A Axia Energia, nome adotado pela antiga Eletrobras após a privatização, realiza hoje assembleia geral extraordinária que pode marcar o capítulo final da transferência de valor público para mãos privadas. Em pauta, a transformação de R$ 39,9 bilhões em reservas de lucro – acumuladas majoritariamente no período estatal – em ações preferenciais classe C (PNC), que serão distribuídas aos atuais acionistas.
A operação articula três movimentos simultâneos que beneficiam os controladores privados: a apropriação de lucros históricos gerados quando a empresa era pública, a diluição adicional do Estado no controle da companhia e uma engenharia tributária que evita a futura taxação de dividendos.
Primeiro movimento: lucros públicos, bolsos privados
As reservas de lucro são a parcela do resultado líquido que não é distribuída como dividendos, permanecendo no patrimônio da empresa para investimentos, proteção financeira ou cumprimento de obrigações legais. No caso da Eletrobras, essas reservas foram formadas principalmente enquanto a companhia era estatal e operava ativos estratégicos de geração e transmissão de energia.
Durante décadas, consumidores brasileiros pagaram a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e outros encargos setoriais que sustentaram o sistema elétrico e melhoraram o fluxo de caixa da Eletrobras. Os lucros gerados, em vez de retornarem à sociedade via redução tarifária ou novos investimentos públicos, foram retidos como reservas no balanço da empresa.
Com a privatização, essas reservas – construídas com recursos que tinham origem pública – passaram a integrar o patrimônio de uma empresa agora controlada por investidores privados. A operação de hoje consuma essa transferência: os R$ 39,9 bilhões serão convertidos em ações e distribuídos proporcionalmente aos atuais acionistas, sem qualquer retorno direto ao Estado ou aos consumidores que financiaram sua formação.
Segundo movimento: diluição e perda de controle
A assembleia autorizará a emissão das ações PNC, uma nova classe de preferenciais com características inéditas na estrutura da companhia. Diferentemente das preferenciais tradicionais, as PNCs conferirão direito a voto tanto para acionistas ordinários quanto para preferencialistas. Além disso, os detentores de preferenciais receberão um prêmio de 10% nos dividendos futuros.
A consequência é direta: a União, que já mantém participação minoritária após a privatização de 2022, verá seu peso no controle da empresa ainda mais diluído. Com a emissão de bilhões em novas ações distribuídas proporcionalmente aos acionistas atuais, o Estado perde influência adicional sobre decisões estratégicas de uma companhia que opera infraestrutura crítica do país.
A estrutura beneficia especialmente os grandes investidores institucionais que compraram ações preferenciais durante e após a privatização, garantindo-lhes agora não apenas dividendos privilegiados, mas também poder de voto – uma combinação rara no mercado de capitais brasileiro.
Terceiro movimento: a engenharia tributária
O timing da operação não é coincidência. A partir de 2025, entra em vigor a tributação de dividendos com alíquota de 15% para valores acima de determinada faixa de isenção. Ao transformar R$ 39,9 bilhões de reservas em ações agora, em 2024, a Axia e seus acionistas evitam que esse montante seja eventualmente distribuído como dividendos tributáveis no futuro.
A economia tributária potencial é bilionária. Se essas reservas fossem distribuídas como dividendos após 2025, gerariam arrecadação substancial para a União. A conversão em ações configura um planejamento tributário que, embora possa ser legal, levanta questões sobre a legitimidade de usar recursos acumulados no período estatal para beneficiar exclusivamente acionistas privados, às vésperas de uma mudança na legislação tributária.
Reservas de lucro são registros contábeis, não caixa disponível. A operação de hoje permite que esse valor seja gradualmente convertido em dividendos reais nos próximos exercícios, já como capital social, escapando da tributação que incidiria sobre distribuições diretas de lucros.
A síntese da operação
O movimento que será votado hoje representa a auge de um processo que começou com a privatização: lucros gerados por ativos públicos, financiados por tarifas pagas pelos consumidores, transformados em reservas durante o período estatal, apropriados pelos novos controladores privados, distribuídos de forma a diluir ainda mais o Estado e estruturados para evitar tributação futura.
O que está em jogo, porém, transcende a legalidade formal. A questão central é se é legítimo que uma empresa recém-privatizada, que opera serviços essenciais e infraestrutura estratégica, utilize reservas acumuladas no período público para beneficiar exclusivamente interesses privados, sem qualquer contrapartida à sociedade que financiou sua formação.
A assembleia de hoje pode encerrar juridicamente o ciclo de privatização da Eletrobras. Mas o debate sobre a legitimidade dessa transferência patrimonial está apenas começando. Resta saber se haverá contestações judiciais, manifestações do Ministério Público ou pressão política para reverter ou compensar os efeitos dessa operação.
Por enquanto, os R$ 39,9 bilhões seguem o caminho traçado: das mãos do Estado para os bolsos dos acionistas privados, passando pela conta de luz dos brasileiros.
Leia também: