VLT de Salvador é uma das maiores obras de mobilidade urbana da América Latina.

Por Miguel do Rosário, direto de Salvador, Bahia

“A mobilidade urbana é um direito fundamental do cidadão, tão importante quanto saúde e educação”, afirma Afonso Florence, Secretário da Casa Civil da Bahia, em entrevista exclusiva ao Cafezinho.

A frase de Florence corrobora a minha percepção de que construir o VLT de Salvador é um ato de bravura.

Em meio à estagnação generalizada no país, raros prefeitos ou governadores ousam levar adiante obras de infraestrutura ambiciosas, por medo das estruturas burocráticas que, pós-Lava Jato, passaram a criminalizar qualquer iniciativa mais audaciosa. A decisão do governador Jerônimo Rodrigues de fazer a maior obra de mobilidade urbana do Brasil e talvez da América Latina representa, portanto, uma corajosa ruptura com a apatia nacional.

É sobretudo uma iniciativa necessária, porque a mobilidade urbana é um dos problemas mais urgentes quando se pensa em qualidade de vida, segurança pública e organização da economia nas grandes cidades brasileiras. O projeto promete produzir uma verdadeira revolução em Salvador e, oxalá, despertar uma febre ferroviária em todo pais.

Com três linhas conectando as principais periferias ao restante da cidade, o VLT de Salvador terá 36,4 quilômetros de extensão e 34 paradas. O sistema será plenamente integrado ao metrô e aos principais terminais de ônibus da cidade, com expectativa de transportar cerca de 150 mil passageiros por dia, o que promete ser uma revolução na mobilidade urbana de uma das principais cidades do país.

Para dimensionar a importância dessa obra para Salvador, vale fazer a comparação com Paris. A capital francesa tem 2,2 milhões de habitantes e possui cerca de 220 quilômetros de linhas de metrô, mais 100 quilômetros de VLT, totalizando 320 quilômetros de trilhos. Isso representa aproximadamente 145 quilômetros de trilhos por milhão de habitantes. Salvador, com quase 3 milhões de habitantes (30% mais populosa que Paris), conta atualmente com apenas 33 quilômetros de metrô e nenhum VLT em operação, resultando em menos de 12 quilômetros de trilhos por milhão de habitantes.

Viabilizar projetos dessa envergadura no Brasil, no entanto, tornou-se um desafio ainda maior após o envenenamento da opinião pública promovido pela grande mídia durante a Lava Jato. Uma das heranças mais amargas dessa operação foi uma enorme, paralisante desconfiança em relação ao investimento público. O governante que queira levar adiante obras de infraestrutura precisa enfrentar o lava-jatismo da mídia, a hostilidade das estruturas burocráticas e a animosidade neoliberal das elites financeiras.

Mapa com os 3 traçados do VLT de Salvador, e a integração com o metrô. Crédito: CTB.

Outrora detentora de uma malha ferroviária relevante, a Bahia testemunhou nas últimas décadas, assim como aconteceu em todo país, a deterioração gradual de seus trens. Em Salvador, o famoso trem do subúrbio, que durante gerações serviu como artéria vital de transporte para a população mais vulnerável, converteu-se em serviço precário e imprevisível

Em abril de 2013, o sistema ferroviário de Salvador, incluindo o metrô, foi transferido da prefeitura para o governo do Estado, sob gestão da Companhia de Transporte do Estado da Bahia (CTB), fundada exatamente com esse objetivo.

O metrô recebeu, desde então, investimentos da ordem de R$ 5,8 bilhões e hoje conta com 38 km de extensão, 22 estações e transporta cerca de 400 mil passageiros por dia. Ele continua em expansão.

A modernização do trem do subúrbio, por sua vez, enfrentou alguns percalços. O projeto inicial do VLT, firmado em 2019 com a empresa chinesa BYD, contemplava um monotrilho suspenso com 36 km de extensão. As obras iniciaram em fevereiro de 2021, porém a solução aérea mostrou-se incompatível com a geografia acidentada da cidade. Em agosto de 2023, o governador Jerônimo Rodrigues rescindiu o contrato.

Mas Jerônimo não desistiu da ideia. Em junho de 2024, o governador assinou a ordem de serviço para retomar a construção do VLT, agora com novos consórcios de empresas responsáveis pelos três trechos do projeto.

“O governo está promovendo uma transformação estrutural na mobilidade da região metropolitana da capital, com investimentos significativos no VLT, metrô e outros modais. Este projeto integra nossa visão de desenvolvimento para 2030 e 2050, coordenada pela SEPLAN (Secretaria do Planejamento), que estabelece diretrizes estratégicas para o futuro do estado”, afirmou Afonso Florence, secretário da Casa Civil da Bahia.

O projeto enfrentou oposição de alguns setores políticos da Bahia. O ex-prefeito de Salvador e atual vice-presidente do União Brasil, Antônio Carlos Magalhães Neto, foi um dos mais críticos. Uma de suas tiradas que até hoje são repetidas na mídia baiana é a de que o VLT era um sonho impossível que jamais se tornaria realidade.

“Esse assunto [o VLT de Salvador] já virou um mito aqui na Bahia. O governador devia tratar o assunto com seriedade, respeitar o cidadão baiano que acreditou cinco vezes no PT, elegendo cinco vezes consecutivamente governadores do PT”, disse ACM Neto em julho de 2024, pouco antes das obras terem início.

Segundo Florence, porém, a base parlamentar na Assembleia do Estado está alinhada aos objetivos estratégicos do governo. “Temos maioria e temos aprovado os projetos necessários para avançar com as obras de infraestrutura”, afirma, destacando que mesmo partidos que haviam rompido com o governo nas últimas eleições, como o PDT, agora votam com a base governista.

Florence menciona outros projetos estruturantes em andamento: “Além do VLT e do metrô, estamos captando recursos para a ponte Salvador-Itaparica, um projeto de R$ 10 bilhões que será fundamental para a integração metropolitana. Tudo isso faz parte do Plano de Desenvolvimento Integrado (PDI Bahia 2050), que projeta o estado para as próximas décadas, considerando infraestrutura, segurança, saúde, educação e sustentabilidade”.

Afonso Florence, secretário da Casa Civil no governo da Bahia. Crédito: Flickr de Afonso Florence.

Em vídeo gravado recentemente em seu canal do Youtube, o governador Jerônimo Rodrigues observa que o investimento total no VLT de Salvador é de R$ 5 bilhões, sendo a maior parte recursos do próprio estado, mas também com financiamentos de bancos federais, como BNDES e Caixa.

Jerônimo explicou que, para superar a demora na fabricação de novos trens, que dependia de peças internacionais, o governo decidiu comprar composições já prontas, armazenadas no Mato Grosso. A aquisição dos quarenta trens, trilhos e equipamentos elétricos foi oficializada em julho de 2024, numa parceria com o Governo do Mato Grosso.

“O que parecia difícil e impossível já é realidade diante dos nossos olhos”, afirmou. Ele acrescentou que a manutenção e modernização desses trens está sendo feita pela CAF, e que, a partir de dezembro deste ano ou janeiro de 2026, os primeiros testes práticos devem começar.

Jerônimo ressaltou que as composições chegarão adaptadas para atender às necessidades específicas de banhistas, pescadores e marisqueiras da região. “Os trens já virão com essas adaptações para podermos carregar pessoas com as mais diversas características”, completou.

O governador destacou ainda a importância do projeto para a revitalização econômica da periferia de Salvador. “Eu já quero ver os números e os indicadores da economia do subúrbio fortalecida com geração de emprego e renda. Uma região tão bonita que estava morrendo de saudade de ver os trens passarem pelas suas portas”, comentou Jerônimo.

“É um trem totalmente sustentável, com transição energética garantida. Além do conforto e acessibilidade, o VLT trará mais beleza à região”, acrescentou.

Jerônimo também ressaltou que o projeto inclui melhorias complementares: “Estamos fazendo drenagens para que essa região inteira, do subúrbio, Paripe, Calçada, possa ter outras obras executadas para melhorar as condições de vida e a beleza dessa região”.

Eracy Lafuente Pereira Maciel, diretor de obras da CTB, a liderança mais diretamente envolvida no dia a dia da obra, é também um dos mais entusiasmados com o seu potencial de transformação social.

Governador Jerônimo Rodrigues inspeciona uns dos trens adquiridos no Mato Grosso. Crédito: Thuane Maria.

“Estamos integrando uma região com muitas necessidades, e essas pessoas irão poder se deslocar num tempo mais curto e num conforto extraordinário”, declara Eracy, em entrevista ao Cafezinho.

O VLT de Salvador, como explica Eracy, funcionará com um sistema elétrico equipado com sistemas de segurança extras. Estes dispositivos entram em ação automaticamente quando necessário. Assim, mesmo se alguma parte falhar, o trem continuará funcionando normalmente. Os passageiros não perceberão interrupções no serviço.

“O empreendimento, inicialmente estimado em R$ 5,3 bilhões, teve uma economia de R$ 800 milhões após a licitação e aquisição do material rodante, reduzindo o custo para cerca de R$ 4,6 bilhões. Com um nível de execução física financeira de 18%, já foram investidos aproximadamente R$ 400 milhões em obras civis e elétricas, além do desembolso inicial de R$ 280 milhões para material rodante. No total, o Estado já investiu entre R$ 600 e 700 milhões de reais no VLT, um esforço significativo que reflete o interesse do governo em criar empregos e promover o desenvolvimento social para a população”, esclarece Eracy.

Outro aspecto tecnológico importante, continua Eracy durante nossa visita ao canteiro de obras, é a instalação de uma rede de fibra ótica, que será enterrada sob a via e acompanhará todo o trajeto do VLT. Ela será voltada exclusivamente para atender equipamentos públicos de Salvador. A infraestrutura levará internet de alta velocidade a escolas, hospitais, delegacias de polícia e postos de saúde. O projeto também prevê um sistema completo de câmeras de vigilância. Elas estarão instaladas em todas as 34 paradas e ao longo das linhas. Este sistema contribuirá significativamente para a segurança dos passageiros e da cidade como um todo.

Eracy Lafuente Pereira Maciel, diretor de obras da CTB, a liderança mais diretamente envolvida no dia a dia da obra.

Durante minha visita às obras próximas à Estação da Calçada, conheci Maria Cristina Passo de Jesus, a Tina, de 48 anos, moradora de Santa Luzia do Alto do Cabrito. Da janela de sua casa, ela observa de perto a instalação dos trilhos — um cenário que, segundo ela, muitos duvidavam que um dia se tornaria realidade. “O pessoal dizia que a obra nunca ia passar aqui. Mas agora a gente tá vendo ela acontecer”, conta Tina.

Maria Cristina Passo de Jesus, a Tina, moradora de Santa Luzia do Alto do Cabrito:”O pessoal dizia que a obra nunca ia passar aqui. Mas agora a gente tá vendo ela acontecer”.

Alguns benefícios prometidos à comunidade já se materializaram. A construção do VLT foi aproveitada, por exemplo, para realizar obras de macrodrenagem na região. Durante a reportagem, houve dias de chuva intensa, o que nos permitiu ver, com nossos próprios olhos, os novos canais escoando eficientemente um volume de água que, em outros tempos, teria alagado todo o bairro.

Jusmari Oliveira, Secretária Estadual de Desenvolvimento Urbano (SEDUR), ressalta o caráter social do projeto: “Esta obra vai muito além da mobilidade: é um instrumento de justiça social. Comunidades historicamente excluídas do direito à cidade terão agora acesso a um transporte digno e confortável. É uma revolução na vida dessas pessoas.”

Ela faz questão de ressaltar o cuidado com as desapropriações: “Nós temos uma equipe que vai aos bairros e comunidades para ouvir as famílias, entender suas necessidades e dar a elas o poder de decisão: se querem receber o valor da indenização ou permanecer, integrando um projeto de melhoria. Não medimos esforços para garantir que ninguém seja prejudicado, que todos se sintam respeitados e acolhidos nesse processo.” Segundo Jusmari, um amplo programa habitacional na região metropolitana está sendo desenvolvido, oferecendo alternativas de moradia digna e estruturada para quem optar por essa possibilidade.

Outro aspecto inovador do projeto, segundo a secretária, é a política de preços e o acesso ao VLT: “Estamos implementando um sistema sem catracas, que vai facilitar o embarque e desembarque, tornando a experiência mais fluida e humana para os passageiros. Além disso, estamos estruturando um benefício social específico, um cartão que permitirá que quem mais precisa tenha acesso à tarifa social, garantindo que ninguém fique excluído por razões econômicas”, explica Jusmari Oliveira. Ela enfatiza que o estudo de viabilidade técnica e econômica inclui esse compromisso: “Quem pode pagar, vai pagar a tarifa normal. Mas quem não pode, será atendido e cuidado pelo nosso programa social. Transporte público deve ser visto como um direito, não como uma mercadoria.”

Jusmari Oliveira, Secretária Estadual de Desenvolvimento Urbano (SEDUR), ressalta o caráter social do projeto. Crédito: Jefferson Silva.

Ana Claudia Nascimento e Sousa, presidente da CTB (Companhia de Transportes do Estado da Bahia), destaca o impacto direto na qualidade de vida: “Para você ter uma ideia, foi feita uma pesquisa em que um passageiro que se locomove de Mussurunga até Lapa todos os dias de metrô, ao invés de usar o transporte sobre pneus, ganha em tempos o equivalente a 18 dias no ano. Gente, 18 dias no ano são quase umas férias!”

Para ela, a introdução de mais transporte sobre trilhos nas cidades representa um avanço tecnológico enorme: “São diversas vantagens frente aos sistemas tradicionais sobre pneus: matriz energética limpa, previsibilidade, redução de acidentes. O trilho é um transporte estruturante, o que se vê de mais avançado no mundo, e a Bahia não podia ficar de fora.”

A eficiência do VLT será potencializada por sua integração estratégica com outros modais de transporte, explica ela. O sistema será conectado fisicamente ao metrô de Salvador em pontos cruciais. Essa integração permitirá que os usuários façam conexões rápidas e eficientes entre diferentes sistemas de transporte, reduzindo significativamente o tempo total de deslocamento.

Ana Claudia Nascimento e Sousa, presidente da CTB, explica a importância do VLT para a economia de tempo em transporte para os moradores de Salvador. Crédito: Jefferson Silva.

O projeto do VLT vai além da mobilidade e catalisa outras transformações sociais importantes. Um exemplo disso pode ser visto no Porto das Sardinhas, uma comunidade tradicional de pescadores que será beneficiada tanto pelo transporte quanto por projetos complementares.

Geisa Britto Santiago, 39 anos, nascida e criada no bairro do São João do Cabrito, onde fica o porto das Sardinhas, é uma das lideranças do grupo de mais de 300 trabalhadores que pescam ou tratam sardinhas e mariscos da Baía de Todos os Santos.

“Sou nascida e criada aqui no porto das Sardinhas. Meu pai e minha mãe também sempre foram pescadores. As dificuldades que temos aqui são falta de estrutura adequada para poder conduzir nosso material. A gente não tem banheiro aqui, não tem água canalizada, não temos saneamento básico. Esse centro de tratamento de pescado, eu acho que vai trazer muito emprego pra comunidade. E o que a gente precisa é realmente geração de renda, porque a comunidade toda aqui vive da pescaria, do peixe e do marisco. E [o governador] diz que vai ter sardinha tratada pra merenda escolar, sardinha, polpa de sardinha… As vísceras da sardinha vão poder fazer ração de peixe, ração pra porco, ração pra animal. Isso tudo vai gerar renda.”

“Sou nascida e criada aqui no porto das Sardinhas. Meu pai e minha mãe também sempre foram pescadores”, diz Geisa Britto Santiago. Crédito: Jefferson Silva.

“Essa é uma obra histórica aqui para o Porto das Sardinhas, um local que há gerações produz muitas sardinhas, sustenta muitas famílias, mas em condições bem precárias. E agora com essa obra a gente vai ter condições de mudar isso”, afirma José Carlos Bezerra, engenheiro de pesca do Instituto Ori, que está dando apoio às comunidades marisqueiras e aos pescadores dos bairros cortados pelo VLT. Ele acrescenta que “essa unidade de beneficiamento vai fazer com que a gente consiga ter um produto de qualidade certificado sanitariamente para ser inserido no mercado, tanto no mercado formal como no mercado institucional, como a merenda escolar.”

Além da unidade de beneficiamento, o projeto do VLT inclui a construção do Mercado de São Braz, inspirado no famoso Mercado de San Miguel, de Madrid, considerado um dos mais belos e funcionais mercados públicos do mundo. O espaço será destinado à comercialização direta dos produtos locais, eliminando intermediários e ampliando a renda de pescadores e marisqueiras da região. Com uma arquitetura moderna, mas respeitosa das tradições locais, o Mercado de São Braz promete se tornar também um ponto turístico, atraindo visitantes interessados na gastronomia e cultura baianas.

Joana Xavier de Souza, 61 anos, trabalhadora com pescados há quase 40 anos, comenta sobre as expectativas da comunidade vizinha ao porto das Sardinhas: “Segundo o projeto, ainda vai ter vagão próprio pro pessoal que trabalha com peixe. Então, é sinal que vai melhorar”.

Joana Xavier de Souza, 61 anos. Crédito: Jefferson Silva.

Essa matéria faz parte de uma série de reportagens sobre o VLT de Salvador. Confira os links abaixo:
Bahia lidera revolução ferroviária no Brasil
Os trens do Mato Grosso e o TCU
O VLT de Salvador e o mundo dos trilhos
O retorno das grandes construtoras

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Last Update: 25/05/2025