Tecnologia aérea e estratégias de guerra

Tecnologia aérea e estratégias de guerra

por Luís Carlos da Silva

O bombardeio massivo de populações civis, também conhecido como dilúvio ou tempestade de fogo, foi um fantasma impertinentemente insistente no cotidiano de europeus e norte-americanos de uma Grande Guerra à outra na primeira metade do século 20. E não sem razão. Os avanços aeronáuticos e a sua interação com esforços de guerra se tornaram rotineiros a partir de 1914. Tanto que muito da estratégia militar de países beligerantes passou a incorporar a inovação e a tecnologia em matéria de aviação como vantagem tática decisiva para o êxito de suas operações. Desse modo, nenhum teatro de guerra doravante prescindiu dessa interação como meio ofensivo, defensivo ou os dois ao mesmo tempo.

Essa compreensão virou tão clarividente que, às vésperas do fim da Grande Guerra, em 1918, o general sul-africano Jan Smuts afirmava enfática e metodicamente que não tardaria o dia em que as operações aéreas com a sua devastação de territórios inimigos e a destruição generalizada de centros industriais e de centros de populações poderiam se transformar nos principais fatores das operações de guerra, deixando em segundo plano as antigas operações militares e navais.

Cientes disso, chefes de estado-maior, lideranças políticas, aeronautas e cientistas franceses, ingleses, alemães e norte-americanos forjaram entendimentos para a viabilização de esforços comuns no aperfeiçoamento artefatos de segurança e defesa ante bombardeios aéreos. Conseguintemente, variados ramos da Ciência foram – agora sim, em larga escala em todas as partes – tornados partícipes dos debates estratégicos.

Nesses termos, não foi, portanto, sem razão nem ao acaso a nomeação do matemático Paul Painlevé ao Ministério da Guerra na França em 1917. Eram os sinais dos novos tempos. Tempos em que a Ciência passava a condicionar o destino da paz e da guerra entre as nações.

A insularidade do Reino Unido era uma grande vantagem para os britânicos que se eximiram de vivenciar as horrorosas batalhas de trincheiras que seus contemporâneos jusante a Mancha tiveram que amargar. Deixaram, assim e por fortuna, de contemplar tormentos, angústia e aflição com memórias impertinentes oriundas de experiências de brutalidade feito aquelas das batalhas de La Somme, La Marne e Verdun.

Nenhum sobrevivente desses episódios de agressividade sem par na história da humanidade deixou de se martirizar a posteriori.

Entretanto, o advento bombardeio aéreo como tática de guerra tornou o território continental de His Majesty imensamente vulnerável. Notadamente frente às forças aéreas da Alemanha que, desde 1914-1918, sobressaiam-se às outras no emprego de bombardeios aéreos massivos e criminosos na intimidação e contração de inimigos declarados de guerra. Assim, não sem propósito nem razão, os britânicos criariam, sob o chão de batalhas e ruínas da Grande Guerra, a sua Royal Air Force em 1918.

Visto retrospectivamente, o desespero dos britânicos com a iminência de dilúvios de fogo ia de par com a sua também agonia diante da hipótese da confluência de dilúvios de fogo incrementados de gases tóxicos. Morrer lutando, desde sempre, mobilizou alguma honra. Morrer inocentemente sem respirar nem tanto.

Essa ambiência, portanto, de pavor e pânico e de pânico e pavor, tornou corrente a expressão Know-Out-Blow para designar o inferno manifesto caindo dos céus. Um inferno com morte segura e morte sem meios de reação. Uma, então, visão do inferno que começou a martirizar o imaginário britânico nesse contexto após Grande Guerra. Também por isso foi criado o Air Raid Precautions Committe (ARP) em 1924 para minorar o agastamento geral. Entendido, no entanto, como insuficiente, esse comitê foi adicionado a esforços de inovação científica e tecnológica jamais praticados no Reino Unido nem algures.

Fruto desse empenho constante, no dia 26 de fevereiro de 1935, o engenheiro Robert Watson-Watt apresentou ao comitê de estudos científicos do Ministério da Defesa do Reino Unido um protótipo de um aparelho capaz de detectar movimentações e trajetórias de aparelhos aéreos em pleno voo. Esse invento foi inicialmente batizado de RDF (Radio Direction Finding) para, em seguida, receber a alcunha de radar (Radio Detection and Raning).

Foi, como previsível, imenso o êxtase dos britânicos e de seus aliados europeus e norte-americanos com esse advento do radar. Parte relevante do investimento conjunto em pesquisa e inovação percebia ali mostras importantes de sua materialização em resultados. Cientistas de todos os matizes, assim, eram encorajados a seguir seus trabalhos e os segmentos políticos, por sua vez, a manter e aumentar as suas subvenções.

Mas esse advento não decorria do simples presente. Ao contrário, remontava a tempos quase remotos. De modo que os cientistas e militares britânicos fizeram questão de reconhecer e reiterar o longo empilhamento de inovações plasmado naquela façanha. E, para tanto, situaram o início de tudo no avanço da eletrônica.

Foi, desse modo, como todos faziam ostensivamente lembrar, sob a belle époque e por volta de 1890, que os trabalhos de Branly, Tesla e Marconi permitiram a invenção do rádio. Em seguida, com a incorporação dos experimentos do inglês Fleming sobre a diode e do norte-americano Forest sobre a triode que se tornou possível a criação da radiodifusão ao longo dos anos de 1920. Adiante, nos anos de 1930, a fusão dessas conquistas científicas concretizou a fotoelétrica que abriria todos os caminhos para o nascimento da televisão.

Mediante, assim, essa verdadeira tempestade de inovações foi que setores de inteligência e estratégica militar britânicos sobretudo – mas também europeus e norte-americanos – intensificaram a articulação desses inventos na viabilização de meios para conter a inclemência de ameaças vindas dos céus.

Como consequência, o comandante Labat e o engenheiro Laville aperfeiçoaram o experimento barreira eletromagnética e iniciaram a sua utilização no nordeste da França em inícios de 1930. Depositário direto de tudo isso foi que o engenheiro britânico acabou por tudo sofisticar de modo a pavimentar todas as vias para a concretização de uma verdadeira ciência do monitoramento aéreo expressa no advento do radar.

Tudo isso pesaria forte e positivamente em favor dos aliados ao longo do restante da guerra-mundo. O incidente de Pearl Harbor transportaria para os norte-americanos a amargura e os receios dos britânicos com tempestades de fogo simulando o Juízo Final. Mas também contribuiria decisivamente para os empenhos nos avanços da ciência do radar.

A evolução do radar foi, nesse sentido e em todos os seus aspectos, importantíssima. E, além disso, mobilizou e estimulou os mais variados setores científicos e tecnológicos da época. Vendo com mais vagar, o advento e a evolução radar acabariam por determinar o reconhecimento da relevância do “progresso” da Ciência no desfecho da vida e da morte entre as nações.

Pensando assim, a vitória dos aliados assentada nos preceitos ocidentais ancorados nas quatro liberdades wilsonianas foi também depositária de muito sangue, suor e lágrimas de abnegados homens e mulheres de Ciência integrados ao esforço de guerra. Ninguém pode negar.

Auschwitz, por evidência, foi o lado mais sombrio de tudo isso. E, observando-se bem, Hiroshima e Nagazaki não ficaram atrás.

Se o advento do radar seguramente poupou vidas humanas, muitos dos variados empregos da Ciência nas guerras também desvirtuaram em muito a própria ideia de ser humano. Ficou latente, com isso e para todos, o lado sombrio da inovação advinda da Ciência. Notou-se, de cabo a rabo, que o empilhamento de saberes científicos não necessariamente conduz a dias bons. E, portanto, que a felicidade talvez nunca more ao lado. Ao menos, ao lado da Ciência.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, pós-doutor em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e professor na Universidade Federal da Grande Dourados

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Última Atualização: 07/08/2024