As controversas conexões entre dirigentes da União do Vegetal (UDV), um dos principais grupos ayahuasqueiros do Brasil, e a extrema-direita bolsonarista voltaram à tona com a Operação Contragolpe da Polícia Federal. Paralelamente aos desdobramentos da investigação, documentos que apontam a participação ativa de líderes da instituição na movimentação golpista começaram a circular nas redes sociais. O envolvimento da alta cúpula sugere que o uso ritual da ayahuasca, praticado pela organização religiosa, foi desvirtuado com fins de doutrinação política.
Uma importante liderança do grupo, Raimundo Monteiro de Souza, deixou suas digitais e seu CPF registrados em um documento no qual incitava as Forças Armadas brasileiras a derrubar violentamente o Estado Democrático de Direito. Conforme noticiado com exclusividade pelo blog Psicodelicamente, hospedado no site de CartaCapital, o dirigente da instituição apelou aos comandantes militares para que impedissem o avanço do “comunismo” no País.
A carta-manifesto de Monteiro dirigida aos “senhores comandantes militares” propõe uma intervenção para salvar o Brasil da ameaça vermelha. No texto, ele adverte: “Se esse clamor não for ouvido, o conceito construído ao longo de tantas décadas por essa instituição admirável estará sujeito a uma rápida decomposição”. Apesar de circular pelo submundo da internet desde 2022, o apelo golpista voltou a repercutir e reabriu fissuras internas na UDV após a recente operação da PF, que revelou a existência de um plano de militares para assassinar Lula, o vice-presidente, Geraldo Alckmin, e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.
O uso ritual da ayahuasca foi desvirtuado para fins de doutrinação política, denunciou um ex-fiel ao MPF
Raimundo Monteiro de Souza é considerado por muitos como o sucessor de José Gabriel da Costa (1922–1971), fundador do grupo religioso. Em uma entrevista à TVE Bahia, ele se autodenominou, certa vez, como o “papa da UDV”. “De fato, Monteiro não é qualquer um”, atesta João Ribeiro, ex-integrante da UDV, expulso por críticas à organização. “Ele está no mais alto patamar da instituição, como um dos ‘mestres’ da memória”, explica. “São, na instituição, como os discípulos de Jesus.” No grupo, os dirigentes são chamados de “mestres”.
De acordo com relatos de outros membros da instituição ouvidos pela reportagem, Monteiro teria utilizado sua posição de liderança para mobilizar outros seguidores em favor de pautas antidemocráticas. “Ele desejava arregimentar um exército de hoasqueiros (como são chamados os seguidores do grupo) para o golpe, que felizmente fracassou”, observa uma fonte que não quis se identificar.
Não é difícil confirmar o possível envolvimento de outros membros da direção do grupo religioso na trama golpista. Algumas lideranças bolsonaristas da UDV produziram e divulgaram amplamente materiais que as incriminam. Fotos e prints de postagens na internet, que foram publicadas e depois apagadas, mostram diversos dirigentes da UDV participando de acampamentos em frente a quartéis, exigindo uma “intervenção militar” no Brasil, eufemismo para o retorno da ditadura. Entre eles estão Clóvis Cavalieri, coronel aposentado da Força Aérea Brasileira, que foi dirigente máximo da UDV entre 2015 e 2018, e o próprio Raimundo Monteiro. “Por estarem convictos de que o golpe seria bem-sucedido e confiantes na impunidade, expuseram suas ações publicamente”, observa João Ribeiro, ex-filiado da UDV.

Perdão. Jair Gabriel da Costa (à esq.), filho do fundador do grupo religioso, reintegrou os “mestres” da UDV que acamparam em quartéis e participaram do 8 de Janeiro – Imagem: Redes Sociais e Acervo/Assembléia Legislativa de Rio Branco
Outro nome que ganhou destaque é o de Francisco Joffily, do Núcleo Vento Divino, em Lauro de Freitas, na Bahia, conhecido como um dos “mestres golpistas” do grupo. “Ele se sentia seguro para mostrar a cara em atos de terrorismo após o posicionamento de mestre Monteiro, apoiando Bolsonaro”, acrescenta Ribeiro.
Em um vídeo postado por ele mesmo na ocasião, o líder da UDV expressou orgulho por sua participação nos atos que depredaram os prédios dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, em Brasília, referindo-se à data como um “dia histórico”. Com a repercussão do caso, Joffily chegou a ser afastado do quadro de mestres do grupo. Contudo, após a posse do atual mestre-geral-representante, Jair Gabriel da Costa, em 2023, ele foi rapidamente reintegrado à direção da UDV.
Uma fonte, que preferiu permanecer anônima, sugeriu que o retorno tão rápido de Joffily pode estar relacionado a pressões internas. “Ele sabe quem patrocinou as viagens a Brasília”, afirmou, insinuando que o dirigente baiano possui informações sobre mestres influentes que financiaram os deslocamentos para a capital. Se confirmadas, essas alegações podem revelar uma rede de apoio financeiro dentro da UDV para atividades políticas controversas. A suspeita também levanta questões sobre a extensão da influência de lideranças bolsonaristas nas decisões da instituição.
Ribeiro desconfia que, diante de possíveis implicações legais, alguns dirigentes agora tentem disfarçar sua participação na tentativa de golpe. A suspeita do ex-seguidor da UDV baseia-se em um novo vídeo de Joffily, que começou a circular nas redes sociais, no qual ele aparece disfarçado de “turista” em Brasília.
Antes, Joffily já havia alegado que estava na cidade fazendo “cobertura jornalística” da tentativa de golpe, embora ele se apresente, no LinkedIn, como coach e comerciante. Sobre a alegada “viagem turística”, que coincidiu com os ataques às sedes dos Três Poderes em Brasília, em janeiro de 2023, ainda faltam esclarecimentos importantes, argumenta Ribeiro. “Ele precisa dizer quais foram os nomes dos ‘turistas’ que estavam no ônibus, quantos mestres do grupo participaram da caravana e quem custeou as despesas de hospedagem e alimentação.”
Nas eleições de 2018, a UDV rasgou a fantasia da neutralidade política. Vários líderes passaram a apoiar Jair Bolsonaro e aderiram à agenda da extrema-direita
A influência do bolsonarismo na UDV não é novidade. Seus contornos começaram a se delinear nas eleições de 2018, ganhando força até resultar na participação de dirigentes em atos antidemocráticos. No entanto, o terreno para esse alinhamento já estava estabelecido há muito tempo dentro da própria doutrina religiosa do grupo. “A UDV, desde seu início, durante a ditadura, flertava com o militarismo”, afirma a antropóloga Beatriz Labate, que investiga a expansão dos grupos ayahuasqueiros no Brasil e no mundo há décadas. “O grupo sempre teve tendências conservadoras, enfatizando a família, a figura do homem como autoridade máxima, a ordem, a hierarquia, a disciplina, o trabalho e o status quo.”
Hoje à frente do Instituto Chacruna, sediado em São Francisco, nos EUA, a pesquisadora pondera que a UDV não é homogênea. “Enquanto uma faceta, formada por mestres antigos da Região Norte do Brasil, aplaude o autoritarismo, outra, mais urbana, composta de profissionais liberais, artistas e intelectuais de esquerda, o rejeita fortemente.” Labate concorda, porém, que o apoio ao bolsonarismo rompeu a unidade da religião. “A UDV estava em ampla expansão, inclusive conseguindo trazer de volta ex-dissidências para os seus quadros, mas agora há uma contração no número de fiéis.” Estima-se que a crise interna gerada pela adesão à extrema-direita tenha levado ao afastamento de cerca de 2 mil sócios.
Em janeiro de 2023, o advogado Alexandre de Oliveira Rodrigues, que frequentou o grupo durante 20 anos, protocolou um requerimento junto ao Ministério Público Federal, solicitando a inclusão da UDV no inquérito que investiga os atos golpistas do 8 de Janeiro. A solicitação baseia-se em um relatório ao qual a reportagem teve acesso. O documento apresentado ao MPF alega que “lideranças da UDV utilizaram a ayahuasca para doutrinar fiéis e incitá-los à adesão a ideologias extremistas e antidemocráticas”. O conteúdo detalha relatos de discursos de ódio contra o resultado das eleições presidenciais de 2022, narrativas de extrema-direita e chamadas à intervenção militar após a derrota de Jair Bolsonaro.
O requerimento solicita ao MPF a investigação de possíveis crimes praticados pela UDV e seus dirigentes em conexão com os atos do 8 de Janeiro, incluindo eventuais descumprimentos da legislação em vigor relacionada ao uso ritualístico da ayahuasca, especialmente envolvendo crianças. “O uso descontextualizado do chá configura um instrumento de alienação ideológica e doutrinação. Isso demanda uma investigação sobre o tema”, defende Oliveira.
Fundada na selva amazônica em 1961, a UDV é uma religião autodenominada cristã que utiliza a ayahuasca de forma ritualística. A bebida psicodélica, conhecida por seus seguidores como chá hoasca ou vegetal, é preparada com duas plantas amazônicas: o arbusto Psychotria viridis e o cipó Banisteriopsis caapi. Utilizada há centenas de anos por diversos povos indígenas da Amazônia, a mistura também é consumida, há décadas, por cultos religiosos brasileiros como UDV, Santo Daime, Barquinha e Alto Santo. Grupos neoxamânicos, especialmente em centros urbanos, também passaram a adotá-la. Pesquisas científicas têm avançado na demonstração de seu potencial no tratamento de depressão, ansiedade e uso abusivo de drogas.

Apelo. Em sua carta-manifesto, Raimundo Souza fez questão de registrar à mão o número do CPF – Imagem: Redes Sociais
A UDV possui mais de 200 núcleos espalhados por todos os estados brasileiros e em oito países: EUA, Portugal, Espanha, Suíça, Reino Unido, Holanda, Austrália e Peru. A instituição sempre buscou manter uma imagem de neutralidade política, que, para muitos, nunca foi convincente. Foi na eleição de 2018 que o alinhamento de parte de seus membros à extrema-direita se consolidou, com figuras influentes da organização declarando apoio ao então candidato Jair Bolsonaro.
O empresário Luís Felipe Belmonte, ex-dirigente da UDV e então aliado de Bolsonaro, desempenhou papel central na articulação política do governo. Como vice-presidente do Aliança pelo Brasil, partido que o ex-presidente tentou fundar, ele ajudou a consolidar o apoio da organização ao bolsonarismo. Sua influência extrapolou os limites da política partidária, impactando também as dinâmicas internas do grupo religioso, onde o discurso conservador ganhou destaque.
A partir de 2018, a adesão de dirigentes da UDV ao bolsonarismo intensificou os discursos antidemocráticos, antiambientalistas, misóginos, homofóbicos e negacionistas dentro da instituição. Essas narrativas, que já existiam no grupo, ganharam novo impulso e continuam a se expandir sob a liderança do atual mestre-geral-representante, Jair Gabriel, bolsonarista e filho do fundador da UDV.
A UDV agora enfrenta um desafio duplo: lidar com as consequências legais e morais das ações de seus membros, enquanto tenta preservar sua reputação como organização voltada à espiritualidade. As revelações da Operação Contragolpe podem forçar o grupo a reconsiderar sua posição política e a reforçar o compromisso com a neutralidade que dizia defender. O caso também lança luz sobre como movimentos religiosos podem ser cooptados por interesses políticos, uma questão cada vez mais relevante em um Brasil marcado pela polarização e pelo uso da fé como ferramenta de mobilização.
A reportagem entrou em contato com a UDV para obter esclarecimentos sobre as acusações de alinhamento político de dirigentes da instituição com ideologias extremistas e antidemocráticas, bem como com o MPF para informações sobre a tramitação do requerimento que solicitou a inclusão do grupo religioso no inquérito sobre o 8 de Janeiro. Não obteve, porém, resposta de nenhuma das partes. •
*Carlos Minuano escreve sobre psicodélicos há mais de duas décadas e é autor do blog Psicodelicamente, hospedado no site de CartaCapital.
Publicado na edição n° 1340 de CartaCapital, em 11 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bad trip‘