamentares estão prestes a se tornar réus por corrupção passiva e organização criminosa. No julgamento iniciado em 28 de fevereiro e previsto para terminar na próxima terça-feira 11, dois dos cinco juízes da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal votaram para acatar a denúncia da Procuradoria-Geral da República. Pacovan escapou por estar no cemitério. Foi assassinado à bala em junho de 2024, e a suspeita é que tenha sido justamente por dívida não paga. Josimar, Gil e Costa serão os primeiros réus no que tem sido classificado como o maior caso de corrupção da história do País.

Assim gente graúda em Brasília vê o esquema das emendas parlamentares, em especial no formato “orçamento secreto”. O magistrado Flávio Dino, do Supremo, usa palavras superlativas em decisões contrárias à farra das emendas. “É de clareza solar que jamais houve tamanho desarranjo institucional com tanto dinheiro público em tão poucos anos. Com efeito, somadas as emendas parlamentares entre 2019 e 2024, chegamos ao montante pago de R$ 186,3 bilhões de reais”, escreveu em 2 de dezembro do ano passado, ao impor restrições à liberação dos recursos.

No período citado por Dino havia 190 bilhões de reais previstos em lei para emendas. Do total, 186 bilhões foram empenhados, primeira etapa de um gasto público, e 158 bilhões, efetivamente pagos, conforme um site do Senado, o Siga. Um terço dos valores correspondeu a emendas RP 9, o orçamento secreto puro-sangue, e RP 8, utilizadas para driblar o fim do segredo decretado pelo STF em 2022. “Temos a gravíssima situação em que bilhões de reais do orçamento da Nação tiveram origem e destino incertos e não sabidos, na medida em que tais informações, até o momento, estão indisponíveis no Portal da Transparência ou instrumentos equivalentes”, anotou Dino em 2 de dezembro.

Dino acertou os termos futuros, mas vai desencavar os esqueletos do passado – Imagem: Nelson Jr./STF

Naquela decisão, o juiz destacou haver “malas de dinheiro sendo apreendidas em aviões, cofres, armários ou jogadas por janelas, em face de seguidas operações policiais e do Ministério Público”. São esquemas que não envolvem apenas congressistas. Uma rede de lobistas, empresários e servidores públicos chafurda na lama.

Investigar os malfeitos com verbas de emendas é “prioridade” da PF e há uma “equipe forte” para o caso, relata um delegado, que acrescenta: haverá muitas operações de rua nos próximos meses. Ele estima haver entre 15 e 20 investigações em curso – cada uma pode ter mais de um congressista envolvido – e fareja um escândalo de proporções inéditas no País, embora a mídia ainda não tenha enxergado o tamanho da encrenca. Segundo esse policial, a PF quer descobrir como foi montado o esqueleto das emendas e do orçamento secreto e quem são os personagens políticos principais da tramoia, ou seja, os cabeças. Quer dizer, aquele acordo entre governo e Congresso, validado por Dino em 26 de fevereiro, para o retorno das liberações de recursos pode até ter deixado muita gente aliviada, mas por pura precipitação ou autoengano.

Um inquérito policial aberto em dezembro desnuda o interesse da PF em chegar às vísceras do esquema. É a impressão do deputado Glauber Braga, do PSOL do Rio de Janeiro, ouvido na investigação em fevereiro pelo delegado Marco Bontempo. A apuração começou por ordem de Dino, diante de fatos levados ao conhecimento do Supremo pelo PSOL e Novo. Em 12 de dezembro de 2024, Arthur Lira, então presidente da Câmara, fechou todas as comissões temáticas sob o argumento de que os deputados tinham de se dedicar ao pacote governista de controle de gastos. No mesmo dia, 17 líderes partidários enviaram ao Palácio do Planalto, por obra de Lira, um ofício sigiloso. Diziam ratificar que as comissões temáticas tinham aprovado 4,2 bilhões de reais para 5.449 emendas e tomado a decisão com base em critérios estabelecidos pelo Supremo. O PSOL e o Novo alegam que o ofício foi uma farsa inventada para materializar a vontade e o poder de Lira e levaram o caso ao STF.

“Jamais houve tamanho desarranjo institucional com tanto dinheiro público em tão poucos anos”, escreveu Dino em um despacho

A desconfiança é reforçada por uma denúncia feita em novembro pelo veterano deputado Zé Rocha, do União Brasil da Bahia. Rocha, com mandato desde 1995, era presidente da Comissão de Desenvolvimento Regional. Declarou à revista Piauí que Lira mandava a lista de emendas que a comissão deveria aprovar e que quem não a aceitasse seria destituído do cargo. O parlamentar prestou depoimento à PF em fevereiro e confirmou o que havia dito. Braga depôs também por duas vezes. Na segunda, para reafirmar o relato da primeira sobre uma cidade na terra de Lira, Rio Largo. Nessas ocasiões, o psolista ficou com a impressão de que a PF quer fazer a autópsia do esquema.

Rio Largo é a terceira maior cidade de Alagoas, com 93 mil habitantes, daí sua importância política. De 2019 a 2022, tempos de Jair Bolsonaro, recebeu 90 milhões de reais em emendas, dos quais 19 milhões carimbados com o nome de Lira. O resto, 70 milhões, não tem digitais, segundo Braga, por causa do orçamento secreto então vigente. O psolista contou à PF ter descoberto que a cidade foi a mais agraciada com o dinheiro daquele pacote de 4,2 bilhões de reais. A quantia, segundo ele, foi direcionada pela Comissão de Turismo da Câmara. Em 2024, não havia nenhum alagoano na comissão. Conclusão: o envio dos 19 milhões tinha sido uma ordem de Lira.

As operações da PF foram retomadas em janeiro – Imagem: Polícia Federal

Para Braga, Rio Largo não tem importância apenas política para Lira. Teria financeira também. O prefeito entre 2017 e 2024 era Gilberto Gonçalves, aliado e correligionário de Lira no PP. Seu sucessor também é pepista. Na véspera de Lira deixar o comando da Câmara, em 31 de janeiro passado, Gonçalves publicou nas redes sociais uma foto de ambos abraçados. Faz sentido. Seu prontuário criminal é recheado, e Lira estrela uma das histórias. Na primeira vez que foi em cana, o deputado foi junto. Era 2007, período de uma investigação da PF sobre desvio de verba da Assembleia Legislativa alagoana. Os dois tinham sido parlamentares estaduais pelo PMN entre 2003 e 2006, período investigado pela Operação Taturana. Durante as apurações, a polícia gravara um telefonema de Gonçalves para um funcionário da área de recursos humanos da Assembleia: “Quero meu dinheiro. E não venha com desconto de INSS, não, porque isso é dinheiro roubado”. Lira foi condenado em duas instâncias e só não se tornou ficha-suja graças a uma liminar de 2018 do Superior Tribunal de Justiça. Gonçalves foi preso mais três vezes. Em 2010, por ameaçar de morte um funcionário que o havia denunciado à Justiça trabalhista. Em 2014, por facilitar a fuga de um motorista acusado de crime eleitoral. E em 2022, em uma investigação da PF sobre dinheiro recolhido em um beco na cidade de Rio Largo e levado à prefeitura. Nome da operação: “Beco da Pecúnia”.

Lira tirou proveito político das emendas em geral e do orçamento secreto em particular ao se tornar presidente da Câmara em 2021, mas não participou da arquitetura legal que fez explodir a verba para dotações parlamentares de 9 bilhões de reais em 2015 para 47 bilhões em 2024. O desenho foi levado adiante entre 2015 e 2019. Primeiro por Eduardo Cunha, presidente da Câmara de 2015 a 2016. Depois, por Davi Alcolumbre, comandante do Senado em 2019 e 2020 e de volta ao posto por mais dois anos.

Há pistas de que o governo Bolsonaro se valeu dessa arquitetura para angariar apoio no Congresso. E o motivo chama-se Eduardo Gomes, atual vice-presidente do Senado. Gomes é do PL de Tocantins. A PF esbarrou no nome dele ao investigar Josimar Maranhãozinho. Numa operação batizada de “emendário”, apreendeu o celular de um assessor de Maranhãozinho na Câmara, Carlos Roberto Lopes. No aparelho havia conversas de Lopes, em 2022, com um contato identificado como “Lizoel assessor”. Lizoel Bezerra foi motorista na campanha de Gomes ao Senado. Ele mandou a Lopes mensagens a cobrar 1,3 milhão de reais. Numa delas, encaminhou a foto de uma conversa escrita com o senador. “O cara mandou?”, perguntava Gomes a Lizoel. Para a PF, “mandou” refere-se a dinheiro. O encontro fortuito de pistas levou o delegado Roberto Santos Costa a informar à ­Procuradoria-Geral. Não se sabe se o órgão tomou providências em relação ao senador.

Maranhãozinho, Bosco Costa, Nascimento, Mano e Motta: parlamentares de partidos diferentes, mas com a mesma gula – Imagem: Arquivo Agência Câmara, Redes Sociais e Redes Sociais/PDT

Gomes foi líder do governo Bolsonaro no Congresso de outubro de 2019 a dezembro de 2022. É uma função na qual há muita negociação baseada em dinheiro do orçamento. Seis dias depois de o senador assumir a liderança, a área do Palácio do Planalto responsável à época por lidar com o Congresso, a Secretaria de Governo, contratou uma funcionária chamada Cristiane Leal Sampaio. Em junho de 2020, Cristiane foi trabalhar com Gomes na liderança. Nas investigações sobre o deputado Maranhãozinho, a PF descobriu um depósito de 5 mil ­reais na conta da funcionária, realizado em março de 2022 por um empreiteiro maranhense, Eduardo José Barros Costa, o Eduardo DP, sócio oculto de uma empresa, a Construservice, metida em estripulias com dinheiro de emendas na estatal Codevasf. Cristiane trabalha desde agosto de 2023 no Ministério do Turismo.

O ministro das Comuni­cações, Juscelino Filho, também é candidato a virar réu no Supremo por suspeita de aprontar com emendas no governo Bolsonaro. Ele é deputado pelo Maranhão desde 2015. Pertence ao União Brasil. Em junho do ano passado, a PF concluiu uma investigação sobre verbas enviadas ao município de Vitorino Freire. Na condição de deputado, Juscelino Filho separou recursos para a estatal Codevasf financiar a obra. A prefeita da cidade era sua irmã, Luanna Rezende. A empreiteira da obra foi a Construservice. O montante teria saído de Brasília via Codevasf, chegado a Vitorino Freire e uma parte ido parar no bolso da família do atual ministro, conforme a PF. Em setembro de 2023, ele foi alvo de uma operação, a Benesse, que provocou o afastamento temporário de sua irmã da prefeitura e o bloqueio de 835 mil reais da família. Os investigadores apontam crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Só a Procuradoria tem, no entanto, licença para acusar Juscelino Filho ao Supremo. Até agora, não se sabe a posição de Paulo Gonet.

O senador Eduardo Gomes tem explicações a dar, assim como o ministro Juscelino Filho. Ambos foram generosos na distribuição de emendas durante o descontrole nos idos do governo Bolsonaro – Imagem: Shizuo Alves/MCom e Edilson Rodrigues/Agência Senado

O partido do ministro é protagonista de um dos mais vistosos casos de corrupção com emendas na mira da PF. Em dezembro, a polícia realizou a Operação ­Overclean, que apura fraudes no Departamento Nacional de Obras Contra a ­Seca, o Dnocs, na Bahia. Na semana anterior à batida, os federais haviam monitorado um voo de Salvador a Brasília com o empresário Alex ­Parente, o ex-chefe do departamento no estado Lucas Lobão, e 1,5 milhão de reais. Os dois deram versões conflitantes para a bolada. Parente alegou que ela provinha de vendas de equipamentos, enquanto Lobão afirmou desconhecer a existência da grana. A operação atingiu por tabela o atual segundo-vice-presidente da Câmara, Elmar Nascimento, do União Brasil da Bahia. Os agentes encontraram no cofre de outro investigado, o empresário Marcos Moura, conhecido como o Rei do Lixo, um contrato de venda de imóvel a Nascimento. Por isso, o caso acabou remetido ao Supremo. Está aos cuidados do juiz Kassio ­Nunes Marques, indicado por Bolsonaro.

A Overclean foi a última operação da PF a vasculhar o tema em 2024. A primeira de 2025 chamou-se “Emenda Fast” e atingiu o gabinete do deputado gaúcho Afonso Motta, do PDT. Em 13 de fevereiro, o chefe de gabinete de Motta, Lino Rogério da Silva Furtado, foi afastado do cargo e alvo de buscas, com autorização de Dino. O congressista demitiu-o dias depois. A polícia chegou a Furtado ao botar lupa em um lobista, Cliver André Fiegenbaum.

As operações da PF retomadas em janeiro ampliaram o escopo da apuração

A maior parte da papelada do caso está sob sigilo, por isso não se sabe o motivo de a PF estar no encalço de Fiegenbaum. O fato é que foi encontrada no celular do lobista uma espécie de planilha com três notas fiscais de pagamentos recebidos de um hospital no Rio Grande do Sul, o Ana Nery, “referente a captação de recursos através de indicações de emendas”. As notas, que vão de julho de 2023 a fevereiro de 2024, somam 509 mil ­reais. A PF achou ainda conversas de Fiegenbaum com Furtado sobre o pagamento do primeiro ao segundo. A suspeita é de que Fiegenbaum conseguiu de ­Furtado a liberação de emenda para o hospital. A PF identificou 1,07 milhão de ­reais de dotações de Motta para o hospital entre novembro de 2023 e janeiro de 2024. Falta saber se o deputado estava a par da negociação de seu assessor e se embolsou grana também, algo a ser respondido com o aprofundamento da investigação policial.

O caso que resvala em Motta é curioso. Há uma espécie de “contrato de propina” entre o lobista Fiegenbaum e o hospital. Pelo acordo, Fiegenbaum embolsaria 6% do valor total de emendas obtidas para o Ana Nery. No Ceará, também aparece um porcentual: 15%. O responsável pela liberação é o deputado Júnior Mano, eleito em 2022 pelo PL e desde 2024 filiado ao PSB. Emendas providenciadas por Mano teriam virado caixa 2 e compra de votos na eleição municipal do ano passado. Foi o que denunciou, em setembro, ao Ministério Público, a então prefeita de Canindé, Rozário Ximenes. Segundo o depoimento, recursos de emendas do deputado direcionadas a algumas cidades teriam sido desviados via licitações fraudulentas, em um porcentual de 15%. O dinheiro surrupiado teria financiado campanhas de prefeitos, como a do candidato da oposição ao grupo de Rozário em Canindé. O operador do esquema seria Bebeto Queiroz, eleito em Choró, filiado ao PSB e aliado de Mano. E teria, conforme a prefeita, 58 milhões para financiar “colaboradores” em 51 das 158 cidades no estado.

Moura, o Rei do Lixo, e Eduardo DP: personagens apropriados para o filme de terror que se avizinha – Imagem: Redes Sociais

A PF fez duas batidas para apurar a denúncia de Rozário, uma em outubro, a Mercado Clauso, outra em dezembro, a Vis Oculta. Entre uma e outra, Queiroz foi preso em caráter temporário. Depois de solto, teve a prisão preventiva decretada pela Justiça, mas fugiu. Nem ele nem seu vice, Bruno Jucá Bandeira, tomaram posse em Choró em 1º de janeiro. A cidade tem sido governada pelo presidente da Câmara de Vereadores. Em 14 de fevereiro, o caso virou assunto do Supremo, por decisão do juiz Gilmar Mendes. Motivo: a participação do deputado Mano.

O esquema das emendas promete, de fato, muitas emoções em 2025. E guarde um nome, leitor: João Batista Magalhães. É lobista e trabalhou com Gomes na liderança do governo Bolsonaro no Congresso. •

Publicado na edição n° 1352 de CartaCapital, em 12 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Barril de pólvora’

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Last Update: 06/03/2025