Tiro. Desde que me formei, no longínquo 1969, compareci só uma vez ao encontro, e não foi por falta de gosto: foi por falta de aviso mesmo.

Ao encontro compareceram os sargentos Minzoni, Meyer e Zanoni. O quarto seria o Tigrão, que faleceu.

Larguei os compromissos, arrumei a mochila e pé na estrada.

Quando cheguei no local, estavam lá os três sargentos, perdão, o coronel Zanoni, o Major Meyer, ambos da reserva, e o advogado Minzoni. E vários amigos das turmas de 1968 e 1969.

O primeiro balanço foi dos falecidos. Não havia o clarim para entoar o toque.

O segundo, um balanço das molecagens, das trapalhadas, das farras que acompanham todo alistamento.

O mais animado era o Major Meyer que dizia que, nos encontros de atiradores, não poderia faltar o levantamento de “causos”. Ainda mais devido ao fato de, segundo ele, o Tiro de Guerra de Poços ser o último que ainda mantinha tradição das reuniões anuais.

A pedido do Major, nosso eterno Sargento Meyer, vamos aos causos.

Na época, admito que havia condições de dar uma carteirada no alistamento. O filtro do exame médico era feito pelo dr. Mendonça Chaves, amigo do meu pai. E os alunos que se preparavam para o vestibular tinham alguma preferência na dispensa. Mas meu pai achou que o adolescente rebelde precisava de um pouco de disciplina.

No primeiro dia em que me apresentei no Tiro de Guerra, ainda em roupa de paisano, o sargento Meyer ordenou-nos que escalássemos o barranco. Pedi a palavra e respeitosamente informei que tinha as costas tortas, uma perna maior que a outra, e não poderia subir o barranco a pé.

– Moreno, aqui você não sobe barranco a pé, você sobe rastejando de costas.

E discutir com tal demonstração de autoridades, quem haveria de? Rastejei de costas e perdi uma pinta de estimação, que não resistiu às costas raladas.

A experiência no Tiro foi inesquecível por vários motivos, o principal dos quais a convivência com um grupo bastante heterogêneo e distinto do que eu convivi em minha adolescência no GGN, pessoal mais ligado em música e em política, e na Mater et Magister, nossa bíblia máxima.

Havia os malandros, querendo se impor pelos músculos e pela ousadia. E os grandões de boa índole, os da roça, humildes e desconfiados, e alguns classe média como eu. Enfim, o ambiente ideal para fazer amizades, montar alianças, entender os rituais de amizade, tão heterogêneos quanto o público convocado e encontrar o mínimo denominador comum para avaliar o caráter de cada um, independentemente de instrução ou condição social.

No primeiro dia de Tiro vieram as responsabilidades. Junto com outros 12 colegas, de melhor nível escolar, ganhamos a patente de cabo. Cada cabo tinha debaixo de si 12 recrutas, se não me engano. E houve a eleição para o Grêmio do Tiro de Guerra, para o qual fui eleito presidente, provavelmente devido à repercussão na pequena Poços de Caldas  dos festivais de música que havia vencido.

Foi um enorme desafio. Estávamos em pleno AI5. O sargento Zanoni, que ficou apenas três meses, queria que o Grêmio produzisse um jornal, o que lhe daria pontos na avaliação do Exército. E eu tendo que reprimir minha veia jornalística – e a do Roberto Motta, meu diretor de comunicação – para não fazer jornal algum em pleno AI5.

Com Zanoni aprendi de forma didática o que significa a amizade e a solidariedade corporativa no Exército. Alguns atiradores foram agredidos por rapazes da cidade, se não me engano no Café das Américas onde, de manhãzinha, íamos tomar café antes de seguir para o Tiro. Zanoni foi até lá, tirou a camisa do Exército e as insígnias e chamou os valentões para a briga. Nenhum ousou. E ele ganhou para sempre a admiração da tropa, apesar do pouco tempo de instrução, pois logo depois foi removido e substituído pelo sargento Tigrão. 

Juro que não me lembro do seu nome, porque durante todo o Tiro o tratávamos apenas como Tigrão, devido ao seu ar severo, algo bronco. O Tigrão era a melhor tradução do sargento Tainha, do Recruta Zero, zangado, mal humorado e com um coração de ouro.

Havia também o Sargento Minzoni, casado com uma moça de Poços, que morava no hotel da família da esposa. Minzoni era intelectualmente mais refinado, tinha pretensão de largar o Exército e seguir a carreira de advogado. O que acabou acontecendo.

Aquele ano foi uma farra disciplinada. Acordava às cinco da manha, seguia para o Tiro, voltava para casa, tomava banho, trocava de roupa e pegava o ônibus para São João da Boa Vista, onde terminava o clássico. Voltava no final do dia, dava uma passadinha no Bachianinha que, afinal, não era de ferro, e me preparava para o dia seguinte.

Foi uma experiência marcante. Agora, os encontros do Tiro ajudam a repor pedaços da memória que se perderam no tempo.

No último encontro, uns 15 anos atrás, os colegas cantaram uma paródia do “Boneca cobiçada”: “Quando eu me alistei / fiquei puto da vida / fiz tudo pra esquecer/ a maldita ordem unida”. Nem me lembrava. Perguntei de quem era. E eles, conhecendo a distração do colega atirador: 

– Sua, não se lembra?

Foram muitas as farras.

Certa vez organizamos um baile na Urca, para angariar recursos para o Grêmio. Batizamos de “Baile do Tigrão”. O Sargento Minzoni me chamou, apreensivo, no hotel onde morava:

– Vocês são loucos! O sargento é de maus bofes. Se descobrir que o Tigrão é ele manda vocês fazerem o Exército em Pouso Alegre.

Mas já tínhamos pensado a estratégia toda. Na porta do baile colocamos o cartaz do Tigre da Esso, que fazia muito sucesso nas campanhas publicitárias da época. Era o baile do Tigrão da Esso.

O Sargento Tigrão era turrão, mas era boa gente, ótimo coração. E a prova maior foi no dia em que, de mau humor, nos fez rastejar de roupa civil no campo da Caldense.

Indignados, montamos um grupo e fomos nos queixar para o Tenente Hélio, maior autoridade militar da cidade, mas que, ainda assim, não tinha ascendência hierárquica sobre o Tiro de Guerra.

Choramos as mágoas, sob as vistas do Avestruz, um sujeito fantástico, negro, gay, lutador de boxe cujo bico principal era vender salgadinhos no Tiro de Guerra. Ah, e também era alcagueta. No dia seguinte, antes de começar a aula de instrução, Avestruz já tinha caguetado para o Sargento Tigrão.

Cheguei no Tiro e imediatamente o Sargento Minzoni me chamou em sua sala:

– Vocês são malucos. Não sabem como o Exército trata a insubordinação? Poderão ser desligados e obrigados a fazer o Exército.

Estava apreensivo, na sala de aula, quando Tigrão grita da porta, me convocando, na condição de presidente do Grêmio.

– Seu Nassif, tive uma notícia muito desagradável, que um grupo de atiradores foi se queixar de mim para o tenente Hélio. Você soube disso?

Na condição de presidente do Grêmio, provavelmente o Sargento me considerava um homem dele junto aos atiradores.

– Soube, sim, Sargento.

– E saberia dizer quem estava lá?

– Olha, Sargento, o único que tenho a certeza que estava lá era eu. O resto, não me lembro.

O Sargento me olhou com cara de desgosto:

– Até o senhor, seu Nassif?

Mas, para minha surpresa, não me puniu, o que confirmava o que pensávamos dele: uma boa alma dentro de uma carcaça dura. E, provavelmente, valorizando o gesto de lealdade.

Nossa vingança com o Avestruz foi pedir para nossas mães fazerem salgadinhos e levarmos para o Tiro, montando uma concorrência desleal com os salgadinhos pagos do Avestruz.

Menos sorte tive com o Sargento Meyer.

Julho daquele ano foi um mês excepcionalmente favorável para nosso grupo de música, nos muitos festivais  que aconteciam. Venci o Festival de Poços de Caldas e de Casa Branca. Coincidentemente, o organizador era um Sargento do Tiro de Guerra de lá, que instituiu um troféu para o melhor atirador. Como havia perdido alguns dias de Tiro, corri a levar o troféu para o Tiro, conseguindo ganhar pontos com o sargento.

Mas o mês continuou embalado. Vencemos o Festival de Poços e, em seguida, fomos concorrer na Feira Permanente da Música Popular, da TV Tupi, com a mesma música, “Congresso Internacional do Medo”, feita com meu parceiro João Kleber Juriti. A Feira tinha um finalista por mês, e dos 12 finalistas sairia o vencedor final. No mês anterior, o vencedor havia sido Paulinho da Viola com o samba “Foi um Rio que passou em minha vida”.

Meu pai tinha uma Veraneio, Entupimos com dez músicos de Poços e São João e fomos enfrentar as feras. O final da música era um dixieland, que introduzimos seguindo  a  dica de Hermeto e Alemão, que haviam concorrido no Festival de Poços com o Conjunto da Rhodia. 

O primo Oscar se incumbiu do trombone, o Agenor (que se tornou maestro e era atirador) do pistom. Como o trombone estava meio emperrado, o Oscarzinho achou de lubrificá-lo com óleo de carro. Deu um tilt que foi bom para o resultado final da música. Na hora da trombonista o Oscarzinho tentava umas três vezes esticar a vara. Conseguia nos momentos mais inusitados, mas conferindo um toque de novidade à nossa miscelânea musical, que começava com uma gravação da Cavalgada das Valquírias, passava por rock, marcha rancho e terminava com o dixieland sugerido pelo Hermeto – conforme explicávamos de boca cheia para os demais competidores.

Para nossa imensa surpresa, vencemos a eliminatória de julho. Voltamos de São Paulo de madrugada. Deixamos o Eremílio em São João da Boa Vista, aproveitamos para colocar cocô de cachorro no sapato do Agenor, que dormia profundamente no banco de trás,  e chegamos em Poços, eu saboreando antecipadamente as celebrações que a cidade faria com a vitória dos seus filhos.

O encontro com a realidade foi duro. Cheguei em casa seis da manhã e encontro minha irmã Regina acordada e com um recado terrível do Sargento Meyer:

– Ele disse que se você não aparecer hoje no Tiro, será enviado para Juiz de Fora.

Fui correndo para lá com o coração na boca. E encontrei um Meyer ameaçador, mas com um acordo de leniência na mesa:

– Moreno, a única maneira de você não ir para Juiz de Fora será levar minhas sobrinhas cariocas para conhecer a cidade.

Com todo prazer. E toca a ciceronear as mocinhas da Vila Isabel.

Dali para frente, sofri merecidamente nas mãos do Meyer. Nos primeiros acampamentos noturnos, sempre se autorizava um atirador a ir com o próprio carro, para carregar parte das barracas. Nos dois primeiros, consegui ir com a Veraneio do meu pai, eu e o Capeta na direção.

Aliás, dia desses precisei de um motorista em Poços e me indicaram justamente o Capeta, que ficou injustamente marcado no dia em que perdeu a direção e matou a filha do Tiãozinho Cabo Verde, que estava na calçada.

Depois de ter dado moleza em julho, entrei na lista negra do sargento. Em toda caminhada havia um revezamento entre os atiradores para carregar a mochila de remédio, que era um tanto pesada. Dali para frente, sobrou para mim durante todo o trajeto.  Outros colegas se ofereceram para alternar, mas Meyer foi definitivo:

– É o moreno que vai carregar, pois está em débito com o Tiro

E nem chiei, porque, pelas faltas anteriores, o castigo até que era leve.

Mas a melhor demonstração da solidariedade do Tiro veio no final do ano.

Em São João da Boa Vista, ajudei a montar um grupo de teatro, o Gajos. E resolvemos levar a peça “Liberdade, Liberdade”. Aliás, foi na base do remendo. Tínhamos o texto, as letras das músicas, mas não as músicas – embora fossem clássicos da música popular. Naqueles tempos, o acesso ao repertório mais antigo era difícil. A saída foi compor em cima das letras, um sacrilégio. Nem ouso lembrar como ficou “Acertei no milhar”, com minha música capenga saudando a Etelvina.

Apresentamos em São João e chegamos a ir até Uberlândia de Kombi. O trio de atores, excepcional, era o Luiz Antonio “Explosivo” Ricci, o Eremílio e a Suzana. Eu ficava do lado, com o violão, acompanhando as músicas. 

Na volta, um estudante de direito de São João da Boa Vista ligado ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas) nos denunciou ao Segundo Exército. Um grupo da inteligência foi até São João e a diretora do Instituto Educacional livrou a barra de todos, mas informou que eu era de Poços. Como era em outro estado, a denúncia foi encaminhada para Minas, chegando em Poços através do delegado Honório e do tenente Helio, ambos amigos do meu pai.

O Tiro já havia terminado. Mesmo assim, o tenente Hélio avisou os sargentos, que imediatamente alertaram outros atiradores para, me encontrando, avisar para não ir a São João, pois estariam me aprontando uma armadilha. Foram  vários colegas cruzando comigo na rua e me alertando. E, antecipadamente, me pedindo desculpas por me informar que eu estava sendo acusado de  subversivo.

Já tivera um exemplo leve daqueles tempos na parada de 7 de Setembro. Na véspera meu pai emprestou o carro e fomos ao bailinho de Aguaí, para lá de São João que, depois eu soube, a Dilma Rousseff costumava frequentar, quando passava feriados com sua tia. 

Na volta, deixei o carro com o Tião Cabo Verde, sobrinho do Tiãozinho e filho do seu Mesofante Fressait, para guardar em uma garagem perto de casa. E o Tião resolveu aprontar. Subia até a Santa Casa, descia com o carro desligado, depois ligava o carro só para ver as explosões que saíam do escapamento.

No dia seguinte, quando a fanfarra do Tiro passou em frente à farmácia do meu pai, este veio em minha direção com os olhos saltados. Parei de tocar o pífaro e nem acreditei no que vi e ouvi. Ele falava um tanto, gesticulava outro tanto, apontava a kombi do meu tio. Prossegui o desfile achando que meu tio tinha sido preso.

Terminado o desfile, fui correndo para a farmácia e meu pai informou que o carro havia sido detido pelo delegado da cidade, por suspeita dos passageiros estarem dando tiros pela cidade. Na véspera, ocorrera o sequestro do embaixador norte-americano. Razão pela qual provavelmente deixei de conhecer a Dilma no bailinho. Teria sido legal conhecer em Aguaí uma ex-colega do GGN de BH.

Fui atrás do Tião, que me contou a molecagem. E toca a ficar no banco do Hotel D’Oeste aguardando o delegado acordar para liberar o carro. No fundo, ele sabia que fora molecagem e resolveu nos punir com uma molecagem maior. Conseguiu! O susto que nos deu foi inesquecível.

Mesmo a notável demonstração de solidariedade, dos colegas me alertando sobre São João a pedido dos sargentos, não impediu o trote definitivo e fatal.

Marcamos um churrasco de despedida do Tiro. Foi em um local meio abandonado, atrás do edifício Bauxita, na época o único prédio na cidade, no morro Nossa Senhora de Fátima.

Juntei um grupo de colegas e planejamos minuciosamente o trote.

Começou comigo pedindo à Neusa, que trabalhava na farmácia do meu pai, que me indicasse um remédio que soltasse o intestino. Me indicou um determinado pó. O que seria uma dose alta? 1,5 gramas, me disse ela. Fiz um pacotinho com 3 gramas.

Antes do churrasco, sondamos o local. Tinha um banheiro com seis vasos. Do lado de fora, o matinho.

Tudo combinado, demos início ao nosso plano.

O Sargento Meyer chegou com o Minzoni. Tirei um chopp com bastante espuma e coloquei nele as três gramas do pó. Ofereci ao Meyer, que ficou grato pela gentileza. Tomou o primeiro gole, limpou o bigode de espuma e elogiou o chopp:

— Muito bom e cremoso!

Dali a pouco, começou a se mostrar impaciente, e perguntou onde ficava o banheiro. Imediatamente, seis atiradores correram para lá e se fecharam nas casinhas disponíveis.

Ao mesmo tempo, o Beleza – o Humberto, filho do lambe-lambe mais famoso da cidade – foi para o matinho com a máquina fotográfica do pai.

A estratégia falhou por um detalhe, uma brilhante tática de retirada do Meyer, que pediu emprestado o carro do Minzoni e disparou para a cidade, atrás de um banheiro desocupado.

No começo do ano seguinte, meu vizinho André Aguirre se alistou e o acompanhei no dia da apresentação, só para rever o Sargento Meyer. Ele me recebeu simpaticamente. Perguntei a razão dele ter se mandado tão cedo do churrasco:

— Moreno, peguei uma caganeira que nem te conto. Três dias na privada.

E só conto o causo porque o Sargento Meyer insistiu para que lembrássemos nossas molecagens.

Só faltou mesmo encerrarmos o encontro com o inesquecível “Hino do Infante”:

Onde vais tu, esbelto infante
Com seu fuzil lesto a marchar…

Conteúdo de vídeo da Web denominado: Ardor do Infante

https://www.youtube.com/watch?v=smmSwHWvkAw

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Last Update: 19/04/2025