O maior evento sobre psicodélicos do planeta terá a delegação indígena mais expressiva da sua história. Dezenas de lideranças de diferentes povos da Amazônia e de outras regiões do mundo integram a comitiva organizada para o Psychedelic Science 2025, que acontece entre 16 e 20 de junho, em Denver (EUA). Além dos representantes dos povos tradicionais, o encontro reunirá pesquisadores, terapeutas, cientistas e ativistas para debater os rumos da medicina psicodélica no cenário global.
Com foco em justiça social, saúde pública e saberes ancestrais, o evento terá um eixo exclusivo dedicado à sociedade, no qual pajés, curandeiros, xamãs e lideranças espirituais ocuparão o centro do debate sobre os limites e as possibilidades do uso ritual e terapêutico das substâncias psicodélicas. Uma comitiva organizada pelo Indigenous Medicine Conservation Fund (Fundo de Conservação das Medicinas Indígenas) estará presente com cerca de 30 lideranças.
Essa grande delegação indígena em Denver faz parte de um movimento de articulação que vem ganhando força a partir das conferências indígenas da ayahuasca, realizadas no Acre desde 2017. Uma resposta ao formato acadêmico que até então dominava os debates.
Dois dos principais desdobramentos desse movimento são o recém‑criado Conselho de Lideranças Espirituais Indígenas e o Fórum Mundial da Ayahuasca, previsto para acontecer entre 10 e 13 de setembro de 2026, em Girona, na Espanha, organizado pelo Instituto Yorenka em parceria com o Iceers (sigla em inglês para Centro Internacional de Educação, Pesquisa e Serviço Etnobotânico).
Faca de dois gumes
Um dos destaques da programação da conferência em Denver será o painel “Ayahuasca: Biocultural Considerations and Indigenous Perspectives”, que reunirá, na próxima quarta-feira 18, lideranças de Brasil, Peru e Colômbia para discutir os impactos da globalização da ayahuasca. Participam do debate Daiara Tukano, Yama Nomanawa, Miguel Evanjuanoy Chindoy e o cacique Biraci Nixiwaká Yawanawá, referência espiritual e política do povo Yawanawá, do Acre.
O cacique Biraci Nixiwaká Yawanawá, um dos fundadores das conferências indígenas da ayahuasca e membro do Conselho de Lideranças Espirituais Indígenas, também fará um discurso na abertura do Psychedelic Science 2025. Ele falou ao Psicodelicamente sobre a complexidade que envolve a crescente expansão da ayahuasca fora das aldeias. “É como uma faca de dois gumes”, resumiu.
De um lado, ele reconhece o valor da difusão da bebida como medicina. “Acredito que a ayahuasca é como uma vacina do futuro para a doença da humanidade. Ela não cura só o corpo, cura o coração, o pensamento, o espírito. Traz equilíbrio para o ser e reconecta com a natureza.”
Mas o outro gume da lâmina preocupa o líder indígena. Para ele, a forma como a ayahuasca tem sido oferecida fora do contexto tradicional revela um processo de descolamento em relação aos conhecimentos ancestrais que sustentam seu uso.
“As pessoas estão levando essa medicina para fora do contexto, sem o equilíbrio do conhecimento tradicional. Hoje, todo mundo quer ser pajé, criar centro de cura, oferecer ayahuasca para todo mundo. Mas nossos ancestrais sabiam: não é toda pessoa que pode beber e muito menos servir.”
Segundo ele, esse movimento de banalização pode colocar em risco tanto os praticantes urbanos quanto os próprios povos indígenas. “Quando a própria pessoa está em desequilíbrio, como ela pode trazer equilíbrio para os outros?”, questiona, em um tom mais de advertência que de condenação.
A presença de Biraci na conferência não é apenas simbólica: representa o esforço de uma geração de lideranças que têm buscado participar ativamente dos espaços internacionais para proteger seus saberes, sem abrir mão do espírito, da floresta e da ética que os orientam.
O cacique yawanawá também esteve presente na edição anterior da conferência, em 2023, quando foi uma das poucas lideranças indígenas convidadas a participar. Em seu discurso, adotou um tom conciliador, mas incisivo: “Não vim aqui pra criticar vocês, nem pra reclamar, nem pra denunciar. Vim pra parabenizar. Que bom que vocês estejam descobrindo com a sua ciência, finalmente, o que nós viemos falando faz mais de mil anos.”
Caminho perigoso
Para o cacique Yawanawá, a abertura de espaços como a conferência em Denver a vozes indígenas é positiva, mas insuficiente se não vier acompanhada de escuta real e compromisso ético. “Estamos sendo convidados para esses grandes eventos, estamos sendo ouvidos. Isso é um sinal positivo”, afirma. “Mas não é só trazer o indígena pra falar bonito, usar roupa tradicional e tirar foto. É preciso escutar de verdade e dialogar com o que estamos dizendo.”
Para ele, transformar a ayahuasca em um medicamento comercializado sem o devido reconhecimento dos povos que a preservam é um caminho perigoso.
Nos últimos anos, grandes laboratórios internacionais e startups de biotecnologia passaram a investir no desenvolvimento de compostos sintéticos inspirados na ayahuasca. Há também registros de pedidos de patente sobre processos de extração, uso terapêutico e formulações associadas à planta — na grande maioria, sem qualquer diálogo com os detentores originários desse conhecimento milenar.
Biraci alerta que essa tendência de mercantilização pode desvirtuar completamente o sentido espiritual da medicina. “Ayahuasca é uma medicina espiritual muito mais do que física. Transformar isso em medicamento sem respeitar suas origens, sem reconhecer os guardiões, que somos nós, os povos indígenas, é uma falta de respeito.”
Ele vê nesse processo uma ameaça não apenas à integridade da planta, mas ao equilíbrio que ela representa. “Estão transformando uma medicina divina em mercado, em negócio. E isso é perigoso”.
O líder indígena enfatiza a necessidade de manter o diálogo, mas sob orientação dos povos indígenas. “Ayahuasca é medicina de equilíbrio, de perdão, de amor. Não é para enriquecimento, nem para aumentar o ego de ninguém. Se ela vai se expandir no mundo, que seja com a nossa orientação.”
Ciência viva
Questionado sobre o que seria uma “relação correta” entre o mundo ocidental e os povos indígenas diante do interesse crescente pela ayahuasca, Biraci Yawanawá reforça que essa relação precisa partir do reconhecimento real dos sistemas tradicionais de saúde dos povos originários, não como folclore, mas como ciência viva. “Temos médicos: os pajés, os ‘nipeyahu’, homens e mulheres que conhecem as plantas que curam. Isso sempre existiu.”
No entanto, segundo o cacique, essas práticas continuam invisibilizadas, empurradas à margem por um sistema oficial que impõe seus próprios critérios de validação. “Hoje, para ser médico tem de ter CRM. E os povos indígenas? Não entendemos desse sistema. E mesmo assim seguimos curando, com eficiência, com sabedoria.”
Ele lembra que, em muitos territórios, a primeira e às vezes única forma de cuidado é a medicina tradicional. Mas, ao entrar em um hospital, o pajé é barrado, desacreditado, desrespeitado. “Chamam de pajelança, curandeirismo, macumba… Usam esses nomes de forma pejorativa. Isso mostra uma ignorância profunda sobre o nosso sistema de cura.”
Por isso, defende iniciativas de articulação e reconhecimento, como o projeto de criação de um conselho de lideranças espirituais, que ele propõe há anos no Brasil e que agora encontra ecos em outras iniciativas continentais. “O SUS precisa reconhecer que os povos indígenas têm seus próprios tratamentos, suas ciências, seus sistemas de saúde. Eles não precisam ser substituídos, mas podem dialogar com a ciência moderna. Esse debate é muito importante para o futuro.”
É justamente com esse espírito de afirmação e diálogo que o cacique integra a comitiva organizada pelo Fundo de Conservação das Medicinas Indígenas, formada por cerca de 30 lideranças indígenas de diferentes países, que estarão em Denver para levar adiante essa pauta.
A medicina e o futuro
Realizado pela Maps (Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies), o Psychedelic Science é considerado o maior encontro mundial sobre psicodélicos. A edição deste ano reunirá milhares de participantes de diferentes países.
Além dos debates sobre saberes ancestrais com a presença de uma comitiva indígena internacional, a programação abrange temas como justiça social, saúde pública, espiritualidade, ciência, cultura, relações familiares e cuidados paliativos.
Com eixos dedicados à sociedade, à ciência e à integração, a proposta é pensar o papel dos psicodélicos não apenas como ferramentas clínicas, mas como agentes de transformação social, cultural e ecológica. Mais informações sobre a programação estão disponíveis em psychedelicscience.org.