Há momentos na vida política que se parecem com fendas num muro de concreto. Elas não aparecem com frequência. Quando surgem, duram pouco. E, se não forem aproveitadas, fecham-se de novo, condenando gerações inteiras a caminhar diante do mesmo obstáculo. A autonomia do Banco Central, celebrada como a maior vitória neoliberal das últimas décadas, é uma dessas muralhas. Agora, por ironia da história, pintou a chance de rachar essa estrutura.
O curioso é que não foi a esquerda, nem o governo eleito em 2022, quem abriu a fissura. Quem deu a primeira martelada foi o próprio Centrão, movido não por convicções democráticas ou por qualquer projeto de soberania, mas por sua velha especialidade: negócios bilionários, disputas internas, rearranjos de poder. O caso que envolve a compra do Banco Master pelo BRB, com atuação questionada do diretor do BC, tornou-se o pretexto. O que está em jogo, porém, ultrapassa em muito essa negociação.
A autonomia do Banco Central foi erguida como se fosse cláusula pétrea. Não é. Mas o discurso que a sustenta é poderoso: o de que o país estaria finalmente protegido da política, como se “a política” fosse uma doença e a “técnica” uma cura milagrosa. Foi vendida como modernidade institucional, blindagem contra populismos, maturidade de uma economia que se queria cosmopolita. Na prática, tornou-se uma camisa de força.
Pensemos nessa autonomia como um contrato escrito em pedra. Um acordo que dizia mais ou menos o seguinte: “as decisões fundamentais sobre a vida econômica brasileira — juros, crédito, endividamento, moeda — não pertencem mais à sociedade. Elas foram entregues a um condomínio restrito, blindado de pressões populares e eleitorais.”
Durante anos, esse contrato foi aceito como natural. Era repetido por economistas nos jornais, defendido como inevitável nas universidades, transformado em senso comum entre jornalistas e investidores. A autonomia se tornou, assim, um mito. E como todo mito, quanto mais distante da vida real, mais sólido parecia.
Só que até os contratos de pedra racham. E agora estamos diante da rachadura. O Centrão, em sua pressa de abrir caminho para interesses imediatos, acabou esbarrando na pedra e arrancando um pedaço. O que parecia indestrutível de repente se revela provisório.
A leitura mais lúcida — e aqui sigo a linha de muitos analistas críticos — é que uma oportunidade como essa talvez só volte a aparecer em cinquenta anos. É difícil exagerar o que isso significa. Em política, janelas históricas são raras e custam a se abrir. Há décadas, os neoliberais conseguiram o que parecia impossível: arrancar da soberania popular uma das principais ferramentas de governo. Agora, paradoxalmente, é a própria engrenagem fisiológica do sistema político que cria uma brecha para reverter esse movimento.
Mas a história não premia os distraídos. O risco maior é que essa chance se perca em meio à letargia governamental, às hesitações de sempre, às negociações que empurram tudo para o futuro. É possível que daqui a alguns meses vejamos, mais uma vez, as mesmas vozes dizendo que “não há o que fazer”, que “o Congresso não deixa”, que “não existe correlação de forças”.
O ponto é: a correlação de forças não surge do nada. Ela pode ser construída. E uma fissura aberta por interesses particulares pode se transformar em abertura política se houver mobilização, pressão e disputa de sentido.
Muitas vezes, o debate político brasileiro se concentra em personagens, crises imediatas e escândalos do dia. Mas o que está em jogo agora é de outra ordem. Rever a autonomia do Banco Central não é apenas mexer em um arranjo institucional: é disputar quem governa de fato a economia do país.
Enquanto discutimos episódios que ocupam a superfície da cena política, a autonomia do BC segue moldando silenciosamente a vida de milhões de brasileiros. É ali que se decide se a economia cresce ou trava, se o crédito circula ou seca, se a população terá acesso a empregos e renda ou se viverá sob a tutela permanente da austeridade.
A fissura aberta hoje não é, portanto, apenas uma chance de corrigir uma “falha técnica”. É uma rara oportunidade de recolocar no centro a pergunta essencial: quem tem o direito de decidir os rumos da economia? Um punhado de tecnocratas blindados pelo mito da neutralidade, ou a sociedade, por meio de suas escolhas políticas e democráticas?
Essa é a dimensão estratégica do momento. Se deixarmos a brecha se fechar, o Brasil continuará condenado a viver sob um regime em que os grandes números da economia estão fora de alcance do debate público. Aproveitar a chance significa, justamente, romper essa barreira.
Há algo quase filosófico nessa discussão. O neoliberalismo se alimenta da ideia de que não há alternativa. “Não existe alternativa”, repetia Thatcher, e o mundo acreditou. A autonomia do BC é uma expressão desse dogma: retirar da esfera do possível algo que deveria ser, por excelência, objeto de disputa democrática.
Quando uma brecha se abre, o que acontece é exatamente o contrário: a história mostra que alternativas existem. O muro não era tão sólido. A pedra não era tão pétrea. A política volta a respirar onde diziam que ela estava proibida de entrar.
A oportunidade, então, não é apenas técnica ou legislativa. É simbólica. É mostrar que aquilo que parecia eterno pode ser desmontado. Que nenhuma camisa de força é definitiva. Que até mesmo o mais alto altar neoliberal pode desmoronar quando a vida real bate à porta.
O grande desafio, porém, é que essa brecha não se transformará em mudança se depender apenas do governo. A tendência, como já se viu em tantas outras ocasiões, é o Planalto hesitar, negociar, adiar. Para que a oportunidade não se perca, é preciso que a pressão venha de fora.
É preciso pautar o governo. Transformar essa questão em assunto popular. Torná-la compreensível e urgente como foi a luta contra o imposto de renda sobre assalariados. Só assim a fissura aberta pela disputa entre bancos pode se alargar em porta histórica para a soberania.
“Pintou a chance” não é só uma frase otimista. É um aviso. Se o momento passar, se a esquerda não souber transformar essa fissura em projeto, se o governo não for pautado a agir, estaremos diante de mais um daqueles capítulos em que a história nos oferece uma saída e escolhemos a repetição.
A autonomia do Banco Central não é eterna. Foi uma vitória política dos neoliberais, construída com esforço e discurso. Pode ser desfeita. Mas só será desfeita se houver coragem de transformar ironia em ação, fissura em brecha, brecha em caminho. O Brasil está diante dessa chance. A questão é: o que vamos fazer dela?
Márcio Pereira Cabral é psicanalista e professor mestre pela UFRGS, diretor do Instituto SIG – Psicanálise & Política e do Instituto E Se Fosse Você?