Avatar, a videoconferência judiciária do futuro
por Fábio de Oliveira Ribeiro
Eis a descrição de algo interessante que vi e ouvi hoje:
“A audiência já vai começar, anuncia o servidor judiciários após conferir os documentos das partes logadas na videoconferência. O advogado do autor se fez presente pessoalmente, mas preferiu utilizar uma imagem criada digitalmente (algo que se tornou possível há algum tempo). O Banco réu é representado pela Inteligência Artificial de um grande escritório de advocacia. A idOAB dela foi conferida pelo servidor com ajuda da IA disponibilizada pelo Tribunal.
Em cada um dos dispositivos logados aparecem cinco imagens. A do autor e a do réu, imagens reais porque as partes ainda devem comparecer à audiência pessoalmente. Os defensores do autor e do réu são avatares. O servidor é um ser humano. Pouco depois o juiz entra pessoalmente na videoconferência.
– Vejo que os defensores das partes usam avatares. Os doutores se importam se eu também fizer isso?
A IA que representa o Banco diz que não. Para uma máquina é indiferente se a audiência será conduzida por um humano, por um humano utilizando avatar digital ou por uma máquina que se apresenta como um humano utilizando um avatar. Além disso, máquinas parecem lidar melhor com outras máquinas. Elas têm muita dificuldade de perceber emoções e de reagir de maneira adequada. Mas o avatar do advogado do autor protesta.
-Excelência, pela ordem. O autor requer que vossa excelência não se faça substituir por um avatar. Caso isso seja feito, requeiro conste dos autos meus protestos porque a nulidade será oportunamente alegada.
– Indefiro. A legislação processual expressamente permite a todos os atores do processo se fazerem substituir por seus respectivos avatares. A regra tecnológica que se aplica ao douto advogado também se aplica a este juízo. Protestos anotados.
Imediatamente a imagem do juiz é substituída por um avatar. Mas a qualidade da imagem gerada pela IA do Tribunal é tão perfeita que dificilmente alguém conseguiria notar a diferença entre o avatar e o juiz que ele representa. Apenas um detalhe permite a quem faz a audiência e quem a vê depois distinguir entre seres humanos e suas imagens digitais: o selo distintivo no canto direito da imagem atestando que aquela é a imagem do avatar e não do advogado, promotor ou juiz.
A audiência começa. As partes não chegam a um acordo. O caso é simples e a audiência poderia ser encerrada rapidamente, mas o avatar do juiz preferiu dar a palavra às partes. Primeiro ao autor, depois ao Banco.
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O defensor do autor afirma que ele não fez a transação bancária que praticamente zerou a conta dele. “Como disse na inicial, excelência, o dispositivo móvel do autor foi hackeado sem ele saber. Quando olhou para seu Smartwatch Samsung Bank no dia e horário da transação meu cliente queria ver porque aquele dispositivo havia emitido um sinal audível. A perícia no equipamento provará que ele foi temporariamente hackeado e utilizado para movimentar à conta-corrente à revelia da vontade do correntista. Além disso, a transação impugnada destoa totalmente do histórico pessoal e político do autor. Ele é eleitor de um partido de esquerda e em hipótese alguma doaria todos seus recursos a uma organização política nazista como a que é titular da conta para onde os recursos foram transferidos.”
Em sua defesa, o Banco alegou que a transação foi realizada de maneira adequada. A conta do autor teria sido acessada pelo Smartwatch Samsung Bank fornecido ao cliente quando ele abriu a conta-corrente. A imagem dele concordando com a transferência bancária, capturada pelo dispositivo em tempo real durante o acesso à conta-corrente, atesta a transação da maneira adequada. O sistema é 100% seguro e não pode ser hackeado. Todos os dados referentes ao acesso remoto da conta no dia dos fatos foram anexados ao processo, imagens incluídas. Segundo o Banco, a fraude alegada pelo autor não ocorreu sendo desnecessária qualquer perícia no Smartwatch Samsung Bank.dele. As preferências políticas do autor são irrelevantes para a solução do caso, até porque os prints das redes sociais dele provam que elas flutuaram de um extremo ao outro nos últimos anos.
O avatar do advogado do autor pediu a palavra, mas o do juiz rapidamente tomou as rédeas da videoconferência bloqueando o áudio dos demais participantes.
– Indefiro a perícia por desnecessária. As partes poderão anexar aos autos suas razões finais no prazo comum de 5 dias. Assim que for proferida a sentença será publicada na forma da Lei. Dou essa audiência por encerrada. Obrigado a todos os presentes.”
Sou apenas um advogado idoso aposentado há bastante tempo. Mas quando vi o vídeo dessa audiência fiquei com a impressão de que tudo aquilo não passava de uma pantomima, um simulacro high-tech de Justiça.
Ao assistir a videoconferência ninguém pode realmente afirmar com 100% de certeza que o juiz praticou o ato continuou logado após se fazer substituir por um avatar digital. Talvez ele tenha sido substituído por uma Inteligência Artificial programada para conduzir a audiência. Não seria difícil gerar artificialmente em tempo real tudo aquilo que o avatar do juiz disse utilizando amostras de fala do juiz humano previamente gravadas no supercomputador do Tribunal.
Não sou um especialista em questões jurídicas atuais, mas me parece que dar a palavra às partes é uma estratégia digna de um malaju (um malandro jurídico, como dizíamos nos anos 1990). Afinal, ainda que fruto de um equívoco, a confissão ou desistência implícita da prova manifestada por uma das partes pode sempre interferir na decisão a ser prolatada. Todavia, a IA que defendeu o Banco obviamente foi programada para apenas sumarizar aquilo que foi dito na defesa evitando qualquer tipo de expressão verbal que pudesse ser considerada uma confissão. Em algumas coisas, as máquinas podem ser terrivelmente mais eficientes do que os seres humanos.
A pessoa que me mostrou o vídeo no asilo afirmou que o autor perdeu o processo. A decisão teria sido assinada por um juiz humano. Mas a análise do texto por uma IA chinesa provou que é muito elevada a probabilidade da sentença ter sido produzida por outra IA norte-americana.
As máquinas têm predileção por aquilo que outras máquinas produzem? Não sei como responder essa pergunta. Mas o engenheiro de TI irritante que mora no asilo e que também viu o vídeo me disse alarmante. Segundo ele, seria preciso saber se escritório se o escritório de advocacia que defendeu o Banco e usou uma IA com idOAB durante a audiência comprou produtos produzidos pela mesma Big Tech que licenciou sua IA para o Tribunal. Quando perguntei a ele porque isso seria relevante ele deu de ombros e disse o seguinte (as palavras são dele, não minhas):
– Assim como no passado as empresas de software norte-americanas deixavam backdoors em seus produtos para que elas pudessem ser exploradas pela NSA e pela CIA, as Big Techs que fornecem IAs ao sistema de justiça podem vender pacotes premium aos clientes que tem muito dinheiros. A exposição a determinadas combinações de palavras e signos visuais gráficos (como por exemplo, “o Banco nunca ajudaria hackers a roub@r seu$ c!ientes”) podem ser programadas na Caixa Preta para desencadear respostas pré-programadas da IA geradora de decisões judiciais no momento em que ela analisa as petições e outros documentos escritos que compõe a base de dados do processo.
Tudo isso é muito moderno para mim. Os Bancos conquistarem vantagens indevidas nos processos não chega a ser uma novidade. No passado eles faziam isso dando de presente aos juízes “amigos deles” passagens de avião e hospedagem em hotéis de luxo quando ocorriam convescotes e congressos de membros do Poder Judiciário. Além disso, agora que estou velho e obsoleto não quero mais saber dessa tal de justiça 4.0 nota ZERO. Apenas as coisas antigas realmente me interessam.
O Direito Romano demorou séculos para evoluir do processo formulário, decidido por juízes privados leigos escolhidos pelas partes, para o extra ordinem cognitio julgado por magistrados públicos com formação jurídica adequada. Após a queda do Império Romano e uma interrupção de mais de mil anos durante a Idade Média, o estudo e a prática do Direito Romano foram retomados. Os julgamentos por combate e baseados em ordálios começaram a ser substituídos por decisões tomadas com base em provas racionais colhidas em processos mais ou menos formais conduzidos e decididos sob o aconselhamento de estudiosos do Direito.
Lentamente a Justiça se separou do poder político secular e passou a ser distribuída por juízes nomeados e, depois, concursados. Até que chegamos ao momento em que os cidadãos têm direito a ver suas causas processadas, instruídas e julgadas por autoridades públicas que foram empossadas após exames rigorosos em que demonstraram com sucesso ter formação jurídica e intelectual adequada, saúde física/mental e uma vida pregressa respeitável.
Mas agora o resultado da longa evolução das instituições jurídicas, processuais e institucionais está sendo jogado na lata do lixo. As máquinas decidirão tudo e os juízes humanos não parecem estar preocupados. Os salários deles estão garantidos e doravante eles se sentarão na frente de seus notebooks e smartphones funcionais como se fossem apenas apêndices biológicos de luxo e bem remunerados de IAs.
A missão das IAs criadas por empresas privadas (ou licenciadas e treinadas por elas sabe-se lá em que país e com base em quais bancos de dados) será distribuir justiça de maneira automatizada. A tarefa dos juízes será representar uma pantomima para que os cidadãos tolos acreditem que os casos deles foram ou serão analisados de maneira criteriosa por autoridades que desempenham seu mister com seriedade e dedicação.
Em algum momento futuro, dizíamos no passado, até mesmo a face humana do juiz será substituída por um avatar digital (como ocorreu no caso acima relatado). “Esqueça, meu caro. Hoje a injustiça é automatizada e ninguém pode sequer tentar desafiá-la.” ao colega jovem que me mostrou o vídeo cujo cliente perdeu o processo para o Banco. “No passado, as pessoas ainda tinham o direito de alegar e provar que um determinado juiz humano era suspeito ou impedido de julgar seu processo. Mas atualmente ninguém jamais conseguirá provar que a IA decidiu sua causa com base em preconceitos programados ou que existiam nos bancos de dados utilizados para treiná-la.”
PS: Foi assim que a justiça morreu na abertura do ano judiciário de 2025, com o aplauso dos juízes e pseudo-juristas que acreditam que as máquinas podem ser mais justas do que os seres humanos.
Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.
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